Antidepressivos durante a gravidez (V.6. N.8. P.7, 2023)

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Renata Silva Jorge, Juliane Midori Ikebara – Laboratório de Neurogenética, Universidade Federal do ABC

 

Neurocientistas sugerem novas ferramentas para atestar a segurança destes fármacos para o neurodesenvolvimento fetal

 

“O Estranho em mim” é um filme da diretora Emily Atef que retrata, com muita sensibilidade, a depressão pós-parto sob a perspectiva de uma mulher que sofre da condição. A personagem principal, Rebecca, apresenta uma grande e crescente dificuldade em estabelecer vínculo com o filho desde o nascimento dele, momento marcado por muito estranhamento e rejeição. Mas esse quadro não se restringe às telas de cinema. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 10% das mulheres grávidas apresentam algum tipo de transtorno mental, como a depressão. Em países de baixa renda como o Brasil, o número médio de mães depressivas no período pós-parto pode atingir cerca de 20% das parturientes [1]

 

 

Assim, engana-se aquele que pensa que os períodos que antecedem e sucedem o parto são simples. Além de oscilações hormonais e mudanças físicas decorrentes da gestação, parto e puerpério, há também a influência de outros fatores, como as alterações na rotina impostas pela chegada de um novo membro na família, o aumento de responsabilidades e inseguranças, a falta de rede de apoio, o uso de substâncias psicoativas, o não planejamento da gravidez, um sistema de saúde ineficiente, violência obstétrica, além de dificuldades socioeconômicas, que são acentuadas em países em desenvolvimento. Todos estes fatores, se somados a quadros anteriores de depressão e predisposições genéticas, podem aumentar o risco do desenvolvimento de depressão durante a gestação e no período pós-parto [2,3]

Nesse contexto, é importante ressaltar que a depressão materna é uma condição incapacitante que vai muito além da tristeza não patológica que pode surgir neste período, popularmente conhecida como “baby blues“, que pode se dar por conta de alterações nos níveis de hormônios como a progesterona, mas desaparece em poucas semanas após o nascimento do bebê. Os sintomas depressivos costumam ser mais persistentes. Além do humor deprimido, também podem ser observados sintomas como a perda de interesse por atividades rotineiras, sonolência excessiva ou insônia, fadiga, sentimentos de inutilidade e culpa, ansiedade excessiva, mudanças significativas no peso e no apetite, diminuição da atenção, pensamentos recorrentes de suicídio, além de vontades súbitas de prejudicar a si mesma ou a criança [2,4].

O diagnóstico para depressão é essencialmente clínico e o tratamento destes sintomas envolve, no geral, a prescrição de psicoterapia e de medicamentos antidepressivos, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs). Dentro desta classe, um dos fármacos mais prescritos é a sertralina, que atua inibindo a recaptação pré-sináptica da serotonina e, desta forma, causa aumento da concentração e disponibilidade deste neurotransmissor nas sinapses, popularmente conhecido como hormônio da felicidade. Além disso, os ISRSs também são importantes na reorganização das sinapses em regiões cerebrais envolvidas com o controle de respostas emocionais. Apesar de o tratamento farmacológico não ser necessário em todos os casos, os antidepressivos são prescritos durante a gravidez quando necessários, uma vez que, até o momento, são considerados seguros tanto para a saúde da mãe quanto do bebê [2].

Por outro lado, recentemente, a embriologista e neurocientista brasileira Luciana Marinho, do Laboratório de Neurogenética da Universidade Federal do ABC (UFABC), e colaboradores da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade de Campinas (Unicamp), publicaram um artigo de revisão no periódico Seminars in Cell and Developmental Biology, intitulado The impact of antidepressants on human neurodevelopment: Brain organoids as experimental tools, sugerindo  que os riscos associados ao uso de antidepressivos durante a gravidez deveriam ser melhor avaliados, através de tecnologias mais recentes. De acordo com o estudo, é essencial investigar se há relação com alterações no neurodesenvolvimento notadas em indivíduos cujas mães fizeram uso de medicamentos antidepressivos durante a gestação [5]. O estudo ressalta que os antidepressivos atuam principalmente no sistema serotoninérgico, mediado pelo neuromediador serotonina. Estudos têm demonstrado que a serotonina tem papel importante na comunicação neuronal durante o neurodesenvolvimento, podendo estar relacionada com o autismo [7,8].

Além de a depressão materna abalar a saúde da mulher e a relação de vínculo entre mãe e filho, totalmente essencial para o desenvolvimento emocional, cognitivo e social do indivíduo, alguns estudos sugerem que talvez possa haver relação entre a exposição aos antidepressivos pela mãe, principalmente no período pré-natal, e alterações no desenvolvimento cerebral de seus bebês. Um destes estudos, por exemplo, indica que exposição aos ISRSs durante o primeiro trimestre da gestação aumenta o risco de transtorno do espectro autista (TEA). Já no período pós-parto, há evidências de que a sertralina e seu metabólitos alcancem o leite materno e, consequentemente, sejam consumidos pelo lactente. Como resultado, bebês expostos indiretamente aos ISRSs costumam apresentar sintomas incomuns, como cólica e choro excessivos, sono desregulado, inquietação, tremores, irritabilidade e dificuldades na alimentação. 

No entanto, estes estudos ainda são inconclusivos, principalmente por serem observacionais ou realizados com modelos animais, cuja fisiopatologia e desenvolvimento cerebral diferem muito da espécie humana. De acordo com Luciana, “os estudos que atestam os antidepressivos como seguros para serem usados durante a gestação são antigos e controversos. Na época em que foram feitos não havia uma alternativa não invasiva para que essas drogas pudessem ser avaliadas de forma mais completa, e de forma não invasiva”. Por isso, há a necessidade de estudos experimentais através dos quais fosse possível avaliar a relação de causa e consequência entre a exposição aos antidepressivos e alterações no desenvolvimento cerebral humano de modo mais controlado, principalmente na fase crítica do neurodesenvolvimento, que se dá ainda in utero. Luciana e os outros pesquisadores sugerem que a utilização de células-tronco humanas de pluripotência induzida (hiPSC) possa ser a chave para investigar o impacto destes fármacos no desenvolvimento do sistema nervoso.

A descoberta das hiPSCs rendeu o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina, em 2012, aos cientistas Shinya Yamanaka e John B. Gurdon [6]. De maneira simplificada, através delas é possível gerar organoides cerebrais, também conhecidos como minicérebros, estruturas que recapitulam fases iniciais de um cérebro em desenvolvimento [9,10]. Os minicérebros podem ser gerados em laboratório a partir, por exemplo, das células da pele de um indivíduo. Essas células são induzidas a retornarem ao estágio de células-tronco, que são capazes de se diferenciar em neurônios e outras células do sistema nervoso. Se cultivadas sob condições similares àquelas presentes no desenvolvimento do embrião humano, as células passam a se agregar e a adquirir características similares a estruturas cerebrais como, por exemplo, córtex e hipocampo.  Luciana afirma que “os organoides cerebrais mimetizam de forma muito fidedigna o primeiro trimestre do desenvolvimento fetal humano”, e que já vêm sendo “utilizados para estudar o neurodesenvolvimento e algumas patologias difíceis de serem reproduzidas em roedores, como a microcefalia” [11, 12, 13].

Assim, como é possível cultivar e acompanhar o desenvolvimento dos organoides cerebrais por até cerca de um ano, os cientistas acreditam que estes constituem uma metodologia muito interessante para avaliar os impactos dos antidepressivos em etapas iniciais do desenvolvimento cerebral, uma vez que poderiam ser tratados com estas substâncias em inúmeras condições experimentais. Isto poderia, inclusive, abrir a possibilidade de reverter essa situação, preservando tanto a saúde da mãe, quanto a do bebê. Por ser um assunto bastante delicado, Luciana enfatiza que a proposta principal é de que as pessoas continuem usando os antidepressivos quando prescritos, mas que novos estudos sejam realizados nos organóides. Caso, nesses estudos mais completos, os antidepressivos sejam apontados como não seguros para o desenvolvimento cerebral do feto, os organoides representariam também uma ferramenta importante para a testagem de novas drogas.

 

Referências:

[1] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Mental health action plan 2013-2020. Genebra, 2013. Disponível em: http://www.who.int/mental_health/action_plan_2013/en/. Acesso em: 29 mar. 2023.
[2] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. WHO guide for integration of perinatal mental health in maternal and child health services. Genebra, 2015. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240057142. Acesso em: 29 mar. 2023.
[3] Mariza Miranda Theme Filha, Susan Ayers, Silvana Granado Nogueira da Gama, Maria do Carmo Leal. Factors associated with postpartum depressive symptomatology in Brazil: The Birth in Brazil National Research Study, 2011/2012. Journal of Affective Disorders, Volume 194, 2016, Pages 159-167, ISSN 0165-0327. https://doi.org/10.1016/j.jad.2016.01.020.
[4] Ministério da Saúde. Depressão pós-parto. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/depressao-pos-parto. Acesso em: 29 mar. 2023.
[5] Marinho LSR, Chiarantin GMD, Ikebara JM, Cardoso DS, de Lima-Vasconcellos TH, Higa GSV, Ferraz MSA, De Pasquale R, Takada SH, Papes F, Muotri AR, Kihara AH. The impact of antidepressants on human neurodevelopment: Brain organoids as experimental tools. Semin Cell Dev Biol. 2022 Sep 14:S1084-9521(22)00269-5. doi: 10.1016/j.semcdb.2022.09.007.
[6] YAMANAKA, S.; GURDON, J. B. The Nobel Prize in Physiology or Medicine 2012. NobelPrize.org, 2012. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2012/summary/. Acesso em: 29 mar. 2023.
[7] DALY, E.; TRICKLEBANK, M. D.; WICHERS, R. Neurodevelopmental roles and the serotonin hypothesis of autism spectrum disorder. In: The Serotonin System: History, Neuropharmacology, and Pathology. [s.l.] Elsevier, 2019. p. 23–44.
[8] HIGA, G. S. V. et al. 5-HT-dependent synaptic plasticity of the prefrontal cortex in postnatal development. Scientific Reports, v. 12, n. 1, 1 dez. 2022.
[9] LANCASTER, M. A. et al. Guided self-organization and cortical plate formation in human brain organoids. Nature Biotechnology, v. 35, n. 7, p. 659–666, 1 jul. 2017.
[10] TRUJILLO, C. A. et al. Reintroduction of the archaic variant of NOVA1 in cortical organoids alters neurodevelopment. Science, v. 371, n. 6530, 12 fev. 2021.
[11] GARCEZ, P. P. et. al. GARCEZ, P.P. et al. Zika virus impairs growth in human neurospheres and brain organoids. Science, v. 352, n. 6287, p. 816–818, 13 maio 2016.
[12] CUGOLA, F. R. et al. The Brazilian Zika virus strain causes birth defects in experimental models. Nature, v. 534, n. 7606, p. 267–271, 11 maio 2016.
[13] WALTER, L. T. et al. Evaluation of Possible Consequences of Zika Virus Infection in the Developing Nervous SystemMolecular NeurobiologyHumana Press Inc., , 1 fev. 2018.

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