Ciência Básica e Aplicada, eis a questão (V.1, N.2, P.3, 2018)

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Certamente nós cientistas já fomos questionados, talvez por um familiar, ou simplesmente por alguém do público, se as nossas pesquisas têm alguma utilidade prática. Este inocente questionamento, na verdade, está relacionado com a aparente dicotomia que há entre a pesquisa básica e a pesquisa aplicada, aliás, este debate esteve sempre presente na ciência. Para exemplificar, faz 230 anos atrás em uma época onde a medicina dental ainda era considerada duvidosa, o físico alemão Christof Lichtenberg afirmou que: “Inventar um remédio infalível contra a dor de dente, o qual permitiria tirar a dor momentaneamente, poderia ser tão valioso, mais do que descobrir um novo planeta.” Ele estava fazendo referência ao recém-descoberto planeta Urano em 1781. Evidentemente, a afirmação de Lichtenberg diz respeito à importância de buscar soluções úteis e práticas para problemas específicos do cotidiano, no caso a dor de dente, e por outro lado, a procura de novos conhecimentos fundamentais, como o descobrimento de novos planetas.

 

Ao longo da história da ciência, a pesquisa básica desempenhou um papel dominante, com muitas descobertas interessantes. Porém, recentemente observa-se um aumento significativo no crescimento da pesquisa aplicada decorrente, em parte, de perspectivas que põem em ênfase o papel da pesquisa científica na sociedade. Isto levou, consequentemente, a uma abordagem da ciência orientada para o mercado, criando a ideia de que a ciência deva ser guiada por um objetivo útil que responda às expectativas econômicas e sociais.

 

Antes da revolução industrial, o financiamento das pesquisas era muito diferente do que é hoje, o financiamento vinha basicamente de três fontes: (i) Fundos pessoais (os cientistas comumente eram aristocratas, com educação, dinheiro e tempo); (ii) Fundos provenientes da nobreza menos instruída, sem tempo ou interesse em fazer pesquisas por eles mesmos; e (iii) Financiamento obtido pelos próprios cientistas a partir de demonstrações experimentais ou exibições públicas, os famosos “gabinetes de curiosidades”. Após a revolução industrial, os custos da pesquisa científica mudaram de escala e o financiamento tornou-se mais organizado.

 

O financiamento das universidades tornou-se mais vinculado ao financiamento governamental e privado. Agora, as universidades e as instituições de pesquisa geralmente buscam fontes através do governo, licenciamento de patentes, doações, patrocínio privado ou contribuições de alunos. Como resultado, a ênfase da pesquisa está cada vez mais baseada nas expectativas dos financiadores e, portanto, é mais frequente expressar os resultados em termos de benefícios diretos, úteis e imediatos para a sociedade.

 

Após esta breve resenha histórica, que faz referência à origem da aparente dicotomia que há entre a pesquisa básica e aplicada, é importante mencionar que a principal motivação para fazer ciência sempre esteve inspirada na curiosidade, na capacidade intelectual humana de adquirir novos conhecimentos. O papel da ciência é descobrir como o mundo realmente funciona. Porém sabemos também que esta tarefa nunca será totalmente cumprida, porque novos regimes físicos sempre estarão aguardando investigação e podem vir a demonstrar características inesperadas em seu comportamento. Uma avaliação das realizações da ciência pode, na melhor das hipóteses, alegar semelhança com a natureza: a representação de um ou mais fenômenos não é, necessariamente, uma verdade absoluta. Fazendo uma analogia, nós cientistas, somos como os cartógrafos do mundo, procurando sempre por novas teorias que sejam adequadas em uma dada situação ou fenômeno observado.

 

É justamente desta atividade criativa da ciência básica que resulta, como uma consequência, a ciência aplicada. O físico J. J. Thomson, o descobridor do elétron, expressou magistralmente esta ideia numa palestra ministrada no ano de 1916, quando diz o seguinte [1]: “Por pesquisa em ciência pura, quero dizer pesquisa feita sem qualquer ideia de aplicação a questões industriais, mas apenas com a visão de ampliar nosso conhecimento sobre as Leis da Natureza. Eu darei apenas um exemplo da “utilidade” de este tipo de pesquisa, que foi tida como uma grande proeminência na Guerra – me refiro ao uso dos raios-X na cirurgia… Agora, como este método foi descoberto? Não foi como resultado de uma pesquisa em ciência aplicada tentando encontrar um método melhorado de localização de feridas feitas por bala. Isto talvez possa ter levado ao descobrimento de sondas melhoradas, mas não podemos imaginar que isso tenha levado à descoberta dos raios-X. Não, este método é devido a uma investigação em ciência pura, feita com o objetivo de descobrir qual é a natureza da eletricidade”.

 

Podemos ilustrar também o caso do físico e químico Michael Faraday. Em uma de suas palestras, nos anos de 1840, ele mostrou o recém-descoberto fenômeno da indução eletromagnética, onde ao movimentar um ímã perto de um rolo de fio de cobre era capaz de produzir uma corrente elétrica. No final da palestra, um homem do público se aproximou de Faraday e pergunto [2]: “Sr. Faraday, o comportamento do ímã e do rolo de fio foi interessante, mas para que poderá servir?” Faraday, educadamente respondeu, com outra pergunta: “Senhor, para que serve uma criança recém-nascida?” E de fato, alguns anos mais tarde, graças ao fenômeno da indução eletromagnética é que foi possível desenvolver o gerador elétrico.

 

Uma nova teoria científica vinda da pesquisa básica “recém-nascida”, a princípio pode parecer inútil, mas ela tem o potencial de se tornar uma ferramenta indispensável para a pesquisa aplicada. Por exemplo, quem iria imaginar no ano de 1915, quando Albert Einstein publicou seu celebre trabalho sobre o entendimento geométrico da gravitação, que a sua teoria puramente matemática chamada de relatividade geral teria alguma utilidade prática no nosso cotidiano? Hoje em dia, alguns físicos brincam dizendo: “Jogue a relatividade de Einstein pela janela do carro, mas não se esqueça de jogar também o GPS”. Isso mesmo, este milagre tecnológico conhecido como GPS funciona graças à teoria da relatividade geral, mas não só devido a ela. O funcionamento do GPS é tão interessante já que engloba quase toda a Física e Engenharia modernas (as quais são o fruto de pesquisas básicas iniciadas no século passado): o GPS está baseado num sistema de satélites que orbitam ao redor da terra (Engenharia Aeroespacial), os quais emitem sinais de rádio (Engenharia de Telecomunicações) cujo tempo de propagação é medido por relógios atômicos (Física Quântica) tão precisos que requerem ser calibrados tendo em conta efeitos de dilatação temporal (teoria da relatividade geral), e como se isso não bastasse, o cálculo da posição é realizado em tempo real por um aparelho que cabe na palma da mão (Engenharia de Computação).

 

O último exemplo, que mencionaremos a seguir, ilustrará mais uma vez como uma simples curiosidade, sem nenhuma aparente utilidade prática, que surgiu faz muito tempo, hoje em dia se está tornando uma ferramenta indispensável para futuras tecnologias. Faremos referência a uma recente área de pesquisa denominada de Biologia Quântica [3, 4], a qual se encontra na sua primeira infância, e que é o resultado de pesquisa interdisciplinar entre a Física e a Biologia. A concepção desta interessante área de pesquisa começa no ano de 1944 quando o físico quântico Erwin Schrödinger lançou o livro, O que é vida? [5]. Este livro está centrado na seguinte questão fundamental: Será possível dar conta dos fenômenos biológicos que acontecem dentro dos organismos vivos usando conceitos da Física Moderna, por exemplo, os usados na Física Quântica? Após 20 anos, James D. Watson, e, independentemente, Francis Crick, os codescobridores da estrutura do DNA, creditaram o livro de Schrödinger como uma fonte de inspiração para suas pesquisas iniciais. Porém a descrição da molécula de DNA, e em geral a Biologia Molecular, ainda não fazia uso da Física Quântica. Isto só foi possível, no ano de 1994, quando um grupo de pesquisadores mostrou interesse em dar conta, no nível molecular, do fenômeno da fotossíntese [6]. Esta pesquisa pode ser considerada a primeira, ainda que de maneira especulativa, em fazer menção ao uso da Física Quântica na interpretação da fotossíntese. A abordagem moderna da fotossíntese que utiliza explicitamente conceitos da Física Quântica só teve início num artigo publicado no ano de 2007 [7]. Dado que a fotossíntese atinge uma enorme taxa de eficiência para a transferência de energia da ordem dos 95%, que é de longe o mais eficiente processo de transferência de energia conhecido pela espécie humana! Fica claro que as pesquisas centradas no entendimento básico deste fenômeno serão muito importantes para recriar artificialmente o processo da fotossíntese. Assim, uma curiosidade observada na Biologia por um físico quântico que nasceu a mais de 100 anos, pode se transformar na futura tecnologia de construção de células solares mais eficientes.

 

Então, para a inocente questão: a ciência básica tem utilidade? A melhor resposta já foi dada pelo Sr. Faraday, com outra pergunta: para que serve uma criança recém-nascida? Teorias e resultados científicos recém-nascidos, com certeza se tornaram ferramentas indispensáveis para futuras tecnologias a serviço da humanidade.

 

Referências: 

[1] Lord Rayleigh. The Life of Sir J. J. Thomson: Sometime Master of Trinity College. Cambridge University Press; Reprint edition (January 12, 2012).

 

[2] I. Bernard Cohen. Authenticity of Scientific Anecdotes. Nature volume 157, pages 196–197 (16 February 1946).  

 

[3] Lambert, N. et al. Quantum Biology. Nature Physics 9, pp 10–18 (2013).

 

[4] Brookes, J. C. Quantum effects in biology: golden rule in enzymes, olfaction, photosynthesis and magnetodetection. Proceedings of the Royal Society A. 473 (2201): 20160822.

 

[5] Schrödinger, E. What is Life? Cambridge Univ. Press; Reprint edition (1992).

 

[6] Katja L. et al. Analytic Quantum Theory of Electron Transfer with a Reaction Mode Strongly Coupled to the Electron and Weakly Coupled to the Bath. J. Phys. Chem., 1994, 98 (30), pp 7395–7401.

 

[7] Gregory S. E. et al. Evidence for wavelike energy transfer through quantum coherence in photosynthetic systems. Nature volume 446, pp 782–786.

 

Imagem: http://portal.oas.org/Portal/Topic/CienciaTecnolog%C3%ADaeInnovaci%C3%B3n/Programas/CienciasAplicadas/tabid/562/Default.aspx                      

 

Prof. Dr. Ever Aldo Arroyo Montero

Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH)

Universidade Federal do ABC (UFABC)

 

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