E se… a Terra fosse mesmo plana? (V.3, N.4, P.5, 2020)
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Por Julian Andres Munevar Cagigas – CCNH
Para algumas pessoas, fatos confirmados pela ciência são incontestáveis. Para outras, esses fatos podem ser contestados se baseados em estudos consistentes e, embora essas ideias novas possam apresentar resistência no início, no final acabam sendo confirmadas (relatividade especial de Einstein, por exemplo), ou rejeitadas por ideias mais sólidas. Existe outro grupo de pessoas que prefere manter suas opiniões, mesmo que a ciência tenha demonstrado o contrário, ou que não existam bases científicas para confirmar essas crenças, o que, em alguns casos, merece respeito.
Bom, há grupos de pessoas questionam a eficiência das vacinas, das ciências médicas etc… Há, ainda, os ‘terraplanistas’, que afirmam que a Terra é plana. Especialmente, grupos em redes sociais. E após, uma breve pesquisa na internet, inclusive, dá para saber que 7% da população brasileira acredita que a Terra é plana, e que houve uma convenção sobre o tema em São Paulo no ano 2019. Recentemente, uma pessoa morreu nos Estados Unidos tentando provar que a Terra é plana.
Mas, e se a terra fosse mesmo plana? E se, esse tempo todo, nós estivéssemos enganados? Os grupos de pessoas que afirmam que a Terra é plana estão convencidos que a forma do Planeta é de um disco, que, por sua vez, é coberto por um domo. Eles não conseguem enxergar curvatura da superfície da Terra e isso é suficiente para eles. Ela realmente não é tão simples de se observar. Nesse caso, podemos fazer outro exercício para comprovar o formato da Terra: tentar imaginar como seriam diversos fenômenos com os quais lidamos no nosso cotidiano se ela fosse mesmo plana.
Estações: durante as diferentes estações no ano, observamos que a duração do dia é maior no verão e é menor no inverno. Além disso, o verão é caloroso e o inverno é frio.
Poderíamos supor que durante o verão recebemos mais luz do sol e durante o inverno recebemos menos. Se assumirmos que a Terra é mesmo plana, poderíamos pensar que durante o inverno o sol está mais afastado da Terra plana e durante o verão está mais próximo, e dessa forma justificaríamos a variação da temperatura. Mas, ao olharmos um objeto distante ele não parece menor? E, de fato, não é isso que vemos, nunca vimos que o tamanho do sol varie de forma significativa durante as estações.
A nossa Terra plana fica mais complicada de justificar se lembrarmos que, durante o verão, no Brasil, os países do norte passam pelo inverno, e vice-versa.
Quem não sonhou em visitar os Alpes suíços e esquiar na neve? A temporada de neve nos países europeus (e da América do Norte e da Ásia) vai desde novembro até março, justo quando aqui no Brasil estamos no sufoco do verão. Como explicamos que, ao mesmo tempo que em uma parte do mundo temos montanhas cobertas por neve, nesta outra parte do mundo passamos calor e vamos às praias para aproveitar o Sol? Na nossa tentativa de entender a Terra plana, isto quer dizer que o Sol não fornece luz de forma uniforme na superfície da Terra. As estações parecem mais com um fenômeno que se repete de forma cíclica e alternada dependendo do hemisfério, e pensar nelas no cenário de uma Terra plana fica realmente difícil de explicar.
Os fenômenos das estações são consequência da terra esférica se deslocar ao redor do Sol e de ter o eixo de rotação inclinado em relação ao plano imaginário que fazem a Terra e o Sol. Durante uma parte do ano, haverá um hemisfério da Terra que recebe menos luz que o hemisfério oposto, haverá partes onde não escurece (Sol de meia-noite) ou não aparece o Sol, e partes onde a quantidade de luz é mais ou menos igual ao longo do ano (perto do equador). O fenômeno das estações já foi belamente explicado em um post antigo, e é consequência de a Terra ser redonda.
Eclipses: todo mundo já presenciou, pelo menos uma vez na vida, um eclipse de Sol. Isto acontece quando a Lua aparece no meio da linha entre o Sol e a Terra, ocultando por breves instantes o Sol e fazendo escurecer durante o dia. Existem também os eclipses de Lua, e estes acontecem durante a noite: a terra se posiciona entre a linha imaginária entre o Sol e a Lua, e o que vemos da Terra é que a Lua some por alguns minutos, ou fica avermelhada. O eclipse de Lua é uma ótima oportunidade para ver o reflexo da Terra sobre outro objeto celeste, porque quando ele ocorre, a Terra faz sombra na superfície da Lua, impedindo que a luz do Sol chegue à superfície da Lua (afinal, é por essa incidência de luz que vemos a Lua de noite). Todas as imagens que você encontrar na internet sobre o eclipse de Lua refletem a sombra realizada por um objeto esférico, como por exemplo estas tomadas pela NASA. Se a Terra fosse plana, esta sombra sobre a superfície da lua seria uma linha reta. Assim, não há como explicar o eclipse de Lua assumindo a Terra plana.
Tudo bem, tem gente que acha que a NASA fabrica as informações. Porém, há outro efeito da Lua que é visível no nosso cotidiano, o fenômenos das marés, em que vemos o aumento do nível do mar em determinados instantes do dia e de forma periódica. Este aumento da maré é causado pela força gravitacional que a Lua exerce sobre a Terra, e, embora a Terra seja sólida, o mar é um fluido e está mais susceptível à influência de forças externas. Esta força mantém o efeito sobre a água do mar em relação à posição da Lua, mas como a Terra está girando em torno de si mesma, vai ter momentos do dia onde o efeito da maré será diferente para um mesmo lugar. Se a Terra fosse plana, ainda poderia acontecer este fenômeno, porém, com uma frequência menor do que é observado e as marés seriam muito mais complexas de se entender.
Observação da curvatura da Terra: muitos dos que acreditam que a terra é plana argumentam que nunca viram uma curvatura na a superfície da Terra. Nem mesmo dos aviões, onde é um pouco mais fácil de enxergar a curvatura a alturas de 10 km acima da superfície. Na superfície, não conseguimos ver a curvatura da Terra de uma forma marcada porque os nossos sentidos têm limitações para enxergar longas distâncias, e porque as condições meteorológicas algumas vezes atrapalham.
Uma explicação simples de porquê não vemos a curvatura da Terra é a seguinte: o raio da Terra, considerada como uma esfera, é de aproximadamente 6400 km. Se traçarmos a maior linha reta na superfície dessa esfera que seja possível, o comprimento dessa linha será igual a S=2πR, sendo R o raio da Terra. Assim, esta circunferência tem comprimento aproximado de 40 mil km e o 2π (ou 360 graus) é o ângulo que está sendo varrido ao percorrer o círculo (porém, para esse fato ser relevante, é preciso crer que a matemática e, em particular a geometria, funcionam). Se apenas considerarmos a distância para a qual usualmente temos visibilidade boa, que podemos assumir como de 10 km, teríamos que o ângulo que estaríamos varrendo ao longo desta circunferência seria de uma décima de grau (S=θR com o ângulo em radianos). Isso quer dizer que a cada 1 km de distância o horizonte está ficando 1,5 m para abaixo. O nosso olho tem a resolução para poder perceber tão pequena diferença com tanto detalhe (a variação angular da resolução do olho é de 30 cm por cada 1 km), e mesmo assim, para alguns a Terra parece plana porque a variação da curvatura da terra está perto do limite da resolução do nosso olho. A maioria já viu um navio se afastando do litoral, e ao invés de ele ficar cada vez mais pequeno até sumir, ele eventualmente se esconde atrás da linha que traça o horizonte. É possível ver a curvatura da terra em superfícies que não apresentem obstáculos ou uma geografia acidentada.
Finalmente, quero enfatizar que é sabido que a Terra é redonda desde a Grécia antiga. Eratóstenes, demonstrou que a Terra é redonda depois de medir a projeção da sombra em determinada época do ano nas cidades de Alexandria e Aswan. Ele sabia que no solstício de verão, ou exatamente no dia 22 de junho, os objetos na cidade de Aswan não projetavam sombra porque o sol estava diretamente acima deles. E isso deveria acontecer também em Alexandria (no norte de Aswan) se a terra fosse plana.
Se a terra fosse uma esfera, ele deveria ver uma sombra sendo projetada por algum objeto, como um pequeno poste. Ele, de fato, observou uma sombra sendo projetada por um poste, cujo comprimento da sombra era aproximadamente 1/8 do comprimento do poste. O ângulo do triângulo formado pela sombra e o poste era de aproximadamente 7.2 graus, que, por sua vez, é aproximadamente 1/50 vezes o ângulo de um círculo, que é de 360 graus.
Isto quer dizer que a distância entre Alexandria e Aswan é também 1/50 vezes a circunferência da terra, e como ele conhecia a distância entre estas duas cidades (5000 estádios ou 800 km), ele concluiu que a circunferência da Terra devia ser de aproximadamente 250.000 estádios. Como a mesma relação se mantém, quer dizer que o raio da Terra deve ser 8 vezes a distância entre Aswan e Alexandria, que é de aproximadamente 6400 km. Este valor está muito próximo do valor mais aceito na atualidade, de 6370 km. Aqui no Brasil poderíamos fazer o mesmo experimento se no 22 de dezembro de cada ano medirmos o comprimento da sombra de um poste em São Paulo e em Porto Alegre, e fizermos o mesmo raciocínio.
Dito tudo isso, aqui vai a moral da história: não precisa arriscar a vida para demonstrar que a Terra é plana, porque, felizmente, existem inúmeros fenômenos que nos mostram todo dia que ela é redonda. Basta apenas enxergar com atenção, ou, pelo menos, consultar as inúmeras informações disponíveis sobre o tema.
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