Para onde vai o nosso esgoto? As dúvidas que a cratera na Marginal Tietê geraram sobre o que existe sob os nossos pés (V.5, N.4 P.1, 2022)

Tempo estimado de leitura: 11 minute(s)

por Ellen Emerich Carulli, Engenheira Ambiental e Urbana, mestranda em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, associada do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS)

Local onde ocorreu o incidente de abertura da cratera

        Para os jogadores clássicos da década de 1990 e 2000 que conhecem SimCity, aquele jogo de simulação na qual o jogador constrói e administra uma cidade, parecia simples e lógico planejar e ordenar a cidade criada, primeiro vinha as infraestruturas e depois os usos, fossem eles residenciais, comerciais e industriais. Destacando-se que no jogo funcionava melhor o planejamento urbano modernista e funcional, ou seja, com bairros todos desenvolvidos somente por um tipo de uso, sendo segregado os usos comerciais dos residenciais e demais. Sem contar que o crescimento teria que ser bem controlado para não colapsar a cidade. As infraestruturas subterrâneas também eram bem conhecidas no mapa. Por fim, o desenvolvimento equilibrado da cidade parecia depender mais de aspectos técnicos. E ainda assim, vencer no jogo não era garantido. 

        A vida real nem de perto é como um jogo de simulação, o desenvolvimento de uma cidade não se faz só de conhecimento técnico, mas envolve decisões e questões políticas que muito definem as regras do desenvolvimento urbano. Ressalta-se que as cidades brasileiras se desenvolveram de forma desigual, sendo a presença do Estado distribuída de forma seletiva e excludente atendendo a lógica capitalista de produção do espaço urbano. Recorrentemente a ocupação e uso do solo antecederam a implantação de infraestrutura, boa parte das cidades – principalmente, as áreas não privilegiadas, como áreas periféricas – tiveram a autoprovisão de moradia junto de autoprovisão de infraestrutura como a regra. 

        Ainda dentre as infraestruturas, o esgotamento sanitário raramente atinge 100% de coleta e 100% de tratamento nas cidades, e atingir 100% ainda não garante a limpeza dos cursos d’água, já que podem existir ligações clandestinas ocasionando a poluição destes. 

        Não é incomum desconhecermos o que está abaixo dos nossos pés e desconhecermos o destino para onde vai nosso esgoto. A motivação deste texto veio a partir da tratativa sobre a cratera aberta nas vias da marginal Tietê e dúvidas de conhecidos sobre como e para onde os esgotos são conduzidos. Logo, este texto visa compilar o que aconteceu nesse acidente e o que podemos aprender e compartilhar sobre o funcionamento da rede de esgotamento sanitário de São Paulo.

        No dia 01 de fevereiro deste ano (2022), um acidente aconteceu nas obras da Linha 6 – Laranja do metrô. Uuma cratera rompeu a marginal Tietê no sentido Rodovia Ayrton Senna, entre as pontes do Piqueri e da Freguesia do Ó. Mais de um mês se passou e ainda não foram definidas as causas para o incidente;, tanto o Ministério Público, quanto o governo do Estado de São Paulo e ae , como a Acciona, líder do consórcio responsável pela construção da linha de metrô, estão com processos investigativos em aberto.

        Nos primeiros instantes da formação da cratera e do vazamento acreditava-se que o rompimento havia sido diretamente no canal do Tietê causado por uma máquina tuneladora, comumente conhecida como tatuzão. Posteriormente, cogitou-se que a perfuração do tatuzão havia sido em uma adutora da SABESP. Mas, até o momento, explica-se que o acidente ocorrera na realidade com o rompimento ocasionado na interceptora de esgoto denominada ITI-7 localizada transversalmente e a 3 metros acima de onde estava o maquinário responsável pela perfuração. Nesta explicação o solo argiloso com baixa capacidade de suporte, teria cedido devido às trepidações do maquinário.  

        Segundo o secretário de Transportes Metropolitanos, Paulo José Galli, o rompimento da galeria teria poucas chances de decorrer do choque direto do tatuzão na tubulação. Conforme entrevista à Globo News cedida pelo especialista em gerenciamento de risco, Gerardo Portella, pode ter havido falha no monitoramento das condições do terreno e o solo poderia estar saturado sofrendo com alterações em sua capacidade de acomodar água da chuva, não mantendo a sua integridade e a das construções que o cercam. Já o geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos em conversa com a Uol News apontou que o volume de chuva é uma variável conhecida no planejamento de uma obra, não devendo ser tomada como justificativa para o acidente. Tanto o perito criminal responsável pelas investigações, Luiz Ricardo Lopes, como Galli não descartam como justificativa falha humana nas obras. 

        A cratera foi tampada com argamassa e rochas, o fluxo de esgoto junto à Sabesp foi interrompido e o poço do metrô foi aterrado para tentar impedir mais perda de solo, consequentemente evitando a abertura do local. De acordo com a presidente da CETESB, Patrícia Iglesias, o rio não foi contaminado devido a existência de um interceptor para contingenciamento.

        A tubulação rompida possuía vazão de 2.240 litros por segundo de esgoto, sendo responsável por coletar o esgoto de nove bairros da região central de São Paulo e encaminhar os dejetos para a estação de tratamento de Barueri, na Grande São Paulo, a ETE Barueri. A ITI-7 é um super túnel de 7,5 km de extensão, com 3,4 m de largura e 2,65 m de altura, construído embaixo da Marginal Tietê, inaugurado em 2020, sendo um dos componentes do projeto de despoluição do Tietê e sendo planejado para atender a verticalização da cidade. 

        O início do Projeto Tietê se deu em 1992, segundo a Sabesp a rede de coleta de esgoto atendia 70% da área urbanizada da Grande São Paulo e aumentou para 92%, enquanto o tratamento dos esgotos era de 24% e subiu para 83% do volume coletado. O Projeto Tietê gerou 1,8 milhão de ligações e foram instalados aproximadamente 4,8 mil km de interceptores, coletores tronco e redes coletoras para transportar o esgoto até as estações de tratamento, cuja capacidade instalada quase triplicou no período.

        Como forma de remediar o ocorrido na Marginal Tietê, parte da vazão do esgoto foi lançada para seu antecessor, o ITI-1, parcialmente desativado em 2020 e que, agora, volta a funcionar temporariamente desde o seu início. Embora menor que o ITI-7 — é retangular e tem 2,80 m por 1,80 m, na média—, entende-se que dê conta da função de escoar o esgoto e levá-lo até a ETE Barueri. Parte dos litros vazados também foram transferidos para ITI-3, na margem oposta. Desde o surgimento da cratera na Marginal Tietê, a Sabesp realiza obras no entorno para desviar a tubulação de esgoto atingido pelo desmoronamento. 

        Quase três semanas após a cratera, houve uma explosão registrada no entorno da Marginal Tietê há poucos metros do primeiro acidente, em um canteiro de obras da Sabesp criado para promover a drenagem do esgoto acumulado no super túnel. Em nota, a Sabesp disse que três pessoas ficaram feridas, sendo todas funcionárias que trabalhavam na obra. O novo acidente teria ocorrido devido ao acúmulo de gás num dos poços de serviço do interceptor, provocando uma pequena explosão local. A Sabesp assegurou que nenhuma tubulação foi perfurada e que os funcionários receberam atendimento e se encontram fora de risco.

        O ocorrido abriu espaço para as pessoas notarem que há esgoto correndo em paralelo à marginal Tietê e dúvidas surgiram sobre para onde vai o esgoto e como. O sistema de esgotamento sanitário adotado no Brasil é o sistema separador absoluto, ou seja, condução em tubulações distintas para esgoto e para água pluvial. O esgoto antes de chegar no interceptor depende de um longo caminho e ocorre por gravidade, diferente da rede de abastecimento de água que ocorre sob pressão, a tubulação de esgoto não é ocupada 100% por esgoto, sendo necessário conter ar além do esgoto para permitir o escoamento por gravidade. 

        O início da rede se dá pelas ligações prediais aos coletores, que seguem até os coletores-tronco e estes destinam o esgoto para os interceptores que conduzirão os efluentes até a Estação de Tratamento de Esgoto. Caso não haja como conduzir mais por gravidade, instala-se uma Estação Elevatória de Esgoto para possibilitar que as tubulações sigam com declividade para a gravidade agir.

        Ainda há muitas lacunas entre a captação nas edificações e a chegada até o interceptor, além das problemáticas associadas aos problemas de acesso à moradia digna e saneamento, há as ligações clandestinas de esgoto e ligações cruzadas entre água pluvial e esgoto. A limpeza dos corpos d’água depende do sucesso na universalização do saneamento – abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana, tratamento de poluição e gestão adequada de resíduos sólidos. A universalização do saneamento também depende de ações para solucionar o acesso à moradia e acesso à infraestrutura.

        A cratera escancarou o esgoto que percorre abaixo dos nossos pés e gerou a curiosidade sobre os caminhos que estes percorrem, que o presente texto ajude a elucidar um pouco sobre o assunto e que levante outras reflexões e questões sobre nossas cidades e o acesso às infraestruturas.

 

Referências

 

Ferrara, Luciana Nicolau (2013). Urbanização da natureza: da autoprovisão de infraestruturas aos projetos de recuperação ambiental nos mananciais do sul da metrópole paulistana. Tese (doutorado em arquitetura e urbanismo) – FAU, USP, São Paulo.

 

Marginal Tietê: Ainda não se sabe o que provocou cratera, diz perito. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/02/01/ainda-nao-e-possivel-saber-causa-de-cratera-na-marginal-tiete.htm>. Acesso em: 7 mar. 2022.

 

Moretti, Ricardo, Silva, Edson. Covid-19 escancara urgência de universalizar acesso aos serviços de saneamento. Disponível em: <https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/ricardo-moretti-e-edson-silva-covid-19-escancara-urgencia-de-universalizar-acesso-aos-servicos-de-saneamento.html>. Acesso em: 7 mar. 2022.

 

Sabesp. Projeto Tietê. Disponível em: <https://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=701>. Acesso em: 7 mar. 2022.

 

SP: Chuvas dificilmente causariam acidente em obra do metrô, diz geólogo [01/02/2022]. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/02/01/chuvas-acidente-metro-linha-laranja-sp.htm>. Acesso em: 7 mar. 2022.

 

Um mês após cratera se abrir na Marginal Tietê, causas do acidente na Linha 6-Laranja do Metrô seguem desconhecidas. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/03/01/um-mes-apos-cratera-se-abrir-na-marginal-tiete-causas-do-acidente-na-linha-6-laranja-do-metro-seguem-desconhecidas.ghtml>. Acesso em: 7 mar. 2022.

 

Travassos, Luciana Rodrigues Fagnoni Costa (2010) Revelando os rios: novos paradigmas para a intervenção em fundos de vale urbanos na Cidade de São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Ambiental) – Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo, São Paulo. 

 

Travassos, Luciana Rodrigues Fagnoni Costa; Penteado, Claudio; Fortunato, Ivan (2017) . Urbanização desigual: rios, mídia e modernização ecológica. ESPACIO ABIERTO (CARACAS. 1992), v. 26, p. 61-81, 2017.

 

Travassos, Luciana; Schult, Sandra Momm. (2013). Recuperação socioambiental de fundos de vale urbanos na cidade de São Paulo, entre transformações e permanências. Cadernos Metrópole. 15(29), 289–312.

 

Related Post

Você pode gostar...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Twitter
Blog UFABC Divulga Ciência