Ciência e Cultura no Brasil (V.5, N.11 P.4, 2022)

Tempo estimado de leitura: 13 minute(s)

Autora: Profª Drª Graciela de Souza Oliver, docente da Universidade Federal do ABC

 

 

#PraTodosVerem: A imagem é colorida. Apresenta ao fundo uma rede de grafos. À esquerda, os dizeres “Ciência e Cultura no Brasil”. À direita, o mapa do Brasil com alguns elementos da cultura brasileira em volta.

 

Caro leitor, as palavras sinalizadas com marca texto são explicadas no glossário ao final da página

 

Em 1883, Rui Barbosa entendia que cabia ao Estado o dever de propagar a ciência pois dela dependia o futuro da Nação, pois esta não deveria de ser “essencialmente agrícola”.

A criação desses “focos”, ou bem poderíamos dizer atualmente diversos espaços científicos, deveriam ser empreendidos pelo poder público por duas razões: 1) pois “ é de extrema dificuldade aos particulares”; 2)  pois em face do que hoje podemos nomear como especialização científicas e profissionais, apenas o Estado poderia mediar conflitos sensíveis e ainda manter algumas garantias em prol “dos indivíduos, da segurança material e da ordem jurídica das sociedades” (Barbosa, 1883, X, I, p. 175 apud Lourenço Filho, 2001, p. 130). 

 

Esse trecho me chamou a atenção e me deu um certo constrangimento ao compreender que as discussões sobre ciência e sociedade já foram ao menos melhor avaliadas, se olharmos para nossos últimos quatro anos.  Rui Barbosa permaneceu como alguém erudito no tempo em muitos âmbitos culturais e durante a ditadura militar foi também homenageado por meio do Dia da Cultura e da Ciência, a ser festejado no dia 5 de novembro. 

 

Pela Lei n. 5.579, assinada por Emílio G. Médice em 1970, Cultura e Ciência deveriam ser definidas estritamente nos contornos específicos da vida e obra daquele intelectual apenas. Não cabia regionalismos, nem outras relações possíveis entre ambos os conceitos, nem mesmo as devidas menções às instituições científicas construídas e mantidas desde então e se quer aos seus trabalhadores – os cientistas de fato. É dessa simplicidade de pensamento histórico que nascem os falsos mitos infelizmente.

Cinco anos depois do AI-5, preocupavam-se em comemorar, memorar e divulgar a vida e a obra do “Conselheiro Rui Barbosa” especialmente em instituições de ensino.

Quem trabalha com ensino de história sabe que não apenas esta mas diversas outras imagens míticas, com interpretações unívocas sobre o passado, fizeram parte da cultura escolar durante muito tempo. Acredito que algumas pessoas ainda se lembram de em fila no pátio da escola, no mês de novembro, cantar o Hino da República e aprender algo sobre Rui Barbosa em alguma aula de Organização Social e Política Brasileira. É dessa rotina de agir que infelizmente nascem falsas devoções para com o passado.

 

Muitos anos depois, e amparado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia em 1985, com o qual se esperava acabar com a dependência histórica do desenvolvimento das ciências brasileiras, das ações privadas, militares e em parte também do Ministério da Educação, tivemos em 2004 a primeira Semana Nacional de Ciência e Tecnologia.

Esta sim uma data comemorativa que visava abrir nossos espaços de ciências para uma discussão ampla de seus temas e manter um dialogo com a sociedade por meio de diversas linguagens. Entendia-se, por fim, a ideia de que as ciências seriam um bem público, cujo acesso a esse conhecimento de ponta poderia ser obtido também em uma formação superior, gratuita, laica e de qualidade.

Além disso também se iniciou um debate sobre os caminhos da inovação e as diversas dinâmicas de relação com o Estado. E assim finalmente como se almejou em fins do século XIX, as políticas públicas para CTI poderiam ser discutidas, formuladas, aplicadas, ajustadas e fiscalizadas.

 

Mas o que falar dessas relações entre ciência e cultura nos últimos quatro anos? Será que não há mais espaço para pensar as relações entre Ciência e Cultura como pensou Rui Barbosa?

 

Não sou especialista no seu pensamento, mas o trecho inicial  traz sabidos elementos de sua época e uma atitude ou movimento novo de desenvolvimento das ciências em nossa sociedade. No que tange o primeiro item, entre inúmeros exemplos possíveis, posso citar o fato de muitos fazendeiros ilustrados terem feitos suas próprias experiências de aclimatação, desde o segundo quartel do século XIX até as décadas iniciais do XX, com diversos cultivos. 

 

Júlio Conceição, filho do Barão de Serra Negra, foi um destes que entre diversos empreendimentos, produção e venda de café e membro de diversas sociedades, também procurou aclimatar na orla da praia de Santos, por exemplo, laranjas que depois plantou em Piracicaba. Ele mesmo recebeu Rui Barbosa em sua residência em 1912, como podemos ver na foto abaixo.

Foto:  Fonte: Recortes e fotografias organizadas por Pereira, M. A, F. Disponíveis no IHGB de Santos.

 

As orquídeas ao redor que enquadram a foto acalentam essa ideia de beleza e esplendor da Nação.  Ou ainda, podem ser entendidos como símbolos da opulência, marcando a importância desse momento de enlace, onde possivelmente foram discutidos os meios de retomar a uma política café-com-leite. Representam ainda uma forma de manter presente essa atitude mais antiga para com as ciências, qual seja a do conhecedor, colecionador, aficionado ou, como a historiografia cunhou “homens de ciências” daquele período. Mas note que já na década de 1950, uma orquídea híbrida foi batizada como Catleya Alba Júlio Conceição, como uma forma homenageá-lo, não como cientista, mas como orquidófilo, pois sua coleção teria dado início ao Orquidário de Santos.

 

O custo particular de montar espaços para as ciências de que fala Rui Barbosa, não se tratava apenas do custo financeiro, mas da impossibilidade de se manter atualizado em face da maior precisão dos resultados e de sua validação em redes de experts pelo mundo. Cientistas que não mais estavam apenas relacionados às redes comerciais, e a diversos assuntos, mas principalmente à Museus, Jardins Botânicos, Universidades e Estações Experimentais, ou mergulhados na pesquisa de seus pequenos objetos.

Podemos, portanto, compreender que seu primeiro ponto já indicava que o conhecimento científico especializado e experimental já estava em curso e deveria ter um lugar próprio para seu desenvolvimento, por suas próprias dinâmicas culturais, e assegurado pelo Estado. 

 

Quanto ao segundo ponto, também já se nota que idealmente entre as certezas positivistas das leis matemáticas e naturais de sua época e o costume, as técnicas, os meio de vida, ofícios e profissões deveria haver um elemento imparcial (o Estado) que coordenasse os diversos interesses, contra o reino da ignorância, do micro ao macro e da parte ao todo. 

Na minha prática, onde pude pesquisar essa situação na documentação – por exemplo, no caso da proibição dos cercos de peixe no canal do porto pela Câmara Municipal de Santos, em fins do século XIX – , podemos compreender que esse poder “imparcial das luzes” acabou consagrando determinadas prioridades e modos de tecer essa relação entre ciência e sociedade. 

 

Ao proibir que a pesca artesanal fosse realizada no canal do estuário, em virtude da especificidade da natureza do mangue, aspecto este já embasado nas observações prévias do naturalista Alberto Loefgren, mantiveram como finalidade única do estuário a entrada e saída de embarcações cada vez maiores. Assim, a proibição do uso de uns manteve o uso fruto de outros, mantendo inexplorada cientificamente a região que  permaneceu sob a tutela de um contrato de concessão até 1980, entre outras razões.  

 

Assim, compreendemos quanto ao segundo ponto que já existia uma noção muito específica de quem eram os indivíduos participantes do Estado, sobre qual segurança material se falava, sob que princípio de igualdade e com quais conhecimentos ou não contribuiriam para nosso futuro. Consequentemente, compreendemos também que, se os cercos comprometiam as embarcações e a navegabilidade do canal portuário, e ainda diminuíam a presença das futuras gerações de peixes, porque não respeitavam seus ciclos de vida e marés, tais problemas não se comparam à degradação ambiental produzida pelo porto ao longo de quase um século, em diversos sentidos e para toda a região da baixada santista.  

 

Apenas quero dizer com isso que o custo da não exploração científica, aliada a não preservação do ambiente recaiu sobre todos nós, inclusive para as gerações futuras! Assim, a ciência dever do Estado, leia-se dos adeptos e contratos pactuados, acabou servindo para fins privados com ônus público. Isto é, se os particulares não poderiam bancar a produção científica, o Estado que o fizesse, que se comprasse pronto ou que se deixasse “intocado”, e que por fim tudo  isso deveria retornar como bem “público” e com possíveis ganhos futuros àqueles que são os proprietários no poder. Esse é o jogo republicano. 

 

Deve-se destacar que essa tríade: interesses particulares, Estado e espaços científicos, foi a tônica no mundo no século XX e, precisamos dizer, também nos beneficiamos dela além de pagarmos o ônus dos riscos e da devastação.

Ainda que esse tipo de relação tenha produzido desigualdades econômicas, sociais, ambientais e educacionais diversas ao longo do século XX, ao menos com elas poderíamos tencionar, ou criar voz, para alcançar real processo de democratização, por meio do debate das ideias e melhores ajustes políticos e econômicos.

Sem democracia, na cultura da ignorância, como bem poderia dizer Rui Barbosa, somos todos conduzidos como antigamente, em fila do pátio à sala apenas para sermos disciplinarmente conduzidos, sem cantar ou aprender algo ao menos. É uma cultura da atenção aos mitos vazios.

 

Onde foi que se perdeu até o que Rui Barbosa e Júlio Conceição entenderam sobre a necessidade de aprender ciência com quem a praticava?

Talvez, o movimento de abertura social  de início do século XXI de acesso ao conhecimento científico, no mundo inteiro aliás, tenha espantado uns com o questionamento da impossibilidade de uso infinito dos recursos naturais; ou outros com o grito indígena que prescinde de suas terras para a sua existência; talvez, a outros que se entendem superiores, e pela inversão do olhar nas narrativas que abordam com mais sensibilidade a crueldade feita com o povo negro, se veem incomodados, e por fim, porque para aqueles muito esperançosos as janelas de oportunidade do setor de serviços não foram suficientes para alavancar uma mudança de matriz tecnológica e realizar uma nova inserção no mercado mundial que não via agricultura. 

 

O meu desgosto atual também é motivado por um olhar mais local. Trata-se de perceber que inúmeras vidas desconhecidas para a ciência sucumbiam entre nosso calcanhar, o mar e a areia,  quando em altos verões milhares de pessoas andam para lá e para cá na orla da praia de Santos.

 

Trata-se de um desgosto ao observar que ao fim da pandemia ao invés de aves migratórias, a areia da praia passou a ter novamente o hálito ébrio de cerveja barata, lixo e os pinos de plástico que carregam entorpecentes, que deixam o mar também com odor fétido.

Trata-se de perceber que ao contrário de outras cidades no mundo e no Brasil o turismo em nosso litoral paulista não tem o menor apelo à divulgação científica e respeito pela vida marinha. Nosso cultural mira apenas no consumo inclusive da natureza, nossa biodiversidade, nossas águas e nossos corpos. 

 

Onde nas escolas não se ensina a questionar nossa presença e impacto com base nas ciências? Ou observar em detalhe as nossas relações diversas com o mundo? Acho que esse foi um bom legado do passado, nossas escolas. Mas sem dúvida precisamos renovar nossa discussão sobre o que são as ciências, as tecnociências, as inovações, os diversos movimentos sociais, políticos e os inúmeros processos culturais que compõe a tessitura do mundo, do nosso quintal também, com os quais produzimos sentido de estarmos vivos e não só atuando como consumidores.  Reavivemos os reais mitos que o passado, as diversas religiões, nos ofertam. 

 

Devemos dizer “não” ao retrocesso que representa a cultura ignorância, a manutenção da produção científica e tecnológica apenas nas mãos de particulares, dos militares e dos Estados não democráticos. A sociedade do conhecimento deveria ser um bem público, em usufruto da humanidade para mantê-la e não destruí-la. Ainda que muitas vezes o diálogo seja difícil, que dirá em escala global, é apenas considerando a complexidade da vida é que manteremos Cultura e Ciência em relações dignas de memória.

 

Glossário

Aclimatar: passar por um proceso de adaptação a novas condições climáticas, biológicas, naturais, etc.

Ébrio: que ou aquele que está alcoolizado

Embasado: quee possui algo como base, motivo, causa ou justificação

Erudito: algo ou alguém que possui cultura vasta, sobre determinado assunto.

Fétido: cujo odor é extremamente desagradável; fedido, fedorento.

Pactuado: que foi objeto de pacto, ajuste, combinação; acertado.

Prescindir: passar sem, pôr de parte (algo); renunciar a, dispensar.

Sucumbir: cair sob o peso ou a força de; dobrar-se, vergar.

Tessitura: modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura

Tônica: ponto em que se insiste ou a que se dá mais destaque ao tratar ou debater determinado assunto, tema etc.; ênfase.

Unívoco: que só tem um significado, uma interpretação; não ambíguo.

Usufruto: direito conferido a alguém, durante certo tempo, de gozar ou fruir de um bem cuja propriedade pertence a outrem.

 

 

 

REFERÊNCIAS

Lourenço Filho, M. B. A pedagogia de de Rui Barbosa. Brasília, INEP, 2001, 164p.

Barbosa, R.  Reforma do ensino Primário e várias instituições complementares de instrução pública, Vol. X, Tomo I. 

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