Seis meses sem o Museu Nacional (V.2, N.3, P.3, 2019)

Tempo estimado de leitura: 12 minute(s)

Profª. Dra. Fabiana R. Costa*

Universidade Federal do ABC (UFABC)

 

Prof. Dr. Ivan Nunes* 

Universidade Estadual Paulista (UNESP)

 

*Os autores deste artigo são “crias da casa”, tendo concluído toda a sua formação acadêmica (Mestrado e Doutorado) pelo Programa de Pós-Graduação em Zoologia do Museu Nacional

 

Dois de setembro de 2018. Eram por volta das 19h30 quando, segundo as fontes, tudo começou… já por volta das 20h30, passada apenas uma hora, ao ligarmos a televisão como rotineiramente fazemos ao final de um domingo, deparamo-nos com uma cena que, dificilmente imaginada, certamente será jamais esquecida: o Museu Nacional, fundado por Dom João VI no majestoso palácio construído pelo comerciante Elias Lopes e que acabava, naquele ano, de completar seus 200 anos de existência, ardia em chamas e era consumido pelo fogo, diante dos olhos incrédulos de todos, sem que muita coisa pudesse ser feita.

 

Nesse episódio, foram perdidos acervos bibliográficos (livros e obras raras), científicos (espécimes representativos da biodiversidade, amostras geológicas e objetos etnográficos e arqueológicos) e documentais (documentos únicos sobre línguas indígenas brasileiras já não faladas, por exemplo). O Brasil perdia, naquele momento e testemunhado por todos, páginas e mais páginas da sua História…

 

A importância dos museus

 

Crédito: Museu Nacional/UFRJ

 

Museus são uma biblioteca espaço-temporal do conhecimento humano onde estão representados os elementos de nosso passado, muitos dos quais inacessíveis nos dias de hoje.

 

Entretanto, enganam-se os que, ao pensarem em Museus, acham que falamos apenas de passado. Essas instituições são detentoras de acervos imbuídos de conhecimentos, muitos dos quais poderão ser acessados apenas futuramente, seja pelo tempo necessário para que isso ocorra, seja pela ausência, nos dias de hoje, de ferramentas que nos permitam tal ação.

 

No Museu Nacional, esse cenário é ainda mais notório com a efervescente vida acadêmica oriunda dos seus seis cursos de pós-graduação stricto sensu (Mestrado/Doutorado), que estão entre os mais prestigiados do Brasil. Todos os dias, no maior acervo do país, pesquisadores e estudantes dedicam-se a gerar novos conhecimentos nas áreas de Antropologia Social, Arqueologia, Biologia (Botânica e Zoologia), Geologia e Linguística.

           

A destruição como uma consequência

 

O antigo palácio, que servira de residência à família real portuguesa e em 1892 foi instituído como museu, já, há muito, vinha sendo consumido pelo descaso – algo (infelizmente) mais do que corriqueiro com as instituições públicas – e sofria a penúria de um orçamento restrito e insuficiente para manter a sua envergadura de grande patrimônio histórico, científico e cultural.

 

Representação da fachada do Museu Imperial, atual Centro Cultural da Casa da Moeda e primeira sede do museu, em uma matriz litográfica. Fonte: Museu Nacional – UFRJ

 

O fogo apenas consumou a negligência de que o Museu sempre fora vítima, negligência essa que não é novidade no Brasil. Citando apenas alguns desastres em prédios públicos que nos fizeram perder patrimônios históricos e culturais incalculáveis, podemos mencionar o incêndio no Instituto Butantan, em 15 de maio de 2010. Na ocasião, foi destruído o maior acervo de serpentes tropicais da América do Sul no mundo, estimado em 80 mil exemplares, além de milhares de aranhas e escorpiões. Em 2013, foi a vez do Memorial da América Latina, e, em 2015, do Museu da Língua Portuguesa.

 

Se voltarmos ainda mais no tempo, podemos citar o incêndio que destruiu a maior parte do acervo do Museu de Arte Moderna do Rio, momento em que foram perdidas, inclusive, obras de Pablo Picasso e Salvador Dali. Esses desastres constituem um prejuízo não apenas financeiro, mas, principalmente, uma perda inestimável para a História e a cultura de todos os brasileiros. Precisamos aprender com o passado…

 

Em dois de março, seis meses se completaram desde o fatídico episódio que, além da imponente estrutura, pulverizou mais de 20 milhões de itens insubstituíveis – cumpre dizer – que constituíam o magnífico acervo do Museu Nacional.

 

Mas afinal, a tragédia está na conta de quem?

 

Crédito: Ricardo Moraes / Reuters

 

A resposta é dura e simples: não há que se culpar um ou outro indivíduo, mas a “entidade” culpada, e que assina essa promissória, que já se vê cobrada na própria ignorância que assola uma multidão, é a sociedade.

 

Sim, a conta é de TODOS.

 

É a velha história: nós, como sociedade, somos pobres de conhecimento, de todos os matizes – cultural, científico, histórico, político… – e não reverenciamos nada que seja receptáculo (museus, teatros, casas de cultura, etc) desse conhecimento e todos os seus importantíssimos afins, que sofrem o desmazelo do abandono… e, então, portas fechadas, construções sucateadas, acervos desintegrados. O fogo foi apenas o desfecho de uma situação há muito desalentadora.

           

Nos dias seguintes ao incêndio, a indignação, sempre com o prazo de validade até o próximo descalabro – tão comum no Brasil, haja vista o atual contexto. E, após todos os olhos voltarem-se a um novo episódio veiculado pela mídia, o Museu, consumido pelas chamas, carcomido e desconstruído, aguardou por meses a sua liberação para o início do resgate das peças que pudessem ter resistido às chamas.

 

Machado está entre as peças líticas da pré-história achadas nos escombros. Crédito: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

 

Nesse meio tempo, cumpre dizer, foi apenas na primeira semana após o incêndio que o Museu concentrou as atenções pela falta das quais padeceu à míngua por tantas décadas… o gigante, sempre esmolando para existir, sofreu tamanha exposição que, por alguns dias, fez jus à sua importância no cenário nacional, embora por motivos tão lamentáveis. Ainda assim, seu infortúnio foi logo obscurecido, e arrisco dizer que muitos nem sequer se lembram do ocorrido.

           

E então o que se sucedeu?

 

A mobilização para expor a ferida rendeu ajuda internacional, como o financiamento de 180 mil euros da Alemanha, e de instituições nacionais, como o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), que doou materiais básicos para pesquisas entomológicas, que são os estudos voltados ao mundo dos insetos.

 

Além disso, pesquisadores que tanto trabalharam pelo resgate imediato do acervo no dia do incêndio receberam a chancela de heróis, aqueles mesmos que, ironicamente, no dia a dia sofrem com o mesmo descaso por parte daqueles que os alçaram a esse posto temporário. E, na sequência, ainda tivemos que testemunhar a ignorância de políticos que, usando (lamentavelmente) da situação para se autopromoverem, aludiram à possibilidade de reconstituição integral do acervo destruído, como se o mesmo fosse passível de recuperação tal qual uma lâmpada queimada…

 

Museu Nacional Vive!

 

Crédito: Reprodução Twitter @MuseuNacional

 

Hoje, no ocaso de todo este burburinho, o Museu resiste, pelo esforço de servidores, pesquisadores e alunos, que construíram suas carreiras na instituição, e que tanto se empenham na busca de peças, ou seus fragmentos, pelos escombros, na intenção de que estas, mesmo que escurecidas, danificadas e fragmentadas, possam trazer consigo ainda um pouco da memória que guardam e da História que contam.

 

São essas as peças que hoje, de posse do seu significado ainda resistente ao fogo que as consumiu, não permitem que o gigante que há seis meses agonizava aos olhos de todos torne-se invisível. São essas peças que vêm sendo exibidas em exposições, como a que ocorreu quase imediatamente após o incêndio, nas dependências da Quinta da Boa Vista, marcando um recomeço simbólico do Museu Nacional, e as que acontecem no Centro Cultural da Casa da Moeda “Quando nem tudo era gelo: novas descobertas no continente antártico” para divulgação das pesquisas antárticas, e no Centro Cultural Banco do Brasil “Arqueologia do Resgate”, com as peças que puderam ser recuperadas pelas pessoas engajadas no salvamento daquelas retiradas dos escombros.

 

Sob o mote da campanha “Museu Nacional Vive”, além das atividades de resgate do acervo e restauração dos espaços, ações em escolas, com atividades de assistência ao ensino, também estão sendo continuadas, ajudando a manter a atuação do Museu na esfera escolar, até que suas dependências possam tornar a receber turmas de alunos. Tudo com o intuito de não deixar morrer, consumida nas cinzas que abalaram os alicerces do palácio, a memória do Museu Nacional.

 

Mas, o Museu, tendo resistido aos sinais do tempo, atravessando dois séculos de existência, resistirá ainda ao descaso dos homens, se o mesmo perdurar? Somente o tempo, este ao que o Museu sobrevive e sobreviveria por outros tantos séculos se fosse cuidado, poderá dizer… e, embora a perspectiva seja desencorajadora pelas circunstâncias atuais que colocam a Terra plana novamente em pauta para ser discutida, continuamos a acreditar que o gigante ainda sensibilizará as pessoas pelo seu valor e não pelo fogo que o vitimou.

 

Museu Nacional Vive!

 

Profª. Dra. Fabiana R. Costa(*) possui graduação em Letras (Licenciatura Plena – Português/Inglês) pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sete Lagoas (1998), graduação em Letras – Tradução (Português/Inglês) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2003) por transferência da Universidade de Brasília (UnB), graduação (Bacharelado) em Ciências Biológicas pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus do Litoral Paulista (2007) e pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Zoologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Atualmente é docente na Universidade Federal do ABC (UFABC) – Campus São Bernardo do Campo, e coordenadora do Grupo de Pesquisa de Paleontologia de Vertebrados e Comportamento Animal (CNPq) e do Laboratório de Paleontologia de Vertebrados e Comportamento Animal (LAPC – UFABC). Tem experiência na área de Zoologia – Paleontologia de Vertebrados (Archosauromorpha, com ênfase em Pterosauria) e Ecomorfologia de Vertebrados, com ênfase em Comportamento Animal (particularmente de Xenarthra).

 

Prof. Dr. Ivan Nunes(*) é professor da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus do Litoral Paulista, e Pesquisador Colaborador do Museu de Zoologia/UFBA. Possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2005) e Doutorado em Ciências Biológicas (Zoologia) pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (2012). Este último, com período de estudo no National Museum of Natural History, Washington-DC, EEUU (financiamento do Smithsonian Institution). Tem experiência em ensino de Ciências e Zoologia, e pesquisa na área de Zoologia, com ênfase em Sistemática e Conservação dos Grupos Recentes e Fósseis, atuando principalmente nos seguintes temas: taxonomia e filogenia integrativa de anfíbios anuros e monitoramento de Herpetofauna.

 

Imagem destacada: Fachada do Museu Nacional e seu entorno. Crédito: Roberto da Silva

 

Para saber mais:

 

https://diplomatique.org.br/homenagem-e-clamor-pelo-museu-nacional/

 

http://www.museunacional.ufrj.br/dir/posgraduacao.html

 

https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lembre-outros-incendios-em-museus,70002485245

 

https://extra.globo.com/noticias/rio/exposicao-na-quinta-da-boa-vista-marca-recomeco-simbolico-do-museu-nacional-23073758.html

 

http://portal.inpa.gov.br/portal/index.php/ultimas-noticias/3339-inpa-doa-ao-museu-nacional-do-rio-de-janeiro-materiais-basicos-para-pesquisas-entomologicas

 

https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lembre-outros-incendios-em-museus,70002485245

 

http://portal.inpa.gov.br/portal/index.php/ultimas-noticias/3339-inpa-doa-ao-museu-nacional-do-rio-de-janeiro-materiais-basicos-para-pesquisas-entomologicas

 

http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-12/etapa-de-recuperacao-emergencial-do-museu-nacional-passa-da-metade

 

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/12/10/museu-nacional-recebe-cheque-de-180-mil-euros-do-governo-alemao-para-ajudar-trabalho-de-resgate-do-acervo.ghtml

 

https://www.metropoles.com/brasil/colecionador-brasiliense-doa-2-mil-insetos-ao-museu-nacional-do-rio-2

 

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