Os Divinos Mitos do Sol (V.4, N.6, P.9, 2021)

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Divulgador da Ciência:

Annibal Hetem Junior possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado em Astronomia pela Universidade de São Paulo (1992) e doutorado em Astronomia pela Universidade de São Paulo (1996). Atualmente é docente da Universidade Federal do ABC.[Lattes]

 

Não há dúvidas sobre a importância do Sol para nós, e este “nós” inclui a humanidade, os animais e as plantas. Todos os seres vivos do planeta dependem direta e indiretamente do Sol em muitos aspectos.

 

Talvez para alguns representantes da sociedade moderna que vivem dentro de uma bolha de ilusão tecnológica, o Sol possa não ser tão importante. Até mesmo o oposto é possível: há quem acredite que o Sol incomode: “muito quente…”, “muita luz…”. Isso acontece porque os atuais eremitas urbanos têm dificuldade de compreender o óbvio: o calor e a luz são as dádivas mais relevantes que o Sol nos envia.

 

No passado atribuíam-se ao Sol várias outras qualidades que iam além de suas evidentes características como fonte de luz e calor. O Sol já foi considerado uma divindade com vários nomes e personalidades, sendo adorado por várias civilizações ao longo dos séculos. Os textos mais antigos que descrevem o Sol associado à imagem de uma divindade datam de 4000 anos A.C.

 

Os antigos sumérios adoravam o deus Utu [1] (cujo nome mudou para Shamash por volta de 2000 A.C.) que, ao cavalgar pelo céu, gerava o movimento Solar enquanto observava o que acontecia no mundo, lá embaixo. Sempre acompanhado de Inanna, sua irmã, Utu era o executor da justiça divina.

 

 

 

No período noturno, Utu viajava pelo mundo subterrâneo, em direção ao leste onde se reapresentaria no dia seguinte. Utu tem um importante papel nos mitos sumérios do dilúvio. Depois que as águas do rio começam a baixar, Utu apareceu diante de Ziusudra, capitão da arca que salvou a humanidade, estabelecendo uma aliança com os homens. Em seguida, Ziusudra sacrificou alguns animais em homenagem e agradecimento a Utu.

 

Talvez a mais famosa das personificações antigas do deus-Sol tenha sido Rá, o governante da criação [2]. Sendo o Egito dos faraós uma nação eminentemente agrícola, toda a economia e funcionamento do país eram dependentes dos humores do Sol, ao qual era atribuída ainda a responsabilidade pelo crescimento das plantas. Rá era representado por uma forma humana com cabeça de falcão, pois ele “voa acima de todos”, com uma coroa contendo um disco amparado por um par de chifres. A imagem do disco solar no céu era interpretada como o “olho de Rá”, que observava o mundo a cada passagem pelo firmamento. Ele alçou a posição do deus mais importante dos egípcios durante a 5ª dinastia, entre 25 e 24 séculos a.C. [2].

 

 

 

Rá tinha um temido inimigo entre os deuses egípcios: Apophis (também identificado sob o nome de “Apep”), a fonte do caos e da desordem. Aqui observamos mais uma característica importante destes mitos: Rá opunha-se em uma luta eterna contra Apophis para evitar que o caos destruísse o Egito (ou seja, o mundo). Assim, podemos inferir que, para o povo das pirâmides, a ordem era preferível ao caos – o que é bem razoável para uma civilização essencialmente dependente da agricultura [2].

 

Durante a 11ª dinastia, a imagem de Rá fundiu-se à de Amon (que já era uma reinterpretação de Monthu, o deus dedicado à guerra). A criação desta nova divindade denominada Amon-Rá, é considerada por alguns estudiosos como uma “tentativa de religião monoteísta” e coincide com um período de complexas mudanças na sociedade e história do Egito Antigo.

 

Neste mesma época, na outra margem do Mediterrâneo, os gregos cultuavam Hélios, sua helênica personificação do Sol [3]. Hélios tinha como pais os titãs Hyperion e Theia, sendo irmão das deusas Selene e Eos – a Lua e o amanhecer respectivamente. Com o advento da civilização romana, seu nome foi trocado para a versão latina “Sol”, que usamos até hoje.

 

Os textos de Homero (datados entre o 8º e 7º século A.C.) citam o deus Hélios com uma clara ligação com o Sol e seu movimento diurno, que seria resultado da trajetória executada diariamente pelo deus [3]. Curiosamente, durante o período chamado de “helenístico” (entre o final do reinado de Alexandre o Grande e o estabelecimento do Império Romano) houve uma aproximação entre as figuras de Hélios e Apolo, a ponto de haver representações deste último conduzindo seu veículo alado pelos céus, cumprindo o mesmo ritual das outras personificações do astro rei.

 

Ilustração do pintor francês Louis de Chastillon da Fonte de Apolo, erigida entre 1668 e 1671. Trata-se de uma representação do deus Sol dirigindo sua carruagem para iluminar o céu. A fonte é uma das principais atrações dos Jardins de Versalhes, na França (imagem adaptada de [3]).

Do outro lado do mundo, os astecas acreditavam que o astro que passava todos os dias sobre suas cabeças não era o Sol original. A teologia asteca partia do princípio que existia um Sol para cada era cósmica, sendo que o Sol que os iluminava a cada manhã da quarta era chamava-se Tonatiuh [4]. Este deus líder do Tollan, “o céu”, exigia sacrifícios humanos como tributo por mover-se pelo firmamento. Os astecas mantinham um calendário solar sofisticado e preciso, conforme documentado em muitos textos além das construções alinhadas com o Sol.

 

 

Uma das raras associações do Sol com uma divindade feminina foi venerada pela cultura céltica insular através da deusa Áine [5], a deusa irlandesa do verão, riqueza e soberania. A ela eram oferecidos cultos e pequenos sacrifícios no solstício de verão, os quais serviam de oportunidade para solicitar favores ligados a casos de amor e da fertilidade. Seu domínio também se estendia aos animais e às culturas agrícolas.

 

Esta lista está bem longe de ser completa, pois todas as culturas antigas, de uma forma ou de outra tiveram uma imagem mítica do Sol.

 

É triste ver que o homem moderno tenha perdido estes mitos. Nos tempos antigos, o relacionamento com a natureza nos permitia refletir a respeito de nós mesmos e nosso papel junto às entidades que coabitam conosco no planeta. Faz-se necessário, nos tempos que que vivemos, analisar se o conhecimento científico sobre a natureza seria suficiente para entendermos que todos os processos, incluindo nossa sobrevivência, dependem de um bom relacionamento entre humanidade e natureza.

 

Não é necessário abandonar nossas certezas científicas para apreciar as boas e imaginativas histórias dos antigos. Basta cultivar uma pequena gota de intelectualidade humilde.

 

Referências

 

[1]The Sumerians: TheirHistory, Culture, andCharacter (PDF). Kramer, Samuel Noah (1963). The Univ. of Chicago Press. ISBN 0-226-45238-7.

[2]The Burden of Egypt, John A. Wilson, p300, University of Chicago Press, 1951, 4th imp 1963, Republished as “The Culture of Ancient Egypt”, ISBN 978-0-226-90152-7 Uchicago.edu.

[3]Of God and Gods, Jan Assmann. p. 64, University of Wisconsin Press, 2008, ISBN 978-0-299-22554-4.

[4]South and Meso-American mythology A to Z. Bingham, Ann (2004). Infobase Publishing. p. 112. ISBN 0-8160-4889-4.

[5]Dictionary of Celtic Mythology Oxford: MacKillop, James (1998) Oxford University Press ISBN 0-19-280120-1

 

 

 

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1 Resultado

  1. Rita de Cássia disse:

    Parabéns professor e mestre, chamo assim pela capacidade de nos entreter com as palavras certas e nos fazer refletir sobrenomes condição hoje, conhecendo a humanidade de ontem. Mestres como você tem que ser ouvido todos os dias. Muito obrigada.

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