Como o mundo clássico emerge de um mundo quântico? (V.4, N.8, P.10, 2021)

Tempo estimado de leitura: 6 minute(s)

Divulgador da Ciência:

Prof. Dr. Ever Aldo Arroyo Montero [Lattes]

Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH)

Universidade Federal do ABC (UFABC)

Concordemos, a física quântica é no mínimo estranha. Provavelmente todos sabem que o termo “quântico” significa algo: “radicalmente diferente da física do dia a dia”. Isso tem resultados que podem ser bons ou ruins: do lado ruim, por exemplo, algumas pessoas podem explorar essa estranheza da quântica para divulgar, e vender coisas do tipo “tratamentos quânticos para certas doenças incuráveis”; já pelo lado bom, significa que nós cientistas ainda temos muito trabalho a ser feito para explicar como a física quântica se manifesta no mundo real.

É um fato empírico que as regras da física quântica governam o comportamento e as interações das partículas fundamentais da natureza, e já que objetos do nosso cotidiano, como uma xícara de café, estão compostos desses constituintes fundamentais, fica claro que não seria possível fazer uma divisão nítida entre o mundo que obedece regras quânticas, e o mundo que obedece regras clássicas.

Resulta evidente que nossa experiência cotidiana não parece quântica, os objetos macroscópicos que experimentamos podem ser bem descritos pelas leis da física clássica. Então de algum jeito a natureza faz com que um conjunto simples de regras quânticas fundamentais aplicadas a um arranjo extremamente complicado de objetos microscópicos dá origem a regras “emergentes” que governam o comportamento coletivo de objetos macroscópicos. Nesse sentido, as regras clássicas seriam uma consequência das regras quânticas agindo sobre um número enorme de objetos microscópicos.

O mecanismo que explique como se dá essa transição do quântico ao clássico é uma área fértil para pesquisas que exploram os detalhes de esse processo. Seria muito interessante conhecer como a realidade clássica emerge das regras quânticas. Uma proposta para essa explicação é conhecida como “Darwinismo Quântico”. Esta abordagem, amplamente divulgada por Wojciech Zurek do laboratório Los Alamos National Lab, está associada ao conceito de decoerência, em que as interações ambientais são responsáveis por destruir as superposições quânticas, e que consequentemente levam a resultados observados nas medições clássicas. O darwinismo quântico surge do reconhecimento de que a característica mais essencial da realidade clássica é sua objetividade: todos concordam sobre o estado de um objeto clássico.

Para que algo no nosso mundo cotidiano assuma o tipo de estado objetivo que associamos à realidade clássica, todos os observadores devem concordar em qual é o estado de um dado objeto. Cada um desses observadores recebe informações de um subconjunto diferente que pertence ao ambiente em que se encontra aquele objeto. O que significa que vários componentes do ambiente devem conter cópias das mesmas informações sobre o estado quântico do objeto de interesse. A explicação darwinista diz que das múltiplas cópias de informações do estado feitas por meio de interações com o ambiente quântico, os únicos estados para os quais pode haver um consenso são aqueles que podem sobreviver. Ao passar por esse processo, é possível mostrar que os tipos de estados que sobrevivem são do tipo clássico: por exemplo, o resultado da medição de uma propriedade binária seria 1 ou 0, e não uma superposição de 1 e 0 ao mesmo tempo.

Seria interessante testar experimentalmente esta ideia darwinista, e de fato, há uma previsão clara que pode ser extraída: no cenário quântico-darwiniano, o ambiente armazena muitas cópias das informações do estado do objeto de interesse, que podem ser lidas por muitos observadores diferentes, portanto, há certo benefício para qualquer observador de medir mais dessas cópias. Ou seja, ler uma cópia proporciona informação de algo que ainda não sabíamos, e medir duas seria bom porque confirmaria a primeira medição, mas, por exemplo, a décima segunda medição da mesma coisa já não estaria aumentando muito nosso conhecimento sobre o estado do objeto.

Em experimentos quânticos que usam fótons que interagem entre si de maneira que entrelaçam seus estados [1,2]. É possível fazer com que o sistema designado como objeto quântico de interesse esteja em um estado quântico indeterminado específico, logo ele interage com aqueles componentes designados como o ambiente e, em seguida, os estados do ambiente são medidos para extrair informações sobre o estado do objeto de interesse. Quando se faz isso, o resultado está de acordo com o padrão quântico que o darwinismo prediz: medir uma cópia da informação do componente do ambiente leva a um grande aumento no conhecimento sobre o objeto de interesse, mas medir uma segunda cópia não aumenta muito o conhecimento sobre o estado do objeto. E o estado final do objeto de interesse se torna clássico, como esperado.

Nesses experimentos preliminares, o “ambiente” consiste de apenas alguns fótons. Determinar o que realmente está acontecendo exigirá muito mais testes, envolvendo ambientes muito maiores. Porém, quando pensamos sobre esses experimentos é impressionante o nível de controle tecnológico necessário para fazer esses minúsculos “ambientes” artificiais que seriam impensáveis nos anos 1970 e 1980, quando Joos, Zeh e Zurek começaram a desenvolver suas ideias [3,4]. Hoje, temos boas perspectivas para elaborar experimentos bem mais sofisticados, para realmente observar como nosso mundo clássico emerge de seu substrato quântico.

Bibliografia

  1. Ming-Cheng Chen, Han-Sen Zhong, Yuan Li, Dian Wu, Xi-Lin Wang, Li Li, Nai-Le Liu, Chao-Yang Lu, Jian-Wei Pan (2019). “Emergence of Classical Objectivity of Quantum Darwinism in a Photonic Quantum Simulator”. Science Bulletin 64 (2019) 580-585.
  1. Mario A. Ciampini, Giorgia Pinna, Paolo Mataloni, and Mauro Paternostro (2018). “Experimental signature of quantum Darwinism in photonic cluster states”. Phys. Rev. A 98, 020101(R).
  1. E. Joos & H. D. Zeh (1985). “The emergence of classical properties through interaction with the environment”. Zeitschrift für Physik B Condensed Matter volume 59, pages 223–243 (1985).
  1. W. H. Zurek (1982). “Environment-induced superselection rules”. Phys. Rev. D 26, 1862.

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