Primeiras Observações das “Nieves Penitentes” (V.6, N.10, P.6, 2023)

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Divulgador da Ciência: Prof. Dr. Federico Bernardino Morante Trigoso [Lattes]

 

Oestudo das “Nieves Penitentes” é interessante porque mostra o avanço do conhecimento científico que é resultado de inúmeras contribuições de pesquisadores radicados em vários lugares do mundo. Tudo começa com a curiosidade de algumas pessoas que observam algum fenômeno da natureza que chama sua atenção e que não pode ser explicado pelo conhecimento existente naquele momento. Porém, aos poucos o aprendizado e conclusões dos diversos cientistas que analisam esse fenômeno ao longo do tempo vão se somando até a construção de conhecimentos mais consistentes e consolidados.

Em relação ao tema em discussão, na América do Sul, na região central e desértica dos Andes do Chile e da Argentina, a mais de 4.000 metros acima do nível do mar, há muito tempo alguns exploradores observaram estruturas de neve muito estranhas. Tais estruturas de neve endurecida, com as extremidades voltadas para o Sol, variando entre alguns centímetros e 5 metros de altura, surgiram devido a condições ambientais peculiares e foram genericamente chamadas de “Nieves Penitentes”.

 

“Nieve Penitente” fotografada em março de 1895 na base sul do Cerro Bonete, província de La Rioja, Argentina, a uma altitude de 4.500 metros acima do nível do mar. [Fonte: Hauthal, 1901 – Placa III]

As informações do geólogo Rodolfo Hauthal

Para mostrar a evolução do conhecimento sobre o tema até o início do século XX, utilizarei um artigo de Rodolfo Hauthal, geólogo e explorador alemão, nacionalizado como argentino. Este naturalista nasceu em Hamburgo, Alemanha, em 3 de março de 1854 e estudou geologia e botânica em Estrasburgo. Na última década do século XIX chegou a Buenos Aires onde conheceu Francisco Pascasio Moreno que o nomeou, em 1891, chefe da Seção de Geologia e Mineralogia do Museu de La Plata para servir na Comissão de Fronteiras.

Hauthal menciona vários naturalistas e mostra em seu artigo um interessante panorama de como era o conhecimento sobre as “Nieves Penitentes” até 1901. Ele relata, por exemplo, que notícias da verdadeira “Nieve Penitente” observada na Cordilheira Argentina são encontradas em obras publicadas por Darwin, Habel e Brackebusch. Em 1901 o nome “Nieve Penitente” já estava consolidado porque estas estruturas aglomeradas assemelham-se a uma procissão de penitentes ou nazarenos durante a Semana Santa cobertos por túnicas cônicas. A este respeito, Hauthal escreve: “Nieve penitente! Palavra particular com som estranho! Quem já viu a nieve penitente, seja durante o dia sob o céu azul dos Andes com o sol brilhante, ou à noite sob o céu estrelado sob a pálida luz da lua, nunca esquecerá a impressão mágica deixada por aquelas figuras de ‘nieve penitente’, assim chamada, que tanto se assemelha a penitentes vestidos de branco.

A neve congelada observada por Darwin

Um dos primeiros a registrar a observação das “Nieves Penitentes” na cordilheira dos Andes, na Argentina, foi o naturalista inglês Charles Darwin. Essa informação consta no capítulo XV do livro que escreveu sobre a viagem que fez ao redor do mundo no navio “Beagle”. Nesta parte ele conta os detalhes do “Passo da Cordilheira”. Ele conta que depois de muitos percalços, em 22 de março de 1835, percorreu o pedaço de terra que existia no sopé da serra de Portillo, onde observou o maciço montanhoso denominado Tupungato. A partir daqui começou uma subida dolorosa e difícil. Sobre esta jornada Darwin escreveu:

Montanhas íngremes e cônicas de granito vermelho erguiam-se em ambos os lados, e nos vales havia diversas áreas amplas de neve perpétua. Estas massas congeladas, durante o período de degelo, transformaram-se em pináculos ou colunas (1), que se erguiam de vez em quando no nosso percurso, e por serem tão altas e espessas dificultavam a passagem das mulas carregadas. Em uma dessas colunas de gelo estava pendurado um cavalo congelado, como se estivesse em um pedestal, mas com as patas traseiras estendidas e no ar. O animal, como suspeito, deve ter caído de cabeça em um buraco quando a neve formou um todo contínuo, e então a neve em lugares próximos deve ter desaparecido com o degelo.” Na nota (1) deste relato menciona “Essas estruturas de neve congelada foram posteriormente observadas por Scoresby nos icebergs perto de Spitzberg, e ultimamente, e com atenção cuidadosa, pelo Coronel Jackson (Journal of Geographical Society, vol. V, p. 12) no Neva. O Sr. Lyell (Principles, vol. IV, p. 360) comparou as fissuras que parecem determinar a estrutura colunar com as juntas presentes em todas as rochas, e são mais bem vistas em massas não estratificadas. Devo alertar que no caso da neve congelada a estrutura da coluna deve ser produzida por uma ação ´metamórfica´ e não por qualquer processo durante a deposição.

O Kerzenfeld ou campo de velas de Paul Güssfeldt

Em seu artigo Rodolfo Hauthal também menciona o Dr. Paul Güssfeldt que publicou um livro em 1888 onde descreve campos de “Nieve Penitente” observados em sua viagem pelos Andes chilenos. Este médico, que também foi geógrafo, explorador, escritor, professor e pesquisador, nasceu em 14 de outubro de 1840, em Berlim, na Alemanha, é considerado um dos mais importantes montanhistas do século XIX. Interessou-se e obteve informações sobre a geografia sul-americana, especialmente sobre a montanha mais alta da América, o Aconcágua (6.960,8 metros acima do nível do mar). Com o objetivo de ascender até seu cume, chegou ao porto de Valparaíso em 15 de outubro de 1882. No ano seguinte, em 15 de fevereiro, Güssfeldt fez a primeira tentativa de um europeu para chegar ao topo do Aconcágua, mas só alcançou 6.560 metros. No dia 4 de março daquele ano iniciou uma nova tentativa, chegando aos 6.200 metros, não desistiu dos esforços e no dia seguinte fez uma última tentativa que também falhou.

Antes de seguir para o Aconcágua, em 19 de janeiro de 1883, às 13h30, Paul Güssfeldt fez a primeira subida do vulcão Maipo pela encosta chilena. No livro que publicou em 1888 relata que para fazer aquela subida em 1º de janeiro de 1883 passou pelo Cajón de las Leñas, cruzando o Atravieso de la Leña de 4.107 metros. Quando estava no chamado Cajón Ancho avançou por vários campos de neve com estranhas formações que chamou de kerzenfeld ou Campo das Velas. Porém, esse estranho nome foi corrigido pelos camponeses chilenos que o acompanhavam que chamavam essas formações de “Penitentes”. A respeito disso, Güssfeldt escreveu o seguinte:

Dificilmente é possível dar uma ideia da impressão peculiar que estes campos causam no espectador; mas provavelmente por causa da maneira como surgiram. Atribuiu Letteres a duas influências: o vento e o sol. Em primeiro lugar, os ventos sulistas que sopram constantemente sulcam a superfície da neve, de forma semelhante, embora em dimensões maiores, à forma como são sulcadas as dunas de areia. Surgem elevações e depressões, cristas e sulcos, muitas vezes vindos do oeste; o sol atua sobre eles com toda a força exigida pela altitude, pela baixa capacidade de absorção do ar rarefeito da montanha e pela falta de nuvens na atmosfera. Assim como o cinzel atua sobre o bloco, a radiação solar atua sobre as faixas de neve glacial e, ao cortá-las, criam-se figuras irregulares cujas formas estranhas eclipsam qualquer imaginação humana.

“Nieves Penitentes” ou Karrenform?

No início do século XX, nem todas as observações de “Nieves Penitentes” fora da América do Sul foram comprovadas. Muitas dessas configurações foram observadas na superfície de campos de neve e geleiras, que foram chamadas de Karrenform. Com relação a esse fenômeno, em seu artigo Hauthal menciona o explorador suíço Carl Sulzer que realizou uma descrição de sua subida ao monte Shasta de 4.363 metros de altitude, localizado na Serra Nevada, no condado de Shasta, na região norte do estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Sobre esta ascensão e suas peripécias nos Selkirks das Montanhas Rochosas localizadas a sudeste da Colúmbia Britânica, Canadá, Sulzer publicou um artigo onde registra o seguinte:

Finalmente estamos nos aproximando do nosso destino. Alguns campos de neve ainda nos atrasaram consideravelmente. Eram sulcados por sulcos muito profundos e estreitos, e entre eles havia cristas altas, cujas bordas superiores, um tanto inclinadas, eram pontiagudas, duras e congeladas. Caminhar por aquele terreno e sair com a pele ilesa foi uma verdadeira façanha, e como resultado muitas gotas de suor foram derramadas. Eu nunca tinha visto formações de gelo tão peculiares; é difícil pensar que sejam causados por outra coisa que não seja a intensa ação do vento.

De acordo com Hauthal, Sulzer não está realmente descrevendo “Nieve Penitente”, mas Karren. Isso ocorre porque os Karren se caracterizam por terem sua superfície quebrada em forma de longos sulcos e cristas paralelas com bordas mais ou menos vivas. Pelo contrário, a “Nieve Penitente” é caracterizada pela divisão do gelo em estruturas completamente isoladas dispostas em filas paralelas. A diferença fundamental entre os dois fenômenos é que as “Nieves Penitentes” surgem pelo efeito do derretimento (mais no sentido mecânico) dos raios solares, que parecem esculpir as figuras da neve gelada. Os Karren originam-se dos efeitos da erosão e desnudamento das águas (mais no sentido químico),

As “Pirâmides Penitentes” de William Hunter Workman

Quanto à existência de “Nieves Penitentes” em outros lugares, em 1909 William Hunter Workman publicou um artigo relatando suas observações deste fenômeno no Himalaia. Este personagem foi um médico, geógrafo, explorador e escritor americano nascido em Worcester, estado de Massachusetts, em 16 de fevereiro de 1847. Quando esteve na Índia, naquela época sob domínio inglês, trabalhou como médico e aproveitou sua estadia neste país para fazer viagens longas e perigosas através da cordilheira do Himalaia e do Karakórum. Em sua publicação, Workman conta que no verão de 1908 explorou a geleira Hispar, com 49 km de extensão, e seus ramos que se estendem ao longo da fronteira de Hunza Nagar, ao norte da Índia. Ele também relata que esteve nas geleiras vizinhas de Biafo e Skoro, localizadas no Baltistão. O principal objetivo daquela expedição era realizar uma série de observações da “Nieve Penitente” que, segundo ele, existe em grandes quantidades e em condições muito variadas nestes glaciares. Em 1908 estes locais pertenciam à Índia, mas hoje fazem parte do território do Paquistão.

Segundo seu relato, em seu passeio pelas regiões de Nun Kun, Hispar, Biafo e Skoro, Workman observou uma grande variedade de configurações que ele chama de “Pirâmides Penitentes”. Eram muitas e por isso as classificou, segundo as prováveis causas da sua formação, da seguinte forma: Variedade I: Avalanche. Subvariedades, a, b, c. II: Afundando. III: Condicionado pelo vento. IV: Restos finos. V: Mesa glaciar. VI: Coberto com detritos grossos ou lama, areia ou cascalho. VII: Lacustre ou composto. VIII. Sérac (bloco de gelo fragmentado). Em cada caso, Workman descreve as características dos pináculos que observou e termina o seu artigo dizendo “Como esta classificação se baseia apenas no que foi realmente observado, não pretendo ser exaustivo. Observações adicionais podem acrescentar outras variedades às apresentadas aqui.

 

Nieve penitente condicionada pelo vento, variedade III, sobre uma parede de gelo existente no glaciar Haigatum a 5.500 metros de altitude. Pináculos dispostos em linhas seguindo as inclinações da superfície. [Dr. W. Hunter Workman, fotografia, 1908]

Ideias no início do século XX sobre a formação das “Nieves Penitentes”

No artigo do geólogo Rodolfo Hauthal de 1901, sobre a formação das “Nieves Penitentes”, ele diz o seguinte: “Minhas observações mostram que a nieve penitente é efeito de um processo de derretimento sem a ajuda do vento. O derretimento neste caso não resulta do calor em geral, nem do ar quente que primeiro ataca a superfície do campo nevado e depois molda as figuras isoladas, mas sim provém do calor radiante dos raios solares que num dado direção exerce seu maior efeito. A direção noroeste-sudeste indica uma força que exerce influência máxima em uma direção muito específica, e essa força não pode ser outra senão a dos raios solares, causada pela direção dos raios mais fortes do sol; e só esta ação é o que transforma um campo de neve em penitentes.

No trabalho publicado em 1909 Workman diz: “Em um artigo com o título acima que apareceu no ‘Zeitschrift fiir Gletscherkunde’, Band II., Heft I, 1907, e em um artigo mais detalhado no ‘Alpine Journal’ de maio de 1908, propus que os eixos, pináculos e pirâmides de gelo e neve, que constituem o que se conhece como Nieve Penitente, resultam da ação do calor, seja aplicado pelos raios diretos do sol, seja pela reflexão, seja pelas correntes de ar quente, como observou o Dr. Hans Meyer, em superfícies de neve e geleiras nas quais focos previamente condensados se formaram por diferentes razões, derretendo as porções mais macias e deixando as mais densas como projeções ascendentes”. Para Workman, o principal fator responsável pela formação dessas estruturas é “a ação de fusão do calor como fator comum secundário e final.

Rodolfo Hauthal encerra seu artigo enfatizando que não pretende dizer a última palavra sobre o interessante fenômeno da “Nieve Penitente”, pois este oferece à ciência tantos problemas inexplicáveis que demorará muito até que respostas satisfatórias sejam encontradas. Algumas das perguntas que ele faz são: “Quanto tempo duram os penitentes? E se duram alguns anos, qual é a relação entre eles e a neve que cai todos os anos?” Hauthal termina seu artigo dizendo “o que falta é: primeiro, observações contínuas e sistemáticas feitas em todas as estações do ano; e, mais tarde, para os sábios que não conseguem estudar a neve penitente da Cordilheira, reproduções fiéis que representam não apenas campos inteiros de penitentes em diferentes estágios de desenvolvimento, mas também figuras isoladas. Se estas breves notas derem impulso ao estudo, haverão atingido seu objetivo.

 

Referências

DARWIN, C. (1839/1921). Diario del viaje de un naturalista alrededor del mundo en el navío de S. M. “Beagle”, Tomo II, P. 101. Madrid, Calpe, Colección Viajes Clásicos Editados por CALPE.

GÜSSFELDT, Paul (1888). Reise in den Andes von Chile und Argentinien. Derlag von Gebrüder Paetel, Berlin, 1888

HAUTHAL, Rodolfo (1901). Nieve penitente. Revista del Museo de la Plata, Tomo X, Mayo 1901

HERNÁNDEZ, José Herminio (2020). Biografía de Richard Paul Wilhelm Güssfeldt. Centro Cultural Argentino de Montaña, CCAM, agosto de 2020. Página Web visitada em 4/10/2023:
https://www.culturademontania.org.ar/Historia/biografia-richard-paul-gussfeldt.html

HERNÁNDEZ, José Herminio (2021). Biografía del naturalista y montañista alemán Rodolfo Hauthal. Centro Cultural Argentino de Montaña, CCAM, diciembre de 2021. Página Web visitada em 4/10/2023: https://www.culturademontania.org.ar/Historia/biografia-rodolfo-hauthal.html

SULZER, Carl (1891). Bergfahrten im Far West. Jahrbuch des Schweizer Alpenclub. 26. Jahrgang. 1890-1891. Bern, 1891, p.p. 290-302

WORKMAN, William Hunter (1909). A study of nieve penitente in Himalaya. Paper No 2. Printer by Spottiswoode & Co. LTD., New Street Square, E. C.

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