O negócio da cura: reflexões sobre intervenções religiosas na saúde mental (V.4, N.6, P.5, 2021)

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Divulgador da Ciência:

Francélio Ângelo de Oliveira, Professor Doutor do IFCE [Lattes]

É cada vez mais comum nos depararmos com propagandas de igrejas propondo cura e libertação para os sofrimentos da alma. Depressão, ansiedade e homossexualidade[1] aparecem na lista de “enfermidades” que podem ser curadas por meio de práticas que incluem orações, aconselhamento, estudos e acompanhamento. A partir do incômodo produzido através do contato com essas propostas de “terapia” espiritual me proponho a refletir sobre as intervenções religiosas enquanto alternativa de superação do sofrimento psíquico.

 

Os acometimentos da alma, dentre os quais podemos encontrar a dor e a angústia, parecem nos informar a humanidade presente no conjunto dos homens e das mulheres. A existência é atravessada pelo inominável, por aquilo que ultrapassa o limite da inteligibilidade alcançada pelo discurso. A experiência da linguagem é uma nítida tentativa de delimitar a (in)experiência humana na relação com o perenal desconhecido.

 

A experiência humana inclui o sofrimento de lidar com o ilimitado a partir do lugar da finitude. Frente à angústia do eterno ignoto, a proposta das religiões está vinculada ao alívio do sofrimento. Freud atenta para a existência de um sentimento fundante para as religiões que pode ser reconhecido como a “sensação de eternidade”. Ora, é com base na concretude do perecimento, finitude e falência dos homens que a religião se desponta enquanto mediadora do sempiterno transcendente.

 

Numa primeira aproximação, a religião pode ser compreendida a partir do entendimento do homo religiosus como a própria relação da díade humanidade-divindade, experienciado como sagrado, mas que ganha existência na concretude do mundo dos homens. Portanto, o ato religioso pressupõe que a revelação do sagrado ocorre enquanto fundamento da experiência do conjunto dos homens e mulheres. Logo, a religião vem a ser uma resposta humana a essa manifestação imanente produtora de transcendência.

 

O fenômeno religioso também pode ser compreendido a partir de uma perspectiva funcional. Nessa direção, a religião atua como elemento constitutivo do indivíduo e da sociedade. Partindo dessa compreensão, a religião age como um sistema de convicções e práticas que balizam os sujeitos na resolução de suas questões cotidianas e existenciais.

 

Para além de pertencermos a uma confissão ou credo religioso, as narrativas religiosas atravessam as relações sociais e, tanto por aproximação quanto por afastamento, os ritos se materializam na concretude do mundo dos homens, e, por conseguinte, medeiam suas relações seja na esfera interpessoal ou intrapessoal.

 

No entanto, uma contradição pode ser encontrada, pois, ao mesmo tempo em que promete a saída do sofrimento, a religião evoca a dor e o desespero latentes na alma humana fim de “vender” plenitude e satisfação. Nesse sentido, Freud (1996b) em “O mal estar na civilização”, mostra a cultura e a religião como possíveis causas de sofrimento psíquico. A esse respeito, diz que “a religião é uma ilusão contra o desamparo”.

 

É mister destacar que o desamparo na perspectiva freudiana é ponto de partida para a superação de uma existência pautada na demanda, na incessante busca pelo reconhecimento do outro, rumo ao lugar do desejo. Este seria uma espécie de emancipação frente à aceitação de si e da energia que se movimenta no intervalo entre o desprazer em direção ao prazer.

 

Nos primeiros apontamentos sobre a Religião intitulado “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907), Freud aponta similitudes entre sintomas obsessivos e os ritos religiosos. Nessa perspectiva, obsessão e religião trazem traços comuns no que diz respeito a rituais repetitivos que produzem “angústia da consciência moral pela omissão” (FREUD, 1980b).

 

Logo, se a dor é parte constitutiva e inerente ao ser humano, subtraí-la ou anula-la seria uma forma de desumanização. A dor é um elemento que nos une e nos fala sobre a humanidade que há em nós. Por isso, não há como ser sensível a dor do outro sem admitirmos as nossas feridas.

 

Nessa direção, algumas experiências religiosas nos tiram a sensibilidade de nos afetarmos pela dor do outro, bem como a possibilidade de partilha do sofrimento. Frente a analgia com relação a aflição do outro, Pruyser (1977, p. 329-348) mostra em sua pesquisa que a religião pode ser usada para justificar comportamentos de ódio, preconceito e discriminação. Nos casos em que o fundamentalismo religioso é intenso a relação entre religiosidade e culpa, perfeccionismo, pensamentos obsessivos e ansiedade é ainda mais estreita.

 

Ainda sobre a pesquisa de Pruyser, conservantistas religiosos tendem a reagir com excesso de expectativas sobre si e os outros. Podem ainda segregar, menosprezar e oprimir pessoas que se desalinham com suas crenças. A soma desses atravessamentos pode produzir impactos negativos na saúde mental desses indivíduos.

 

Portanto, intervenções espirituais que prometem extrair as dores e aflições humanas, parecem sedutoras do ponto de vista de quem atravessa um estado de sofrimento psíquico. Mas é preciso ponderar sobre o próprio papel da igreja frente ao apoio às questões relativas à saúde mental. Sobretudo porque, o acesso aos serviços profissionais da área psicoterapêutica nem sempre é acessível a todos. Frente a essa situação a igreja deve exercer sua função social de entender a vida como instância primeira de sua ação e apoiar esses indivíduos na busca por um suporte profissional da área da Saúde Mental.

 

A cura estaria, pois, na construção de uma nova relação com a própria cura, ou ainda na aceitação da condição humana que envolve dor, angústia e desamparo. Nesse sentido, a religião pode ser positiva quando não objetiva extrair a humanidade do ser humano, mas acolhe o sofrimento e abre espaços para encontros e simbolizações da angústia.

 

[1]Em conformidade com a Resolução 01/99, os profissionais da Psicologia no Brasil não podem oferecer qualquer tipo de terapia de reversão sexual, uma vez que a homossexualidade não é considerada patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).

 

Referências

FREUD, Sigmund. A Moral Sexual Civilizada e o Nervosismo Moderno. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1980a.

 

________. Atos Obsessivos e Práticas Religiosas, 1907. Volume. DC. Obras Psicológicas completas da Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980b.

 

________. Moisés e o Monoteísmo. Esboço de Psicanálise e outros Trabalhos (1937-1939). Volume XXDGL Ed. Standard brasileira-Rio de Janeiro: Imago, 1996a.

 

________. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros Trabalhos (1927- 1931). Volume XXL Ed. Standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

 

PRUYSER, P. The seamysideofcurrentreligiousbeließ. Bulletin oftheMenningerClinic, v. 41, 1977, p.329-348.

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