Sabia que você voa em aviões repletos de danos? (V.2, N.3, P.2, 2019)
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Por Wesley Góis*
Isso mesmo! Nas aeronaves que você já voou, durante uma determinada viagem de turismo ou de negócios, provavelmente estão repletas de danos. Mas não se preocupe, pois todos estes danos não comprometem a integridade estrutural da aeronave. Na verdade, este artigo tem o objetivo de apresentar, resumidamente, o processo de certificação estrutural de aeronaves de categoria transporte (cargas e passageiros), explicar algumas filosofias de projeto de elementos estruturais aeronáuticos e destacar, principalmente, como estes elementos são tolerantes a danos. Dessa forma, não precisa entrar em pânico, caso, coincidentemente, esteja lendo este artigo num voo! Continue lendo o artigo e não tenha medo, o avião é um produto muito seguro.
Primeiramente, uma aeronave só pode operar em um dado país se o mesmo for certificado pela autoridade aeronáutica local. Em linhas gerais, este certificado garante que todos os requisitos de aeronavegabilidade, definidos em regulamentos estabelecidos pela autoridade aeronáutica, foram cumpridos por uma dada fabricante de aviões. No Brasil a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) é a autoridade aeronáutica responsável pelo processo de certificação de aeronaves.
No site da ANAC você pode encontrar os requisitos de aeronavegabilidade, por exemplo, para aviões categoria transporte – Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC n° 25, Emenda n° 36) – no seguinte endereço: < http://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/rbha-e-rbac/rbac/rbac-025-emd-136/@@display-file/arquivo_norma/BAC25EMD136.pdf>. Ressalta-se que este Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC n° 25, Emenda n° 36) é cópia do regulamento Title 14 Code of Federal Regulations Part 25, Emenda 25-136, em vigor desde 12 de março de 2012, da autoridade de aviação civil, Federal Aviation Administration – FAA, do Departamento de Transporte dos Estados Unidos da América (EUA). Assim, um avião certificado no Brasil, provavelmente, também será certificado nos EUA.
Especificamente, no tocante à certificação estrutural, estes requisitos de aeronavegabilidade são atendidos quando as fabricantes de aeronaves desenvolvem análises estruturais, por meio de simulações computacionais e experimentos (em algumas situações, experimentos em escala real!), relacionados com o comportamento estático e à fadiga/fratura das estruturas do avião.
A análise estática, primeiro momento da certificação de elementos estruturais aeronáuticos, é muito importante, pois é com ela que os engenheiros vão caracterizar as regiões de grande transferência de cargas, pontos de concentração de tensão e avaliar se a estrutura tem margem de segurança para o conjunto de cargas que podem surgir na aeronave devido a manobras em solo e voo, por exemplo. Só que a análise estrutural não para aí! O perfil de carga (cargas de solo – cargas de voo – cargas de solo), num único voo típico de avião de transporte (ver Figura 01), vai se repetir muitas vezes na vida útil da aeronave, caracterizando assim um carregamento cíclico e, consequentemente, a análise de fadiga é mandatória. Além disso, se trincas iniciais já existirem, num dado elemento estrutural, estas também podem propagar devido à presença da carga cíclica.
Figura 01 – perfil de carga (solo-voo-solo) presente num voo típico de avião de transporte. Adaptado de [3]
Salienta-se que a fadiga é um fenômeno de dano progressivo causado, justamente, pela presença de cargas cíclicas. Ressalta-se aqui que a fadiga, segundo extensos estudos realizados pela Força Aérea dos EUA, é a maior causa da presença de trincas nas aeronaves, ver referências [1] e [2]. Estas trincas por fadiga estão relacionadas com a idade e o nível de utilização da aeronave, ou seja, quanto mais antiga a aeronave, mais provável a ocorrência de danos por fadiga, [3]. Foi justamente a fadiga que causou vários desastres aéreos, como o do avião Comet, primeiro avião comercial propulsionado por motores a jato, em 1954. Por outro lado, vale lembrar que a estrutura típica de aeronaves contém também danos iniciais causados por deficiências de material e processos de fabricação.
No próprio RBAC n° 25, Emenda n° 36, tem-se o parágrafo §25.571 – Avaliação de tolerância a danos e fadiga da estrutura. Este parágrafo, explicitamente, apresenta que uma avaliação da resistência dos elementos estruturais, do projeto detalhado e da fabricação deve demonstrar que falhas catastróficas causadas por fadiga, corrosão, defeitos de fabricação ou danos acidentais serão evitadas durante toda a vida útil do avião. É no parágrafo §25.571 do RBAC n° 25, Emenda n° 36, que é apresentado todo o conjunto de filosofias de projeto estrutural quanto à análise de danos – Vida-segura, Falha-segura e Tolerância a danos.
Na filosofia Vida-segura aplicada a uma estrutura, tem-se a quantificação do número de eventos, como voos, ciclos de cargas solo-voo-solo ou horas de voo, durante os quais há uma baixa probabilidade de que a resistência dos elementos estruturais se degrada abaixo de seu valor de projeto devido a trincas por fadiga.
Esta filosofia utiliza metodologias clássicas para análise de fadiga – fadiga de alta ciclagem – método da tensão-vida (S-N) e fadiga de baixa ciclagem – método deformação-vida (-N) para determinar a vida “N” do elemento estrutural. Observa-se aqui que esta filosofia de projeto só pode ser utilizada quando tamanhos críticos de trincas surgem num dado elemento estrutural sem serem detectados por algum método clássico de detecção de trincas (inspeção visual, detalhada, Eddy Current, líquido penetrante, dentre outros).
Por outro lado, na filosofia Falha-segura a estrutura é projetada para manter sua resistência por um período de uso, sem ação de reparo estrutural, após a falha total ou parcial de um elemento principal estrutural. Vale frisar que um elemento estrutural é dito principal quando ele contribui, significativamente, para o transporte de cargas de voo, solo ou pressurização, e cuja integridade é essencial para manter a integridade estrutural geral do avião. Um conjunto de elementos estruturais principais para aviões do tipo transporte são descritos na referência [4].
Figura 02 – curva de propagação de trinca para um dado elemento estrutural principal. Adaptado de [3]
Já a filosofia de Tolerância a danos, fundamentada na Mecânica da Fratura, foi proposta na condição de que deficiências no material ou na fabricação dos elementos estruturais causam a maioria das trincas e falhas em estágios de vida iniciais da aeronave. Dessa forma, assume-se que têm trincas pré-existentes na estrutura e, com a presença de ciclo de cargas, estas trincas podem propagar. A filosofia de Tolerância a danos, a menos que a fabricante prove para autoridade aeronáutica que sua aplicação seja impraticável, deve ser utilizada como filosofia de projeto estrutural em todos os elementos estruturais principais da aeronave.
É a Mecânica da Fratura que vai permitir a construção de diagramas de propagação de trincas para todos os elementos estruturais principais, ver Figura 02. É a Mecânica da Fratura que também vai permitir avaliar a resistência residual nas estruturas trincadas. A resistência residual e as informações das curvas de propagação vão estabelecer o programa de inspeção e manutenção dos elementos estruturais da aeronave.
O objetivo do programa de inspeção é detectar qualquer trinca antes que as mesmas atinjam o seu comprimento crítico. É no tamanho crítico que a trinca passa a se propagar instavelmente e leva o elemento estrutural ao colapso. A Figura 03 mostra, esquematicamente, a curva de crescimento de trinca com os tamanhos de trincas detectáveis e críticos e o intervalo de inspeção resultante.
Figura 03 – determinação de intervalos de inspeção. Adaptado de [3]
Ainda na Figura 03, tem-se que o limite de segurança inicial é o tempo para a falha inicial crescer até o tamanho crítico da trinca. A inspeção inicial é uma fração do limite de segurança inicial. O limite de inspeção segura é o tempo para que uma trinca detectável, por um método de inspeção não destrutiva, cresça até o tamanho crítico. Os intervalos de inspeção são escolhidos como frações do limite de inspeção segura. Isso garante que existam vária oportunidades de inspeção para encontrar trincas antes que elas atinjam o comprimento crítico. Tendo os intervalos de inspeção definidos, os engenheiros da fabricante da aeronave vão definir que ação de manutenção deve ser realizada, caracterizando assim o manual de inspeção e manutenção do avião.
De tudo o que foi exposto, tem-se realmente a impossibilidade de se evitar danos em todos os elementos estruturais da aeronave, durante a vida útil da mesma. O que os acidentes aéreos e a pesquisa científica (Mecânica da Fratura, Análise de Fadiga, Método dos Elementos Finitos e suas formulações não-convencionais, Análise Experimental de Estruturas, Estudos probabilísticos) proporcionaram foram filosofias de projeto que garantem, atualmente, produtos aeronáuticos muito mais seguros.
Referências Bibliográficas:
[1] PENDLEY, B. J., HENSLEE, S. P., MANNING, S. D., Durability Methods Development, Vol. III – Structural Durability Survey: State-of-the-Art Assessment, AFFDL TR-79-3118, 1979. Disponível em:.< https://apps.dtic.mil/dtic/tr/fulltext/u2/a115665.pdf>. Acesso em 14 de fevereiro de 2019.
[2] GRAN, R. J., ORAZIO, F. D., PARIS, P. C., IRWIN, G. R., HERTZBERG, R., Investigation and Analysis Development of Early Life Aircraft Structural Failures, AFFDL TR-70-149, 1971. Disponível em:.< https://apps.dtic.mil/dtic/tr/fulltext/u2/884790.pdf>. Acesso em 14 de fevereiro de 2019.
[3] U.S. DEPARTMENT OF TRANSPORTATION. Federal Aviation Administration. Supplemental Inspection Document Development Handbook For Commuter Aircraft. Disponível em:. < https://www.abbottaerospace.com/wpdm-package/dot-faa-ar-99-xx-supplemental-inspection-document-development-for-commuter-aircraft-01>. Acesso em 14 de fevereiro de 2019.
[4] U.S. DEPARTMENT OF TRANSPORTATION. Federal Aviation Administration. Advisory circular – AC No: 25.571-1D – Damage Tolerance and Fatigue Evaluation of Structure. Disponível em:. < https://www.faa.gov/documentLibrary/media/Advisory_Circular/AC_25_571-1D_.pdf >. Acesso em 14 de fevereiro de 2019.
[5] AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL. Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC n° 25, Emenda n° 36). Disponível em:. < http://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/rbha-e-rbac/rbac/rbac-025-emd-136/@@display-file/arquivo_norma/BAC25EMD136.pdf>. Acesso em 14 de fevereiro de 2019.
[6] DOWLING, Norman E. Mechanical behavior of materials: engineering methods for deformation, fracture, and fatigue. 4. ed. Boston, USA: Pearson/Prentice Hall, 2013. xvii, 936 p., il. ISBN 9780131395060.
*Wesley Góis é mestre e doutor em Engenharia de Estruturas, possui experiência como Engenheiro de desenvolvimento de produtos da EMBRAER e é professor da Universidade Federal do ABC.
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