Assoviando para sobreviver (V.6. N.4. P.3, 2023)

Tempo estimado de leitura: 4 minute(s)

Divulgador: José Machado Moita Neto

A música de Oswaldo Montenegro “A Lista”, de 1999, traz, na primeira estrofe, uma reflexão para determinado momento histórico em que se começava a sentir, no Brasil, o esgarçar do tecido social pela imposição cultural da “Modernidade Líquida”, segundo a expressão de Zygmunt Bauman. A obra de Bauman, dentro dessa temática (mundo líquido, amor líquido) traz a explicação sociológica para o sentimento pessoal do poeta. Pela proposição da primeira estrofe, “faça uma lista…”, Montenegro sabia que o fenômeno era cultural e alcançava a sua geração. Bastava olhar para trás em 10 anos para encontrar um mundo diferente. Nesse sentido histórico e social, a primeira estrofe não diz nada para a geração que nasceu após o ano 2000. 

Há, no entanto, outra perspectiva de leitura da primeira estrofe que é reforçada pelo restante da música. Trata-se da mudança pessoal e incremental que cada um enfrenta cotidianamente, mas que se percebe apenas no momento que se faz o balanço anual ou, como sugere a música, decenal. Essa leitura, bem mais segura que a anterior, pode não dizer nada para quem tem menos de 25 anos de idade, que ainda não passou por todas experiências humanas narradas na música, mas seguramente adequa-se a quem tem mais de 45 anos porque as viveu todas. 

A quantidade de questões apresentadas ao longo da música, junto ao imperativo “faça uma lista” e a cadência melódica, transforma a audição dessa música em um profundo momento de reflexão. Essa é a razão pela qual, a passagem do ano civil ou a data de aniversário são momentos propícios para ouvi-la com o desejo prévio de mudança. Trata-se de um exame de consciência laico proposto pelo poeta. Nessa música há uma sabedoria prática sobre a vida que traz sua indicação de ouvi-la sempre. Muitos podem ser os destaques, mas vou ficar como o mais literário respondendo uma das questões propostas: eu assovio para sobreviver. 

As canções que você não cantava, continuam sem cantar. Isto é resistência. É convicção. É caráter. Mas isto pode destruir relações, pode inibir que elas amadureçam. Então, assoviar para sobreviver é uma atitude de compromisso. Não canto, mas assovio. É um sinal de maturidade. É desejo de não perder amigos. De fato, a música pode ser vista girando em torno da pergunta: Quantos amigos você jogou fora? Talvez esse seja o único espaço de ação que depende de nós. O restante faz parte do turbilhão da vida. 

O poeta ainda não era idoso quando compôs a música, sua temática de reflexão não diz nada sobre doenças, limites ou morte. Apenas sobre perdas: amigos, sonhos, autoimagem. Revisitar uma música é dar um rápido passeio no passado estando no presente. É lembrar o sentido que a mesma teve em algum momento da vida. Isto é intransferível. Não me refiro a qualquer música, apenas aquelas que nos conduzem numa reflexão existencial porque ressoam no nosso íntimo, mesmo quando não identificamos razões imediatas para tal.  

Os momentos mágicos da vida não se congelam. Luis Miguel, na música “El Reloj”, cantou essa vontade de parar o tempo. Ouvir uma música que nos toca é teimar com a vida, quando tudo nos aponta estranho e distante. É um remédio contra a aridez de alguns dias. É um momento de fuga, que dura cerca de 3 (três) minutos, antes de voltar à luta. Pode ser também um reencontro do que nunca se teve mas sempre se almejou. 

Esse texto é uma tentativa de transmitir racionalmente uma emoção que senti ao receber essa música de um amigo. 

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