A Literatura Gótica e a Literatura Infantil (V.3, N.9, P.14, 2020)
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“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é existência? É a continuidade do SANGUE.” Zé do Caixão, em “À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964).
Hoje em dia a gente vê por aí várias editoras e livros sendo publicados com foco no terror. Essa temática também é tratada em séries da atualidade, como O Mundo Sombrio de Sabrina ou A Maldição da Residência Hill ou até mesmo Stranger Things. Mas você sabia que este tipo de história já existia e era muito famoso no mundo inteiro desde o século XVIII?
A primeira vez que a literatura Gótica ganha esse nome nos remonta à arquitetura que era feita pelos Godos, que autores chamaram de obras grotescas, absurdas, feitas por bárbaros (o povo Godo), e assim é a nossa literatura: um assombro, grotesca, absurda, bárbara.
A Literatura Gótica existe desde o século XVIII e originou-se na Alemanha, com três tipos de textos: Romance de Cavalaria, Romances de Assombro (ou Gótico) e Romance de Ladinos (Roubo). Os romances de Cavalaria têm como precursor um autor muito importante para a literatura alemã, o Goethe. Já o segundo terá o Schiller como precursor com a obra “O Aparicionista. Das Memórias do Conde de O**”. O Gótico Alemão ainda terá duas divisões: O Romance de Necromancia e o Romance de Fantasma.
O Romance de Fantasmas terá a presença literal de fantasmas, vindo a tona para revelar segredos, perseguir os vivos, mostrar tesouros e etc. Já os Mortos podem aparecer como Esqueletos, mortos vivos etc., que são ressuscitados para cumprir alguma função.
Esse Gótico Alemão vai se desenvolvendo, vai crescendo até chegar no Brasil, onde o Romance de Fantasma e de Esqueletos se manifesta de forma brutal na nossa Literatura (adulta), como em textos “Um Esqueleto” de Machado de Assis, “Venha ver o pôr-do-sol” de Ligia Fagundes Telles, “Dança dos Ossos” de Bernardo de Guimarães, dentre outros textos,
A literatura gótica é como se fosse uma grande esfera, com várias informações e características da cultura gótica, que abrangem todas as culturas como um todo, e existem esferas menores dentro dessa grande esfera, que compreendem as nacionalidades, gêneros, idades, dentre outras informações relevantes que compõem a identidade do autor.
O Gótico, portanto, entra nas raízes da cultura de cada país, ou em problemas intrínsecos às sociedades, questões de sexualidade muito delicadas, ojeriza pela revolução, dentre outras características. O Gótico é como um parasita: ele se instala no seu receptor e sabe onde atingi-lo exatamente. E assim é com a cultura, ele se instala e se manifesta no mais sujo que aquela sociedade pode possuir, jogando para camadas superficiais aquilo que se tenta fazerescondido. Seguindo o pensamento de Lotman, o código de melancolia e sujeira presente em cada cultura é onde o Gótico irá se manifestar e se encontrar.
E uma das temáticas principais presentes na obra é a própria morte, sejam pessoas que a encontraram, como uma velha amiga, pessoas assassinadas, e até mesmo, pessoas que foram trazidas de volta à vida. Mas esses temas são complexos, para os adultos lerem. Como poderíamos, então, falar disso com as crianças? Dá para usar a literatura gótica de uma forma infantil?
É muito comum na cultura brasileira que você ouça de pessoas mais velhas histórias de terror, horror, as famosas “lendas urbanas” e “aconteceu comigo”, onde a credulidade e a racionalidade se esvaem, e a mimese da história ali contada é tão real que a verossimilhança também se faz presente. E se formos nos lembrar, qual era o elemento mais presente dentro dessas memórias tão assustadoras, mas ao mesmo tempo tão prazerosas? Assombrações. Em outras palavras, fantasmas!
Sabemos que através de uma história, a criança precisa extrair alegria, saber compartilhar, desenvolver coragem, disciplina, entender a igualdade, paciência e respeito. Além disso, uma boa história tem uma função lúdica transpassada através de comparações e metáforas com o mundo tangível da criança. E o que é mais tangível, ainda mais no dia a dia que vivemos hoje, do que a própria morte? Em algum momento, a criança vai precisar lidar com isso, e se você a preparar para compreender o que a passagem da morte representa, será um processo muito mais fácil.
Para isso, fica a sugestão de uma obra chamada “Contos de Enganar a Morte” de Ricardo Azevedo, em quevários personagens são a própria morte, pessoas que conseguem a enxergar, o diabo, a diaba e assim por diante. Pode-se trabalhar uma leitura fria e interpretada, ou até mesmo desenvolver contações de histórias sobre os contos ali apresentados.
A Morte é um processo já presente no inconsciente coletivo, uma vez que todos sabemos que iremos morrer em breve, e, nessa obra, podemos perceber como o autor trabalha com cuidado e suavidade, cheio de eufemismos, mas sem nunca fugir do tema.
O “Anjo do Mal” não é nosso inimigo, mas um velho amigo que em algum momento iremos rever, e se a criança tiver consciência da existência da morte, e vê-lac omo algo sutil e existente, será mais fácil de superar alguma perda sem traumas, e a literatura pode ser a ferramenta terapêutica perfeita para isso!
REFERÊNCIAS:
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas . Rio de Janeiro, 366pp. 2003.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: Teoria e prática . São Paulo, 143pp. 1985.
LOTMAN, Iuri. Sobre o problema da tipologia da cultura. Tradução de Lucy Seiki. In: SCHNAIDERMAN, Boris (Org.). Semiótica Russa. Perspectiva, São Paulo. 2017
PUNTER, David & BYRON, Glennis. The Gothic. Blackwell Publishing, Massachusetts, 2004.