|Série Explorando as doenças cardiovasculares por simulações computacionais| #1 – Avaliação Do Fluxo Sanguíneo Em Uma Artéria Coronária Com Aterosclerose (V.6. N.8. P.3, 2023)

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Neste texto da série, o professor e pesquisador João Lameu da Silva Júnior ( UFABC) supervisionou seus discentes Anna Beatriz Fernandes Brito; Guilherme Eras Marano; Karina Catuna Belchior na elaboração deste texto que trata da aplicação de conceitos de mecânica dos fluidos e modelagem computacional à medicina para avaliação de estenose na válvula aórtica

O impacto das doenças cardiovasculares 

As maiores causas de morte mundialmente estão relacionadas com doenças cardiovasculares. Em geral, as manifestações clínicas destas doenças, como infarto do miocárdio (morte do tecido muscular do coração), acidente vascular no cérebro (redução ou falta de sangue no cérebro) e doença vascular periférica, são causadas por um processo de acúmulo de gordura nos vasos (processo denominado de aterogênese) e costumam ter início a partir da meia-idade (ROY et al., 2017; SANTOS et al., 2008).

A aterosclerose, doença cardiovascular devido à aterogênese, é uma das principais causas de morbidade e mortalidade no mundo, afetando milhões de pessoas. A prevalência da doença varia de acordo com a idade, sexo e fatores de risco como tabagismo, sedentarismo, hipertensão arterial e níveis elevados de colesterol no sangue (RIDKER et al., 1998).

O que é aterosclerose?

A aterosclerose é descrita como uma doença cardiovascular caracterizada pelo acúmulo de placas de gordura nas paredes das artérias, causando estenose, isto é, uma redução local do calibre da artéria, reduzindo a circulação sanguínea e aumentando o risco de doenças cardíacas (GUYTON, 2006; MONTANARI, 2016). O processo de formação das placas de gordura começa com um machucado na parede arterial, que pode ser causado por fatores como pressão arterial elevada, tabagismo e altos níveis de colesterol no sangue. O sistema imunológico responde a essa lesão enviando células inflamatórias para o local, o que pode levar à formação de uma placa de gordura. Com o tempo, a placa pode crescer e endurecer, reduzindo o espaço disponível para a circulação sanguínea e, em alguns casos, levando à formação de coágulos (JUNQUEIRA et al., 2013; LOWE et al., 2015). Um dos principais locais onde ocorre a aterosclerose é o sistema das artérias coronárias.

Quais são as artérias coronárias?

As artérias coronárias são responsáveis por suprir o músculo cardíaco com o sangue rico em oxigênio e nutrientes, que é necessário para manter o coração funcionando corretamente. Este músculo é altamente dependente do suprimento sanguíneo adequado para manter sua contração e bombeamento de sangue para o corpo todo (JUNQUEIRA et al., 2013). Portanto, quando as artérias coronárias estão “entupidas”, seja pela formação de placas de gordura ou pela presença de coágulos sanguíneos, o fluxo sanguíneo para o músculo pode ser reduzido ou interrompido, podendo ocasionar dor no peito, insuficiência cardíaca e até mesmo ataques cardíacos. (GUYTON, 2006; JUNQUEIRA et al., 2013; VIRMANI et al., 2000).

Como tratar a aterosclerose?

O tratamento pode incluir mudanças no estilo de vida, como dieta e exercício físico, além de medicamentos para controlar a pressão arterial e o colesterol. É recomendado manter hábitos saudáveis para prevenção de aterosclerose e outras doenças cardiovasculares associadas. (BVSMS, 2021; SBC, 2020; THANASSOULIS, 2022).

Entendendo o sistema cardiovascular

Uma maneira moderna de entendermos os sistemas presentes no organismo humano que dependem de fluídos, o que inclui o sangue, é o uso de modelagem e simulação em CFD (Dinâmica dos Fluidos Computacional, do inglês Computational Fluid Dynamics). Essa técnica consiste em simular computacionalmente o fluxo sanguíneo dentro das artérias e outras estruturas do sistema cardiovascular, permitindo a análise de diversos parâmetros hemodinâmicos (o termo “hemodinâmico” se refere ao estudo da circulação sanguínea), como a velocidade do fluxo, a pressão,  as forças de cisalhamento (atrito entre o sangue e a parede vascular) e a turbulência (padrões desordenados e aleatórios do fluxo de sague)  (MORRIS et al., 2016; ROY et al., 2017). Esta técnica vem tornando-se cada vez mais importante dentro do ramo da engenharia biomédica especialmente devido a suas contribuições à medicina. 

Desta forma, a técnica de CFD tem sido utilizada para a análise de diferentes patologias cardiovasculares, como aterosclerose, hipertensão arterial e aneurismas. Com essas análises, é possível identificar regiões do sistema cardiovascular que estão sob maior estresse hemodinâmico e, assim, auxiliar no desenvolvimento de medidas preventivas e terapêuticas mais efetivas para essas condições (ALMEIDA et al., 2022; MORRIS et al., 2016; ROY et al., 2017).

Neste post é mostrado como a análise por CFD fornece um meio de se avaliar a hemodinâmica coronária considerando um caso saudável e um caso com aterosclerose, a partir de uma geometria arterial de uma paciente de 28 anos obtida de um repositório virtual, mostrado na Figura 1. 

 

Figura 1: (a) Anatomia do sistema coronário, (b) geometria 3D de uma artéria coronária

Fonte: (a) https://www.texasheart.org/heart-health/heart-information-center/topics/the-coronary-arteries/; (b) N.M. Wilson, A.K. Ortiz, and A.B. Johnson, “The Vascular Model Repository: A Public Resource of Medical Imaging Data and Blood Flow Simulation Results,” J. Med. Devices 7(4), 040923 (Dec 05, 2013) doi:10.1115/1.4025983.

 

A partir da geometria da artéria coronária, definimos a artéria coronária direita como o foco do nosso estudo. Conforme ilustrado na Figura 2, avaliamos as três ramificações existentes na coronária e inserimos computacionalmente duas estenoses, reduzindo a área interna da artéria em 40%. Uma das estenoses foi aplicada na artéria identificada como “Coronária Direta 1” e a outra na “Coronária Direita 3”.

 

Figura 2: Geometria da coronária direita contendo as condições de contorno e o sentido do fluxo. Com uma entrada (inlet), três saídas (CD1, CD2 e CD3) e a inserção da estenose em duas artérias.

Fonte: Imagem obtida no software Ansys 2022 R2 Student durante a simulação computacional.

 

Para descobrir o nível de obstrução nas artérias, usou-se o Fluxo Fracionado de Reserva (FFR) uma métrica usada pelos médicos. A FFR é definida como a razão entre o fluxo máximo de sangue possível em uma coronária na presença de estenose e o fluxo máximo de sangue na mesma coronária sem estenose. Isto ocorre na condição de hiperemia, isto é, quando o paciente está sob efeitos de medicamentos que induzem a máxima dilatação das artérias, permitindo maior fluxo de sangue. Um FFR menor que 80% significa obstrução parcial ou total da artéria, isto é, um grande risco, podendo levar a um ataque cardíaco. 

Os resultados das simulações são mostrados nas Figuras 3 e 4. O FFR mínimo obtido na artéria coronária com estenose através da simulação foi de 0,91, ou 91%, que não apresenta risco de isquemia, porém mostra como a pressão diminui nas pontas das artérias coronárias após o sangue passar pela obstrução de cerca de 42%. 

 

Figura 3: Resultados obtidos para a métrica FFR no tempo de simulação de 1 segundo: (a) coronária saudável com a presença de pontos mínimos, de aproximadamente 0,91, em CD2; (b) coronária com estenoses apresentando pontos mínimos do fluxo de sangue forma acentuada na extremidade de todas suas artérias de saída. Os resultados são apenas ilustrativos e foram obtidos pelo software Ansys Student (Fonte: próprios autores).

 

A aterosclerose está diretamente relacionada aos níveis de tensão de cisalhamento entre o sangue e a parede vascular. A tensão de cisalhamento para os dois casos é mostrada na figura 4, onde é observado para o caso saudável um ponto crítico logo abaixo da segunda artéria coronária e para o caso com estenose uma tensão de cisalhamento significativamente maior na região da aterosclerose. Condição essa que a longo prazo pode desencadear problemas cardiovasculares futuros caso a doença se desenvolva de forma progressiva.

 

Figura 4: Representação da tensão de cisalhamento: (a) Coronária saudável com um ponto crítico de tensão de cisalhamento abaixo da segunda artéria; (b) Coronária com estenoses com ponto crítico de tensão de cisalhamento na região em que foi inserida a placa de aterosclerose. Os resultados são apenas ilustrativos e foram obtidos pelo software Ansys Student (Fonte: próprios autores).

 

Conclusão

Apesar do índice FFR do experimento afetado por aterosclerose não indicar risco presente de isquemia, o fluxo sanguíneo parcialmente bloqueado mostra uma forte tensão de cisalhamento, o que poderia acarretar em rompimento da placa de gordura, desencadeando processos inflamatórios e outras doenças cardiovasculares relacionadas. Tendo isso em vista, a simulação por CFD foi extremamente útil para visualização e entendimento do comportamento do sangue em um vaso com aterosclerose, possibilitando a criação de hipóteses futuras, esclarecimento sobre a gravidade desta condição clínica e da importância do cuidado à saúde para prevenção de doenças cardiovasculares, como a prática de exercícios físicos e manter uma dieta balanceada.  

 

Bibliografia

Aterosclerose e arteriosclerose | Biblioteca Virtual em Saúde MS, 2021. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/aterosclerose-e-arteriosclerose/>. Acesso em: 13 mar 2023.

 

ALMEIDA, G. C. et al. Fluidodinâmica Computacional na Avaliação do Risco Futuro de Aneurismas de Aorta Ascendente. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, v. 118, n. 2, p. 448–460, 2022.

 

GUYTON, A.C. e HALL, J.E. Textbook of Medical Physiology, 11th. Ed., Elsevier Saunders, 2006.

 

JUNQUEIRA, L. C., CARNEIRO, J. Histologia básica: texto e atlas. 12ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, p. 183 -184,  2013.

 

LOWE, J. S., ANDERSON, P. G. Stevens & Lowe’s Human Histology. 4ª ed. Philadelphia: Elsevier, Mosby, p. 146 – 148, 2015. 

 

MONTANARI, T. Histologia: texto, atlas e roteiro de aulas práticas. 3ª edição. Porto Alegre: Edição do Autor, 2016. 

 

MORRIS, P. D. et al. Computational fluid dynamics modelling in cardiovascular medicine. Heart, v. 102, n. 1, p. 18–28, 2016.

 

N.M. WILSON, A.K. ORTIZ, AND A.B. JOHNSON, “The Vascular Model Repository: A Public Resource of Medical Imaging Data and Blood Flow Simulation Results,” J. Med. Devices 7(4), 040923 (Dec 05, 2013) doi:10.1115/1.4025983.

RIDKER, P. M. et al. Plasma Concentration of C-Reactive Protein and Risk of Developing Peripheral Vascular Disease. Circulation, v. 97, n. 5, p. 425–428, 1998.

 

ROY, M. et al. Modelling of Blood Flow in Stenosed Arteries. Procedia Computer Science, v. 115, p. 821–830, 2017.

 

SANTOS, M. G. et al. Fatores de risco no desenvolvimento da aterosclerose na infância e adolescência. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, v. 90, n. 4, p. 301–308, 2008.

 

SBC alerta: controle do colesterol é fundamental para minimizar riscos de doenças cardiovasculares. Disponível em: <https://www.portal.cardiol.br/post/sbc-alerta-controle-do-colesterol-%C3%A9-funda mental-para-minimizar-riscos-de-doen%C3%A7as-cardiovasculares>. Acesso em: 13 mar 2023.

 

THANASSOULIS, G.; AFSHAR, M. Aterosclerose, 2022. Disponível em: <https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/doen%C3%A7as-cardiovasculares/arterioesclerose/aterosclerose>. Acesso em: 13 mar 2023.

 

VIRMANI, R. et al. Lessons from sudden coronary death: a comprehensive morphological classification scheme for atherosclerotic lesions. Arteriosclerosis, thrombosis, and vascular biology, v. 20, n. 5, p. 1262–75, 2000.

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