|Entendendo o funcionamento do coração| #5 – Hemodinâmica: Entendendo conceitos e patologias (V.7. N.2. P.2, 2024)

Tempo estimado de leitura: 11 minute(s)

Divulgadora da Ciência: Fernanda Rossi Barboza

*Texto produzido como parte do projeto ‘Utilização de ferramentas de simulação numérica para melhor entendimento das arritmias cardíacas: produção de material de divulgação científica para conscientização sobre doenças do coração’, integrante do Programa Pesquisando Desde o Primeiro Dia – PDPD (Edital Nº 11/2022), sob a orientação do Prof. João Lameu.

 

Nessa parte vamos falar sobre a hemodinâmica. Em poucas palavras, hemodinâmica é o estudo do movimento do sangue pelo nosso organismo. 

 

Na parte 3 e 5 estudamos de uma forma mais aprofundada a circulação do ponto de vista mecânico. Sabemos que líquidos e gases se movem de um lugar para outro, certo? Mas você lembra o que faz com que isso aconteça? É o que chamamos de gradiente de pressão!

 

Para facilitar o entendimento, pense em um cano com água, por exemplo. Se você encher um lado do cano com água e deixar o outro lado aberto, a água vai fluir naturalmente para fora. Isso acontece porque a água se move da área de maior pressão (onde está acumulada) para a área de menor pressão (o lado aberto).

 

Essa diferença de pressão é a “força motriz”, ou seja, a força que impulsiona o movimento do fluido. É como se o líquido ou gás fosse empurrado da região de maior pressão para a de menor pressão. 

 

Como o sangue é um fluido, não tinha como ser diferente. O sangue circula pelo nosso corpo impulsionado pela diferença de pressão e “direcionado” pela abertura e fechamento das válvulas. As válvulas funcionam como comportas unidirecionais que permitem que o sangue flua para uma única direção, impedindo o refluxo.

 

Pensando no gradiente de pressão, é interessante pensar qual a relação disso com o fluxo sanguíneo. Matematicamente falando, temos que:

 

 

Podemos perceber que a equação acima indica que a força motriz (gradiente de pressão) é diretamente proporcional ao fluxo e que a resistência é inversamente proporcional ao fluxo. 

 

Para nós, resistência é um termo novo que não estudamos ainda. O que exatamente seria isso? Ao estudar movimentos em física, o conceito de resistência está muito relacionado ao atrito e portanto, está relacionado à uma força oposta ao movimento. Nesse caso, a resistência ocorre pelo atrito viscoso entre o sangue e a parede do vaso.

 

Tendo em vista que a diferença de pressão é o que impulsiona o movimento: Quanto maior a diferença de pressão, maior é o fluxo. Também, visto que a resistência é o que “segura” o movimento: Quanto maior a resistência, menor é o fluxo.

 

Além disso, ao estudar conceitos gerais de mecânica de fluidos, é interessante entender o conceito de viscosidade. A viscosidade é uma característica da substância que está relacionada com a sua habilidade de fluir. Podemos relacioná-la ao conceito de resistência, podendo definir a viscosidade como sendo a resistência ao movimento do fluir de um fluido.

 

O entendimento sobre a viscosidade do sangue é fundamental no estudo cardiovascular. Como a viscosidade resulta na resistência do movimento do sangue, ela influencia diretamente os padrões hemodinâmicos. Aqui precisamos definir uma propriedade importante, tanto em mecânica dos fluidos, como da hemodinâmica: tensão de cisalhamento. Tensão nada mais é que uma relação de força pela área que esta atua. Cisalhamento é o termo que define como esta força atua, e nos diz que neste caso, a força atua de forma tangencial. Imagine que o fluido está sendo dividido em finas fatias, e a fatia encostada na parede sofre a atuação direta da força de resistência do atrito viscoso, passando este “efeito viscoso” para a fatia superior e assim por diante. 

 

A tensão de cisalhamento na parede é importante, pois as células endoteliais do sistema cardiovascular são sensíveis a seus níveis, isto é, em condições de forças tangenciais muito baixas ou muito altas, elas respondem de forma a normalizar estas forças. Isto pode levar ao remodelamento cardiovascular ou mesmo ao desenvolvimento de algumas doenças, incluindo a aterosclerose, que é caracterizada pelo acúmulo de placas de gordura nos vasos arteriais.

 

Outras doenças podem se originar no sangue, como a hemólise, em casos de tensões extremamente altas, que podem ocorrer em dispositivos artificiais e/ou implantados; e a trombogênese, em regiões de tensões de cisalhamento muito baixas relacionadas ao aumento da viscosidade aparente do sangue e à baixa velocidade do sangue (estagnação), consequentemente o sangue passa muito tempo no local, propiciando a formação inicial de coágulos, que pode se estabilizar formando trombos. Isto pode ocorrer em regiões tipo bolsões presentes no sistema cardiovascular, incluindo o apêndice do átrio esquerdo ou aneurismas em artérias.

 

Para auxiliar no entendimento, abaixo há duas figuras que mostram a anatomia do átrio esquerdo. Nas imagens é possível visualizar as veias pulmonares, a câmara atrial e o apêndice. Muito interessante, né?

 

Figura 1: Anatomia do Átrio Esquerdo (Ilustração por Brandon Holt – Shinelle Whiteman et al, 2019)

 

Figura 2: Anatomia das câmaras esquerdas (Gray’s Anatomia para estudantes, 2010)

 

Vamos falar especificamente sobre a trombogênese?

 

De maneira geral, a trombogênese é quando coágulos de sangue se formam, podendo acontecer por dois caminhos: intrínseco (por contato) e extrínseco (por lesão).

 

Em relação à trombogênese ocasionada por alguma lesão, é importante explicar sobre a hemostasia: é um processo que serve para evitar a perda excessiva de sangue. Esse processo inclui a formação de coágulos, que são uma espécie de “tampão” que ajuda a estancar o sangramento. A hemostasia envolve substâncias que ajudam a coagular o sangue e outras que evitam que os coágulos fiquem muito grandes.

 

Já em relação à trombogênese ocasionada sem nenhuma lesão é interessante fazer um paralelo à fibrilação atrial. Como já vimos antes, a FA está relacionada ao funcionamento ineficiente das câmaras superiores do coração. Essa condição pode levar à formação de coágulos, principalmente no apêndice do átrio esquerdo do coração, onde o sangue pode ficar parado.

 

Quando o sangue fica parado, as plaquetas presentes nele podem ser ativadas. (Lembra quando estudamos a composição bioquímica do sangue?) As plaquetas são pequenas células responsáveis por promover a coagulação.

 

As plaquetas são ativadas quando ficam expostas a certos níveis de cisalhamento por um tempo, ou melhor, quando entram em contato com “superfícies paradas” por um determinado período. Além disso, a ativação das plaquetas pode acontecer pela exposição a alguns compostos bioquímicos que desencadeiam a cascata de coagulação.

 

Dessa forma, ao analisar a trombogênese, percebemos que ela acontece de maneira mais frequente em indivíduos acometidos por alguma doença, como por exemplo a FA, do que indivíduos saudáveis. Arritmias como a fibrilação atrial estão diretamente relacionadas a disfunções hemodinâmicas e mecânicas no funcionamento do coração e assim, são responsáveis por desencadear esse tipo de processo. Por esse motivo, a ocorrência de trombogênese em pacientes acometidos por FA é muito superior do que em pessoas saudáveis, visto que a alteração no fluxo sanguíneo promove a criação de zonas de estagnação de sangue, principalmente na região do apêndice atrial.

 

Para entendermos melhor, abaixo há uma animação da hemodinâmica de um átrio saudável. 

 

Animação 1: Hemodinâmica de um átrio saudável

 

Perceba que ao final do ciclo cardíaco (t/T > 0,8) há uma contração na região do apêndice, expelindo o sangue parado no apêndice para fora e assim renovando o sangue para o ciclo posterior. Essa contração serve de mecanismo de proteção contra a formação de coágulos em pessoas saudáveis. (OBS.: t/T é o tempo do ciclo cardíaco, dividido pelo tempo total do ciclo cardíaco, isto é,  t/T = 0,8 indica que em cerca de 80% do ciclo ocorre a contração)

 

Para ilustrar, é interessante analisar o resultado obtido de simulações da hemodinâmica de dois átrios esquerdo Vale ressaltar que as geometrias têm características morfológicas distintas, visto que correspondem a diferentes organismos. As animações abaixo mostram os resultados obtidos referente ao campo de velocidade e cisalhamento: (OBS: A primeira geometria é menor do que a segunda geometria, então vamos chamar de “átrio pequeno” e “átrio grande”, respectivamente.) 

Animação 2: Resultados tensão de cisalhamento

Vamos analisar essas simulações?

 

Como vimos acima, tensão nada mais é que uma relação de força pela área e na simulação podemos perceber com clareza a influência da área das geometrias. Como o próprio nome já diz, a geometria do átrio pequeno é menor do que a do átrio grande e assim, a tensão de cisalhamento acaba sendo maior na primeira geometria. É interessante fazer um paralelo ao que estudamos acima, onde vimos que as células endoteliais do coração respondem a esses níveis de cisalhamento. A região do apêndice nas duas simulações têm níveis muito baixos, o que levaria à trombogênese intrínseca.

 

Animação 3: Resultados velocidade

Ao avaliar a velocidade de escoamento, podemos perceber algumas coisas. Como vimos, para um fluxo constante, uma menor área da seção transversal resulta em uma maior velocidade de fluxo. Na primeira geometria é evidente que o tamanho das veias é menor comparado à geometria do átrio grande, principalmente a veia pulmonar inferior esquerda onde é possível perceber uma velocidade muito maior (representada conforme a legenda com a cor vermelha).

 

Além disso, podemos perceber que o fluxo dentro do átrio tem diversas áreas de recirculação e uma velocidade baixa no apêndice. Isso ocorre principalmente no átrio pequeno onde o apêndice é mais profundo e há uma área menor que conecta a câmara atrial e o apêndice.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HALL, JOHN, E. E MICHAEL E. HALL. Guyton & Hall – Tratado de Fisiologia Médica. Disponível em: Minha Biblioteca, (14th edição). Grupo GEN, 2021.

JACOB, STANLEY W. FRANCONE, CLARICE ASHWORTH; LOSSOW, WALTER J. Anatomia e fisiologia humana. Tradução de Carlos Miguel Gomes Sequeira. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan

 

SILVERTHORN, DEE U. Fisiologia Humana. Disponível em: Minha Biblioteca, 7a. edição. Artmed, 2017.

WHITEMAN, SHINELLE et al. An anatomical review of the left atrium. Translational Research in Anatomy, 2019. Volume 17, 100052, ISSN 2214-854X, https://doi.org/10.1016/j.tria.2019.100052. Disponível em: (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2214854X19300512)

DRAKE, RICHARD L. et al. Gray ‘s Anatomia para Estudantes. Vol. 2 Tradução de Cristiane Regina Ruiz et al. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

 

 

 

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