Usos de substâncias psicoativas na pandemia da Covid-19 (V.5, N.7 P.2, 2022)

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Autores:

Vinícius Lima, doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC

Ednan Santos, também doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais

Erick Augusto Silva Pereira, estudante do bacharelado em Ciência e Tecnologia.

 

Uma das preocupações decorrentes da emergência do novo Coronavírus foi o crescimento no número de casos de doenças relacionadas à saúde mental no mundo, como a depressão e a ansiedade, e com isso o aumento dos usos de substâncias psicoativas, popularmente conhecidas como “drogas”.

Na Universidade Federal do ABC (UFABC), pesquisas em desenvolvimento investigam a relação entre a pandemia da Covid-19 e os usos dessas substâncias na comunidade da universidade e em outros grupos sociais, como dependentes químicos em situação de rua em São Paulo (SP) e praticantes da ayahuasca.

 

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Dados de 2022 da Organização Mundial da Saúde (OMS) informam que, apenas no primeiro ano da pandemia, a prevalência de ansiedade e de depressão aumentou em 25% em todo o mundo.

Fatores como o estresse causado pelo isolamento social decorrente ao contexto sanitário e as restrições na capacidade de as pessoas trabalharem, buscarem apoio de entes queridos e em suas comunidades levaram ao crescimento no número de casos desses distúrbios psicossociais [1].

Segundo pesquisadores da UFABC, o uso de substâncias psicoativas também pode ter aumentado devido à crescente no número de casos relacionados à saúde mental.

 

É o que procura analisar o estudo em andamento “Uso de medicamentos e drogas de abuso pela comunidade acadêmica da UFABC durante a pandemia de COVID-19”, no qual são convidados a participar do questionário online estudantes, professores e profissionais administrativos da universidade.

Realizada por Erick Augusto Silva Pereira, estudante do bacharelado em Ciência e Tecnologia e participante do programa Pesquisando Desde o Primeiro Dia (PDPD), sob a orientação do professor Fúlvio Rieli Mendes, a pesquisa tem como hipótese que houve um aumento do uso dessas substâncias aliado ao crescimento dos casos de ansiedade e de depressão, se comparados ao momento que precedeu a pandemia.

Além disso, a pesquisa busca avaliar se os efeitos da pandemia foram diferentes para alunos (graduandos e pós-graduandos) e trabalhadores (docentes e técnico-administrativos), conforme o sexo, idade, escolaridade, rendimento, entre outros fatores.

 

 

Além da universidade 

No bairro paulistano da Mooca, o historiador e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PPCHS), da UFABC, Ednan Santos observou o aumento do consumo de substâncias psicoativas (“drogas”), entre pessoas em situação de rua, de novembro de 2020 a janeiro de 2021.

A pesquisa integra um projeto maior de pesquisas realizadas em conjunto com a Universidade Técnica de Berlim, Universidade de São Paulo (USP) e com o Global Center of Spatial Methods for Urban Sustainability (GCSMUS), e analisou projetos sociais da Coordenação de Políticas para a População em Situação de Rua, o Poprua, da prefeitura municipal, nos quais o pesquisador acompanhau o trabalho de assistência social e ajuda humanitária desenvolvido pelo padre Júlio Lancellotti.

 

No contexto em que realizou o estudo, Santos identificou que o consumo de substâncias psicoativas foi alto devido à falta de atividades, como práticas culturais e de lazer, e à falta de emprego decorrentes da pandemia.

As pessoas com quem teve contato disseram trabalhar em diversos setores como mão de obra não qualificada e com pouca remuneração, tais como carga e descarga de mercadorias, reciclagem, na construção civil, na montagem de estruturas para shows e eventos, setores que tiveram um decréscimo na oferta de vagas no período, a não ser a construção civil, que continuou com suas atividades.

Além do uso de substâncias psicoativas, o pesquisador observou o uso de bebidas alcoólicas como forma de entretenimento e para suportar as mazelas (dificuldades) psicológicas relacionadas à pandemia, ao desemprego e, consequentemente, à intensificação da pobreza.

 

Mesmo assim, Edson Santos, que no PPCHS/UFABC desenvolve pesquisa sobre a relação da população de rua com as substâncias psicoativas, seus usos, tratamentos e intervenções religiosas, destaca que nem todas as pessoas em situação de rua são consumidoras de substâncias psicoativas e parte delas buscaram, em meio a emergência sanitária, alternativas e estratégias individuais e coletivas para a redução do consumo e dos danos pelo uso dessas substâncias.

Também, a forma com que cada pessoa agencia o consumo de substâncias psicoativas e do álcool é diversificada, não sendo possível delinear um padrão de uso ou de estratégias como forma de lidar com o consumo.

 

 

Renascimento psicodélico  

O uso de substâncias psicoativas durante a pandemia também incluiu substâncias regulamentadas como a ayahuasca. De acordo com Vinícius Maurício de Lima, cientista social e doutorando pelo PPCHS/UFABC, a ayahuasca tem os usos religiosos permitidos por lei desde 2010 no Brasil.

 Assim como aconteceu em outros cultos religiosos, os usos da ayahuasca ficaram suspensos em parte do período, em igrejas ayahuasqueiras tradicionais, como o Santo Daime e a União do Vegetal, que realizam apenas uso religioso, e em outras instituições chamadas por pesquisadores de grupos neo-ayahuasqueiros, que realizam, além de usos religiosos, práticas diversificadas com a ayahuasca.

Com a liberação dos cultos religiosos pelo governo federal e pelos Estados, algumas instituições retomaram suas atividades. Para isso, atualizaram seus rituais, com a inclusão de regras como o uso de máscaras e o distanciamento social.

 

Em alguns grupos neo-ayahuasqueiros houve uma procura pelo uso terapêutico da ayahuasca, que ainda não é regulamentado no país.

Em entrevista com dirigentes dessas instituições, alguns deles informaram que a ayahuasca foi utilizada por frequentadores dessas instituições como uma forma de “tratamento” para questões relacionadas ao contexto sanitário, como a ansiedade.

Ao oferecerem a ayahuasca como um possível tratamento, essas instituições se baseiam na regulamentação do uso religioso e em diversos estudos que têm mostrado resultados promissores sobre os potenciais terapêuticos da ayahuasca.

No entanto, por ainda não ser regulamentado, o uso terapêutico demanda um debate, por exemplo, sobre questões como o acompanhamento de profissionais de saúde antes, durante e após os rituais, o que nem sempre era seguido por esses grupos.

 

O potencial terapêutico da ayahuasca é testado, por exemplo, no tratamento da depressão, considerado o mal do século XXI pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Essas pesquisas com substâncias psicoativas como a ayahuasca acontecem dentro do que estudiosos e veículos de imprensa têm chamado de “Renascimento psicodélico” o qual promete, inclusive, revolucionar a psiquiatria, área na qual os médicos não encontram respostas no tratamento com alopáticos comercializados para um terço das pessoas que fazem uso regular desses medicamentos [2].

Em maio de 2021, foi publicado no periódico Nature Medicine resultados preliminares de uma pesquisa clínica, realizada nos Estados Unidos, que mostram o MDMA, princípio ativo do ecstasy, favorável no tratamento do estresse pós-traumático entre ex-combatentes de guerra [3]. E o Brasil também é um ator importante nesse campo, em especial, pelas pesquisas com a ayahuasca.

 

 

Discussão sobre “drogas”

Segundo os pesquisadores Santos e Lima, o debate sobre os usos de substâncias psicoativas durante a pandemia traz, também, a necessidade de uma discussão sobre o conceito de drogas e sobre as políticas proibicionistas que, historicamente, criminalizam os diferentes usos dessas substâncias pela sociedade.

Conforme problematiza Lima, nenhum conceito é socialmente neutro e “droga”, que normalmente se refere a substâncias ilícitas como a maconha, a cocaína e o ecstasy, traz consigo uma carga moral, sem contudo possibilitar uma discussão intelectual (com base na razão).

Desse modo, qualquer uso de substâncias psicoativas é visto como um problema de saúde pessoal e coletiva e associado ao crime e à violência, sendo alvo de políticas antidrogas.

No entanto, ao colocar todas as formas de usos em um mesmo pacote e desconsiderar, por exemplo, os potenciais terapêuticos de algumas substâncias psicoativas, apenas são propagados o estigma social, a naturalização da ilegalidade e a falta de debate com base em dados técnicos e informações científicas, ao mesmo tempo em que acontece um favorecimento para a atuação do crime organizado, do comércio ilegal e do tráfico internacional.

 

Historiador, Santos lembra que o conceito de drogas remete às políticas antidrogas dos anos 1960 e 1970, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) implementou medidas como a publicação da Convenção Única Sobre Entorpecentes, de 1961, as quais se tornaram um paradigma global proibicionista e moralizador no qual os países signatários como o Brasil aceitaram suas determinações.

Esse paradigma é resultado de diversos fatores, como o  crescimento do puritanismo norte-americano, o interesse das indústrias farmacêuticas na produção de substâncias psicoativas, os conflitos gerados pela Guerra Fria, a crescente violência urbana e o clamor das elites pedindo por proteção. Em termos práticos, os países comprometeram-se a lutar contra o “flagelo das drogas” e a punir quem as produz, vende e consome [4].

 No Brasil, esse paradigma também influenciou o desenvolvimento de políticas antidrogas, implementadas pelo então regime militar, as quais produziram reflexos até os dias atuais [5].

 

Apesar de alguns avanços decorrentes ao Movimento de Luta Antimanicomial e à Reforma Psiquiátrica, que possibilitaram a criação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), lei nº 11.343/2006, as controvérsias continuam existindo.

Em 2019, o governo brasileiro excluiu entidades científicas, de profissionais e da sociedade civil do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), sendo criticado por instituições como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que mantinham assento no órgão governamental no qual procuravam debater o uso de substâncias psicoativas por meio de dados técnicos e de informações científicas [6].

 

Para Lima, o cenário demanda vigilância para evitar retrocessos, para continuarmos avançando no debate racional sobre os diferentes usos de substâncias psicoativas, incluindo, os estudos sobre os potenciais terapêuticos de substâncias psicoativas em áreas como a psiquiatria.

 

 

Referências

 

[1] OMS – Organização Mundial da Saúde. OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde. Pandemia de COVID-19 desencadeia aumento de 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo. OPAS/OMS, 02/03/2022. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/noticias/2-3-2022-pandemia-covid-19-desencadeia-aumento-25-na-prevalencia-ansiedade-e-depressao-em>. Acesso em 09/05/2022.

 

[2] SANTOS, Rafael Guimarães dos et al. Hallucinogens/psychedelics resurrected as new tools in psychiatric therapy. Brazilian Jornal of Psychiatry, n. 00, v. 00, p. 1-2, 2020.

 

[3] MITCHELL, Jennifer M. et al. MDMA-assisted therapy for severe PTSD: a randomized, double-blind, placebo-controlled phase 3 study. Nature Medicine, v. 27, p. 1025-1033, 2021.

 

[4] ESCOHOTADO, Antonio, A. Historia de las drogas. Barcelona: Alianza, 1997.

 

[5] SILVA, Luiza Lopes da. A questão das drogas nas relações internacionais: uma perspectiva brasileira. Brasília: FUNAG, 2013.

 

[6] DANTAS, Carolina et al. Entidades excluídas do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas dizem que mudança é um ‘retrocesso’. G1, Ciência e Saúde, 22/07/2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/07/22/veja-o-que-dizem-as-entidades-excluidas-do-conselho-nacional-de-politicas-sobre-drogas.ghtml>.

 

 

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