O tempo devora tudo (V.7. N.2. P.1, 2024)

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Divulgador da Ciência: José Machado Moita Neto1(Pesquisador da UFDPar) 

 

Tempus edax rerum. O tempo devora tudo. Essa frase de Ovídio, escrita em “Metamorfoses”, está espalhada até em modernas tatuagens. De fato, ela traz uma sabedoria humana e científica sobre o aspecto destruidor do tempo. Uma tatuagem, por exemplo, perde a resolução e sua beleza com o tempo. Também esse escoamento inexorável do tempo é uma marca de irreversibilidade de processos estudados em termodinâmica, de variáveis para as quais a flecha do tempo é unidirecional, como a entropia. Igualmente na filosofia, o fluxo do tempo encontra seu registro atribuído a Heráclito, “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio” pois tudo flui.

Em continuidade a frase do poeta, proponho outra frase “o tempo regurgita tudo”. Aqui se paga tudo aquilo que o tempo devorou. É a experiência da velhice. O próprio corpo traz as marcas do trabalho, dos vícios e dos prazeres desfrutados durante a vida. São sequelas de quem presenciou o tempo fluir e, com cumplicidade ou não, sofreu consequências. A frase “O tempo regurgita tudo” traz a perspectivas de todas as escolhas feitas, de todos as opções que deixaram mal-estar durante a vida, de todos os prejuízos causados a si mesmo e aos outros.

O tempo impregna a linguagem humana com seus tempos verbais, advérbios e adjetivos. Quando o ritmo próprio não dita o tempo, planejar fazer mais do que o tempo permite, causa o estresse e, fazer menos, gera acomodação. A reflexão sobre o tempo rapidamente nos leva a abandonar a grandeza física do tempo (anos, meses, horas, minutos) para destacarmos seus efeitos sobre nós e como queremos imprimir esse efeito sobre os demais. Ao tempo ou a sua escassez, podemos imputar tudo, como consolo psicológico.

A nossa gestão do tempo é única, singular e não podemos modular os demais pela nossa percepção de otimização, caso contrário, criaremos uma versão contemporânea do leito de Procusto: “esticaremos” quem usa mal o tempo para render mais e “cortaremos”, com a nossa maledicência ou crítica, quem usa melhor o seu tempo que nós. Somos a medida apenas de nosso próprio tempo porque dele tiraremos o justo proveito ou arcaremos com a colaboração em seu desperdício.

O escoamento do tempo é o único aspecto inexorável de nossa vida e todas as tentativas de olhar para atrás para lamentar sua perda é desqualificado como indigno e inútil na sabedoria popular, por exemplo, “não adianta chorar pelo leite derramado”. Em nosso cotidiano sempre podemos citar a frase: tempus edax rerum. Ela pode ser a versão sintética do “larga esse celular e vai cuidar da tua vida” ou a razão que explica a opção Carpe Diem ou até justificar o pragmatismo da frase “bola prá frente que atrás vem gente”. O passar do tempo também pode prover uma simples constatação positiva sobre a vida, por exemplo, a música “Oração ao tempo” de Caetano Veloso ou aparentemente negativa, por exemplo, “os dias são maus” (Ef 5:16).

Não há dúvida que sua existência, a existência do tempo, submete todos os homens, nisso os igualando; contudo, todos os modos e meios de gestão desse tempo separa as pessoas, não por seus méritos, mas por desigualdades construídas por nossas sociedades. No passado, ócio e negócio se contrapunham. O ócio era reservado para quem não precisava trabalhar. Hoje existem negócios que se alimentam do ócio ou precisam desse ócio para apresentar seu negócio. Todo o fruto do trabalho está sendo consumido no próprio local ou situação em que gastamos o nosso tempo. Uma vertente de sabedoria do passado afirmava “onde está o teu tesouro aí está o teu coração” (Mt 6:21 e Lc 12:34). Hoje o “coração” está onde investimos mais o nosso tempo.

Do ponto de vista psicológico, a frase “O tempo devora tudo” (tempus edax rerum) até nos consola por sonhos não realizados, por caminhos não trilhados. Minimiza as circunstancias duras do dia a dia que deixamos escapar de nossas mãos. Abranda os nossos fracassos. Explica as nossas omissões. Traz o leve sabor de um idealismo otimista. A frase “o tempo regurgita tudo” expõe os nossos erros que não encontraram perdão. Traz o leve amargor de um realismo pessimista.

A complexidade da vida humana nos leva a admitir, com idealismo, que fomos o que o tempo devorou e, com realismo, que somos o que o tempo regurgitou.

1 Contatos: whatsapp (+55 86 99921-0902) / e-mail (jose.machado.moita.neto@gmail.com) 

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