O (não) lugar da mulher (V.2, N.3, P.4, 2019)

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Por Camila Dias, professora da UFABC, docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS); Fabíola Perez, jornalista, mestranda no PCHS; Josiane Brito, graduada em Economia, mestra e doutoranda no PCHS; Lais Figueiredo, graduada em Ciências Sociais, mestra e doutoranda no PCHS; Mayara Gomes, graduada em Direito, mestra e doutoranda no PCHS; Vanessa Menegueti, graduada em Direito, mestranda no PCHS; Vanessa Ramos, jornalista, mestranda no PCHS; Rosângela Gonçalves, graduada  e mestra em Ciências Sociais e doutoranda no PCHS – todas integram o  Grupo de Pesquisa em Violência, Segurança e Justiça da UFABC – SEVIJU.

 

Mulheres e homens na Pós-Graduação

 

As mulheres são maioria na pós-graduação brasileira de acordo com dados da CAPES, agência que coordena o Sistema Nacional de Pós-Graduação brasileiro.

 

Os números mais recentes, de 2016, mostram que há 165.564 mulheres e 138.462 homens cursando e titulados no mestrado e doutorado, uma diferença de aproximadamente 19%.

 

Só em 2016, houve cerca de 12 mil matrículas e 6 mil títulos de mulheres a mais que de homens no mestrado. No doutorado, foram 57.380 mulheres matriculadas e 11.190 tituladas, ao passo que os homens somaram 50.260 matrículas e 9.415 títulos.

 

O pessoal é político… e também acadêmico

 

O Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça – SEVIJU – também reflete a maior participação das mulheres na pós-graduação, sendo composto por 15 pesquisadoras, nos níveis de doutorado, mestrado, graduação ou já tituladas.

 

Crédito: SEVIJU/Facebook

 

Todas essas mulheres possuem práticas de pesquisa, nos diversos níveis, relacionadas com as temáticas da segurança, da violência e da justiça, campos que são eminentemente masculinos e permeados por múltiplos marcadores de gênero.

 

Historicamente, a divisão sexual do trabalho atribuiu às mulheres atividades reservadas ao interior doméstico e as mulheres passaram a ser excluídas dos espaços públicos em que se tomam as principais decisões a respeito da existência humana.  

 

O aumento de mulheres nos cursos de Pós-Graduação no Brasil impacta consideravelmente esse campo de estudos, pois alguns temas antes invisibilizados na academia, como a institucionalização de mulheres, passam a ser objeto de pesquisa apenas quando as mulheres tornam-se mulheres pesquisadoras.  Foi apenas na segunda onda do movimento feminista, por exemplo, que pesquisadoras buscaram compreender o papel exercido por mulheres em organizações criminosas.

 

Mulheres: vivências e ocupação dos espaços

 

Nesse sentido, no mês que marca a luta das mulheres por reconhecimento e visibilidade, propomos uma breve reflexão sobre as experiências de uma parte das mulheres do SEVIJU nos (muitas vezes tortuosos) caminhos da pesquisa e também sobre os lugares ocupados pelas mulheres que se constituem em agentes centrais nesta pesquisa. O direito e a “justiça”: o não lugar das mulheres.

 

A interlocução entre as ciências sociais e o direito, tem fornecido importantes análises sobre o funcionamento do sistema de justiça e sua relação com outras dimensões da vida social brasileira.

 

Embora se observe essa maior interação entre campos disciplinares, sobretudo, após a redemocratização do país, fato é que as mulheres ocupam ainda poucos espaços representativos no campo jurídico.

 

No STF, por exemplo, apenas três mulheres ocuparam o cargo de ministras em toda a história. No TJ-SP, as desembargadoras não chegam a 10% do total de cargos. No campo do Direito, quanto mais alta a escala na carreira (pública ou privada), mais recorrente a escassez de mulheres. Assim, é inevitável apontar os obstáculos que se impõem às mulheres e outros grupos silenciados, especialmente sobre fazer pesquisa no direito.

 

Crédito: TJ-SP

 

Desse modo, pesquisar o campo jurídico é (ou deve ser), essencialmente contestar discursos, narrativas únicas e estruturas fortemente masculinas e bastante avessas a intervenções externas.

 

Não é incomum que a infantilização e a objetificação de mulheres, ou ainda, o mansplaining (quando um homem “explica” algo óbvio a uma mulher, de forma didática, como se ela não fosse capaz de entender), já que esse campo se constitui há milênios como um tipo de saber que provém dos homens.

 

Contudo, o horizonte sugere que a inserção cada vez mais acentuada de pesquisadoras tem contribuído, para que novos olhares e interjeições circulem nesse campo, o que certamente contribuirá para um saber e fazer jurídico mais plural.

 

Instituições prisionais e socioeducativas

 

De todo o sistema de justiça, talvez o universo prisional seja aquele que as marcas de violência sejam explicitadas de maneira mais inequívoca e o machismo, certamente, é uma das formas pelas quais essa violência se expressa.

 

Ao focarmos o olhar nas relações entre funcionários, emergem muitas questões que merecem reflexão. Agentes penitenciárias entrevistadas por uma das autoras relataram que são tratadas com indiferença e inferiorização no cotidiano profissional por homens que exercem a mesma função que elas.

 

Segundo elas, o assédio sexual aparece como um dos mais difíceis problemas nessas relações, funcionando como “teste” da moralidade da mulher e no qual a classificação como “vagabunda” é um importante marcador.

 

Em outra pesquisa, também foi identificada a ocorrência de intimidações, assédio moral e sexual a agentes penitenciárias entre os próprios colegas de profissão. Tais percepções, presentes nos relatos dessas trabalhadoras, também são compartilhadas pelas integrantes do grupo que trabalham nestes espaços – seja como pesquisadoras ou como jornalistas (neste último caso, experiência que se sobrepõe à da pesquisa para duas das mestrandas do SEVIJU).

 

Se deslocarmos o olhar para o outro lado das grades também será possível perceber os marcadores de gênero que definem os lugares e os não lugares das mulheres presas. Ora a mulher presa é infantilizada a ponto de o substantivo “mulheres” ser substituído por “crianças”; ora é o ser movido pela emoção, sempre em contraposição à racionalidade atribuída aos homens, presos ou não; a louca “mal de mente”.

 

 

Não é raro homens que atuam como agentes penitenciários em unidades femininas afirmarem que consideram esse trabalho “um inferno” porque as mulheres gritam e fazem fofoca o tempo todo. Outros acreditam que é mais fácil o trabalho de ressocializar presas mulheres porque elas não teriam uma “natureza ruim” e só precisam de oportunidades e de atenção.

 

Tais discursos que reforçam estereótipos e sobrepõem discriminações às mulheres presas são comuns em unidades prisionais femininas, demarcando o machismo e a reafirmação dos papéis sociais de gênero e a invisibilidade dessa população que sequer pode ver reconhecidas suas demandas específicas nas instituições de confinamento .

 

Se os marcadores de gênero estruturam as práticas no sistema prisional, não é diferente no sistema socioeducativo (instituições onde adolescentes cumprem medida sócioeducativa em regime de privação de liberdade). O caráter punitivo das internações escancara processos de violência pelos quais as adolescentes passam. Assim como as prisões, esses espaços não possuem especificidades que respeitem ou que reconheçam questões relativas ao gênero.

 

Uma pesquisa realizada em 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) concluiu que a maior parte dessas adolescentes entra no sistema socioeducativo por atos infracionais análogos ao tráfico de drogas e elas são institucionalizadas junto com ou após seus companheiros.

 

Outro aspecto do machismo estrutural presente nas instituições, os cursos profissionalizantes ofertados nas unidades socioeducativas femininas são de cabeleireiro, manicure, maquiagem, pintura em tela, teatro, culinária, horticultura etc, ou seja, predominantemente voltados para o lar, com o objetivo de  preparar as jovens para ocupar o papel de “dona-de-casa”. Já nas unidades masculinas, os cursos ofertados estão voltados ao mercado de trabalho. Tais propostas chegaram às unidades e prisões femininas nos anos 80, motivados pela ideia de que a mulher é a ordenadora das atividades doméstica.

 

Algumas pesquisas relatam, ainda, a incidência de violências como a ausência e escassez de produtos de higiene pessoal, a medicalização e transferência de menores institucionalizadas para clínicas psiquiátricas, além agressões e punição por relações mantidas entre as jovens.

 

Sistema de justiça e Academia: para as mulheres, espaços de luta

 

Ser mulher, jovem, e fazer pesquisa em ambientes como um fórum criminal, um departamento de polícia, uma instituição prisional ou socioeducativa suscita importantes reflexões.

 

À primeira vista, o acesso ao campo por uma mulher pode ser pensado como mais fácil, mas é fundamental problematizar o lugar atribuído à pesquisadora. Ocorre que esse acesso “facilitado” diz repeito justamente aos estereótipos cristalizados quanto à posição e ao papel da mulher na nossa sociedade – frágeis, não ameaçadoras, subalternas, intelectualmente em desvantagem.

 

Os processos históricos de construção da masculinidade envolvem a imposição de uma condição profundamente assimétrica às mulheres nas relações que estabelecem com os homens – independentemente de outras assimetrias que perpassam as relações entre pesquisadoras e sujeitos da pesquisa.

 

Nesse sentido, a circulação de mulheres nos espaços da justiça, das instituições policiais ou prisionais não é percebida ou representada como uma ameaça aos homens que, em regra, compõe a maioria daqueles que atuam nestes ambientes.  

 

As brechas que são aí produzidas, contudo, permitem a constituição de pontos de resistência, a partir dos quais as mulheres têm rompido com a invisibilidade e o silenciamento sobre o conhecimento produzido por elas, sobre elas e com elas.

 

Assim sendo, , passar por tais fendas impõe a necessidade de afirmação das mulheres sobre sua condição de simetria em relação aos homens, especialmente, em termos de colocar-se em condição de igualdade para o diálogo e o debate, assim como em condições de ter suas vozes ouvidas e reconhecidas no igualmente masculino e competitivo espaço acadêmico.

 

Os desafios da luta pelo reconhecimento das mulheres nos espaços do sistema de justiça criminal estão inextricavelmente ligados aos desafios postos à visibilidade das mulheres nos espaços acadêmicos.

 

Referências Bibliográficas

 

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DIAS, Camila C. N. “Pesquisando organizações criminais na prisão: reflexões sobre os (des) caminhos de um trabalho acadêmico”. In: RASIA, J.M. & SALLAS, A.L.F.& SCALON, C. Temas da Sociologia Contemporânea. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora Ltda, 2012.

 

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KERGOAT, Danièle. In. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. (Org.) HIRATA Helena; LABORIE Françoise; DOARÈ, Le Héléne; SENOTIRER. Dicionário Crítico do Feminismo. Fundação Editora da UNESP. São Paulo. 2009.

 

NOLAN, Michael. Lógica do sistema prisional feminino é machista, dizem especialistas. Justificando. 2016. Disponível em: http://www.justificando.com/2016/06/22/logica-do-sistema-carcerario-feminino-e-machista-dizem-especialistas/

 

SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. Cultrix. 2017

 

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