Padrões de consumo e o acúmulo crescente de resíduos sólidos (V.5, N.6 P.1, 2022)

Tempo estimado de leitura: 15 minute(s)

Por: Carlos Alberto Correa, PhD em Materiais Avançados – Professor Visitante Sênior, Núcleo
Revalores UFABC

A imagem apresenta diversos resíduos sólidos empilhados, incluindo garrafas de vidro, potes de geleia e molho.

Resíduos sólidos empilhados. Fonte: pxhere

 

São incontestáveis os avanços na qualidade de vida decorrentes do progresso tecnológico nas sociedades industrializadas. O domínio das tecnologias de transformação e aplicação dos materiais nas mais diversas áreas do conhecimento transformou radicalmente o nosso modo de vida e particularmente os nossos padrões de consumo. A sociedade industrial foi concebida com base no chamado modo de produção linear, ou seja exploração, transformação, consumo e descarte. Com o passar dos anos esse modelo vem se tornando obsoleto diante da escassez dos recursos naturais não-renováveis que são utilizados e descartados após cumprida a sua finalidade. Ou seja, os materiais de maneira geral são concebidos para serem funcionais, mas não podemos nos esquecer que tudo na natureza, segue um ciclo de nascimento, vida e morte(concepção/design; vida útil e descarte).

A crise dos resíduos produzida pelo padrão linear de produção e consumo demanda a reengenharia completa de materiais e processos produtivos, e nessas duas primeiras décadas do novo milênio, nunca se falou tanto em sustentabilidade e
economia circular como forma de se rever velhas práticas de produção e consumo. Essa crise ambiental dos resíduos resulta de uma equação bastante simples relacionada ao balanço entre a taxa ou velocidade com a qual estamos produzindo e a capacidade da natureza absorvê-los em um determinado tempo. Um exemplo que tem sido objeto corrente de calorosas (e passionais) discussões refere-se aos resíduos plásticos, particularmente aqueles conhecidos como de pós-consumo. Mais especificamente ainda, as embalagens plásticas descartáveis ou de uso único (single use).

Muitas dessas embalagens são produzidas a partir de polímeros sintéticos derivados de petróleo, cuja escala de produção e consumo vem crescendo exponencialmente desde a década de 90. Por consequência, tendo em vista os longos prazos para decomposição ou degradação desses materiais na natureza, observa-se um crescente acúmulo desses resíduos, uma vez que a sua assimilação pela natureza seja bastante lenta, o que os torna resíduos classificados como recalcitrantes.

É importante ressaltar que os conceitos de sustentabilidade buscam sempre a neutralização das emissões ou redução da pegada de carbono fóssil. Dessa forma, um outro fator agravante refere-se ao uso de recursos naturais não-renováveis, ou fósseis (petróleo ou gás natural) na produção de polímeros sintéticos, que contribuem para o aumento das emissões dos gases do efeito estufa.

 

Embalagens plásticas descartáveis e a crise dos resíduos

A indústria petroquímica responsável pelo refino de petróleo possibilitou a produção das matérias-primas e insumos que levaram à disseminação de uma imensa variedade de produtos fabricados a partir dos polímeros sintéticos, conhecidos genericamente como plásticos. Por serem materiais versáteis e de baixo custo, estes materiais nos colocam grandes desafios para encontrar substitutivos com propriedades afins a preços competitivos.

Atualmente (2021), estima-se que sejam produzidos globalmente cerca de 350 milhões de toneladas ao ano de resinas poliméricas, e cerca de ¼ desse volume é transformado em embalagens plásticas com ciclo de vida bastante curto de 1-2 anos antes do descarte. As principais resinas de origem petroquímica que contribuem para a maior parte dos resíduos gerados são constituídos em grande porção por polímeros sintéticos da classe dos polietilenos (PE), polipropilenos (PP), poliestireno (PS), poli(tereftalato de etileno) ou PET e o policloreto de vinila (PVC). Em cada classe de resina existe uma gama de especificações técnicas de acordo com a aplicação, de forma que uma resina PET utilizada na fabricação de garrafas difere quanto a viscosidade da mesma resina PET utilizada em embalagens termoformadas largamente difundidas nas embalagens de alimentos.

Notadamente, os plásticos em geral contêm aditivos e cargas que auxiliam no seu processamento ou modificam as propriedades do polímero base. Por consequência, tanto a reciclagem como o impacto ambiental dos materiais plásticos dependem de uma conjunção de fatores que precisam ser analisados caso a caso. Alguns tipos como polietilenos e polipropilenos sofrem degradação ambiental lenta pela ação do UV e das intempéries, de modo que quando descartados no ambiente irão se fragmentar lentamente transformando-se nos chamados microplásticos. Do ponto de vista da sua estrutura química os polietilenos e polipropilenos são hidrocarbonetos constituídos basicamente de macromoléculas de carbono e hidrogênio, e na formulação final da resina contêm uma pequena porção de aditivos estabilizantes térmicos e anti-UV. Portanto, apesar do seu efeito cumulativo e recalcitrante no meio ambiente, ainda não há evidências científicas sobre a toxidade desses resíduos.

Outros plásticos como o PET são poliésteres susceptíveis à degradação por hidrólise, ou na presença de água, o que possibilita a reciclagem química desses polímeros (além da sua reciclagem mecânica). Essa característica torna o PET um dos materiais mais procurados pela indústria de reciclagem. Por outro lado, os plásticos estirênicos como PS, HIPS e isopor empregados em bandejas e copos descartáveis podem apresentar algum grau de toxidez se contiverem níveis elevados de monômero residual em sua composição, principalmente quando em contato com alimentos. De modo que alguns países da Europa e estados americanos vem banindo a utilização de embalagens descartáveis produzidas com poliestireno expandido (isopor), embora sob forte pressão contrária dos lobbies de fabricantes e transformadores dessas resinas.

Sabe os filmes de PVC? Muito utilizados no recobrimento de embalagens de alimentos, estes são formulados com elevadas quantidades de plastificantes da classe dos ftálicos, os quais são considerados interferentes endócrinos, capazes de provocar alterações hormonais em seres humanos e demais espécies.

 

Protestos de ambientalistas e tentativas de mitigação

A crise dos resíduos, particularmente a dos plásticos de pós-consumo têm provocado protestos por parte de movimentos ambientalistas em todo o mundo, os quais não veem solução no curto prazo para o acúmulo e contaminação ambiental desses resíduos sem que estes sejam completamente banidos. Enquanto isso fabricantes e proprietários de grandes marcas defendem que no balanço custo-benefício dos produtos ou embalagens plásticas ainda haveria mais ganhos do que prejuízos. Em se tratando de embalagens de alimentos, é fato que o plástico pode contribuir para o aumento do tempo de vida dos produtos embalados evitando assim o desperdício de alimentos. Todavia, a contaminação das embalagens plásticas em contato com alimentos praticamente inviabiliza o seu reaproveitamento ou reciclagem e uma das soluções indicadas nesse caso seria a compostagem da embalagem juntamente com os resíduos orgânicos.

Em estudos recentes realizados em coletas seletivas e centrais de triagem de resíduos, observou-se que uma pequena parcela dos produtos plásticos seria efetivamente recuperada e reciclada, restringindo-se ao PET garrafa, e ao PEAD (Polietileno de Alta Densidade), os quais despertam algum interesse comercial por parte de recicladores. Por outro lado, os filmes plásticos, sacolas e afins apresentam baixíssimos níveis de recuperação e reciclagem em face ao seu baixo valor intrínseco. Devido a sua complexidade e baixo valor os principais plásticos de pós-consumo acabam sendo considerados rejeitos que são coletados e destinados juntamente com resíduos orgânicos aos aterros sanitários e lixões, isso quando não são descartados diretamente no meio ambiente. Vale ressaltar que atualmente os resíduos orgânicos domésticos são constituídos por cerca de 50% de restos de comida e afins.

Em algumas cidades como São Francisco na Califórnia, foram criadas leis que obrigam a separação dos resíduos orgânicos dos demais resíduos recicláveis e outros rejeitos. Eles são convertidos em adubos orgânicos através de processos compostagem, os quais são utilizados na agricultura orgânica, vinicultura e jardinagem, fechando assim o ciclo virtuoso da economia circular. No entanto, algumas tentativas de reaproveitamento de resíduos plásticos compostáveis na cadeia dos resíduos orgânicos compostáveis tem encontrado alguma resistência devido a dificuldade em se diferenciar na prática alguns produtos plásticos do tipo, como o PLA (Poliácido Lático), dos plásticos convencionais (PET e PVC).

Para serem considerados resíduos compostáveis, esses produtos precisam passar por testes de certificação que atestem a sua compostabilidade, e acima de tudo serem identificados apropriadamente para serem coletados de forma seletiva. Contudo, o que se observa na prática é que esses produtos acabam contaminando outras cadeias de plásticos potencialmente recicláveis, quando não são contaminados por outros plásticos não-compostáveis utilizados na mesma aplicação (a exemplo de canudos, talheres descartáveis e afins).

Mesmo assim, desde a década de 90 os chamados bioplásticos obtidos de fontes renováveis têm sido apresentados como alternativa aos plásticos sintéticos derivados de petróleo, embora a sua capacidade de produção represente apenas cerca de 1 a 2% da capacidade instalada global de produção dos plásticos petroquímicos. Além disso, por serem produtos mais caros e com capacidade limitada de produção, estes materiais são incapazes de atender as demandas dos grandes mercados abastecidos pelas principais resinas de origem petroquímica.

De maneira geral, as embalagens fabricadas a partir de resinas sintéticas são produtos complexos quanto a sua formulação e natureza química, e consequentemente o gerenciamento desses resíduos também exige soluções não triviais que vão muito além da simples reciclagem mecânica. A reciclagem química, processos termoquímicos para reaproveitamento energético, despolimerização dentre outros são processos que seguem engatinhando e constituem objeto de intensas pesquisas atualmente.

 

A legislação para gerenciamento de resíduos

A crise dos resíduos produzidos pela sociedade de consumo tem preocupado governos e a sociedade civil, uma vez que vem se tornando um problema sanitário de grandes proporções, que ameaça a qualidade de vida e a sobrevivência das espécies.

Nas últimas décadas a ONU criou os Objetivos do Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) baseada em protocolos que norteiam as políticas ambientais na economia, produção industrial e na esfera social. Na área de materiais, muitas empresas buscam continuamente a circularidade de seus processos, de maneira que os resíduos sejam continuamente reaproveitados em outros processos antes de serem descartados. Da mesma forma os governos buscam criar leis que estimulem o reaproveitamento, reciclagem e redução dos resíduos.

No Brasil, a Lei nº 12.305/10 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) que visa o completo banimento dos chamados “Lixões” substituindo-os por aterros sanitários, estímulo aos 5R’s, (Repensar, Recusar, Reduzir, Reutilizar, e Reciclar) através da coleta seletiva e gerenciamentos dos resíduos com base em critérios técnicos bem definidos. Após 12 anos, ainda existem muitas disparidades entre municípios e estados da federação quanto a completa eliminação dos lixões e regulamentação da coleta seletiva, mas observam-se que foram alcançados alguns avanços por meio da educação ambiental.

Na prática ainda temos muito a avançar nos 5R’s e mais especificamente no gerenciamento de resíduos, uma vez que a coleta seletiva ainda representa uma pequena parcela da totalidade dos resíduos coletados, o que contribui para a baixa taxa de reciclagem dos resíduos não apenas plásticos, mas de pós-consumo em geral. Nos dois últimos anos de pandemia houve um aumento significativo dos resíduos de produtos plásticos descartáveis utilizados em deliveries, mas sabe-se que a contaminação pelo vírus também impactou diretamente na coleta seletiva operada por cooperativas de reciclagem.

Ainda não temos os números do volume de resíduos plásticos gerados durante a pandemia, mas certamente deve ter havido um aumento significativo. Portanto, o impacto ambiental que já era considerado preocupante antes da pandemia do SarsCov-19 tende a se tornar ainda mais alarmante se não forem remediados no curto prazo. Não existe ainda dados para consenso ou legislação específica sobre a manuseio desses resíduos ao término do seu ciclo de vida e grande parte dos resíduos coletados ainda é destinada aos aterros sanitários juntamente com outros rejeitos. Todavia, a maioria dos aterros das grandes cidades operam no limite da sua capacidade e o que fazer para mitigar o problema continua sendo um campo fértil para calorosas disputas de interesses diversos.

Muitos defendem que as empresas e fabricantes de embalagens descartáveis sejam responsabilizadas pela coleta dos seus resíduos por meio da Responsabilidade Estendida do Produtor ou Logística Reversa, enquanto a grande maioria das empresas alega que o problema está mais relacionado ao descarte inadequado ou falta de consciência do consumidor. Como exemplo de logística reversa, recentemente a empresa Melitta criou um programa para reaproveitamento das cápsulas de café em processos de compostagem. Neste programa, o consumidor envia gratuitamente as cápsulas de café usadas por meio do correio para serem compostadas pela empresa, que além do apelo sustentável do programa, acaba fidelizando os seus clientes.

No entanto, mesmo que haja boa vontade e conscientização por parte dos consumidores, em se tratando de embalagens plásticas descartáveis de pós-consumo, estas são geralmente muito complexas e difíceis de serem separadas uma das outras pelo público em geral. A diversidade de resíduos que hoje constitui a coleta seletiva atesta a dificuldade encontrada pelos consumidores em separar apropriadamente os seus próprios resíduos, tamanha a variedade de materiais utilizados atualmente na fabricação de embalagens.

Estudos recentes visando o desenvolvimento de embalagens sustentáveis mostram que o gerenciamento de resíduos deve ser pensado na fase de concepção do produto, denominado ecodesign. No ecodesign, além das especificações técnicas do produto visando uma determinada finalidade, devem ser definidas claramente as rotas de descarte a serem seguidas. É importante ressaltar que atualmente as embalagens plásticas contêm um logo com uma numeração de 1 a 7 que indica qual a resina base utilizada na fabricação da embalagem, sendo este logo supostamente utilizado para fins de reciclagem. No entanto, para cumprir a sua finalidade, algumas embalagens são fabricadas com filmes laminados em multicamadas com tipos diferentes de materiais, o que dificulta o seu reaproveitamento por métodos convencionais de reciclagem.

 

Afinal quais as soluções possíveis e plausíveis para a crise dos resíduos plásticos?

Talvez essa seja a pergunta de um milhão de dólares, e a sua resposta exige uma análise criteriosa dos riscos e impacto ambiental da utilização em larga escala de materiais plásticos.

O gerenciamento de resíduos plásticos é um desafio de grandes proporções que precisa ser reavaliado e ajustado continuamente com base em critérios claros de sustentabilidade criados a partir de base de dados sobre impacto ambiental segundo o tipo de produto, aplicação/uso e destinação final. Na ausência de tais critérios, o marketing verde empregado na alavancagem de negócios inovadores, pode significar apenas green washing ou falsas narrativas contendo promessas infundadas de sustentabilidade. A fiscalização por órgãos reguladores e engajamento de toda a sociedade são elementos essenciais nesse processo de construção das bases de um novo padrão de consumo verdadeiramente sustentável.

 

Related Post

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Twitter
Blog UFABC Divulga Ciência