Edgar Allan Poe, Sherlock Holmes e o pensamento abdutivo: como os detetives da ficção se relacionam com o método científico #2 (V.3, N.8, P.7, 2020)

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Por Leonardo de Mello Nakamura

* Esta é a segunda parte do texto. Recomenda-se ler a primeira parte antes.

 

No conto “As cinco sementes de laranja”, Holmes afirma “O cérebro ideal, uma vez de posse de um único fato em todos os seus aspectos, deduziria dele não só toda a cadeia de fatos que o produziu, como também as conseqüências que dele se seguiram. Assim como Cuvier foi capaz de descrever corretamente um animal inteiro a partir da contemplação de um único osso, assim também o observador que compreendeu perfeitamente um elo numa série de incidentes deveria ser capaz de descrever com precisão todos os outros, anteriores e posteriores.

 

Novamente observamos os mesmos traços que caracterizam o método de Dupin. Holmes vai além e relaciona tal conceito com o trabalho do barão Cuvier, zoólogo responsável por lançar as bases da ciência da anatomia comparativa e da paleontologia. Nesta linha, em “Um estudo em vermelho”, Holmes diz que “a partir de uma gota d’água, um lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara sem ter visto qualquer dos dois ou ouvido falar deles.”

 

Em “Um estudo em vermelho”, Holmes deixa claro que se baseia em observações e indícios: “Por enquanto, ainda não dispomos de dados […] É um erro capital formular teorias antes de contarmos com todos os indícios. Pode prejudicar o raciocínio.”  Em “A Coroa de Berilos”, Holmes explica como dá prosseguimento ao seu trabalho até chegar à solução: “É um velho preceito meu que, quando se exclui o impossível, o que resta, por mais improvável que seja, deve ser a verdade.”

 

 

Não por acaso, mais uma vez em “Um estudo em vermelho”, Watson compara os métodos de Holmes com a metodologia de Dupin. Ao qual responde: “Sem dúvida, imagina estar me fazendo um elogio, quando me compara a Dupin […] Bem, em minha opinião Dupin era um tipo bastante inferior. Aquele seu truque de interromper os pensamentos do amigo com um comentário oportuno, após um silêncio de 15 minutos, além de espalhafatoso, é superficial. Não duvido que ele tivesse certo dom analítico, mas não era de modo algum o fenômeno que Poe parecia imaginar.” Aqui Sherlock se refere a um trecho da narrativa de “Os Assassinatos da Rua Morgue” em que Dupin descreve os pensamentos de seu amigo. Curiosamente, Holmes realiza este mesmo truque com Watson em outro momento.

 

Tem-se aqui o que Carlo Ginzburg (1986), partindo também de Freud e do crítico de arte Morelli, estabelece como o paradigma de um “saber indiciário”, um método de conhecimento cujo foco está mais na observação de peculiaridades e pormenores do que na dedução. Ginzburg aplica este método a diferentes temas bastante diversos como a história da cultura popular, a teoria da arte, a psicanálise e afirma categoricamente: “Deus está no particular”.

 

Carlo Ginzburg (1939 -) – historiador italiano

 

Ginzburg analisa um método de atribuição de quadros antigos lançado nos anos 1870 por Giovanni Morelli. Morelli propõe que a distinção de obras originais e cópias deve se pautar não nas principais e mais vistosas características de um artista, e sim no exame de pormenores que naturalmente chamam menos atenção. Tais pormenores são em geral indistinguíveis a um olhar não tão atento e passam despercebidos.

 

Tal método indiciário de Morelli em muito se assemelha, quase nos mesmos anos, as publicações protagonizadas por Holmes. O conhecedor de arte apresenta métodos semelhantes ao detetive que descobre a autoria de um crime baseado em indícios imperceptíveis para a maioria das pessoas. Outro paralelo destacado pelo autor é o fato de Morelli ter se formado em medicina, já Doyle havia sido médico antes de se dedicar a literatura.

 

Giovanni Morelli (1816 – 1891) – historiador da arte e político italiano

 

O pensamento indutivo é a base do empiricismo e, como dito anteriormente, afirma que a experiência sensorial é a única fonte do conhecimento. Parte do específico para o todo e, embora não produza novos conhecimentos, busca induzir o conhecimento já existente através da experimentação, observação e análise dos resultados.

 

Já a dedução é a base do racionalismo e está relacionada ao pensamento analítico. Busca analisar várias informações em busca de convergir em direção a um único resultado. O raciocínio dedutivo objetiva concluir algo a partir de informações que já existem, portanto a dedução não produz conhecimentos novos. Trata-se de partir de premissas tidas como verdadeiras para chegar a uma conclusão verdadeira.

 

Por fim, o raciocínio abdutivo é composto tanto pelo pensamento indutivo como pelo pensamento dedutivo. A partir de conceitos de ambos os tipos de pensamentos, o raciocínio abdutivo objetiva a melhor explicação de um determinado evento ou fenômeno.

 

Nem sempre a melhor explicação possui a maior probabilidade de ocorrência. A abdução possui caráter explicativo e intuitivo. Ora, a prática médica se define a partir deste tipo de raciocínio, o que nos indica que o fato de Morelli e Doyle serem formados em medicina não é uma mera coincidência.

 

Referências Bibliográficas:

 

DOYLE, Arthur Conan. A Study in Scarlet. 1 ed. London: Ward Lock & Co, 1887.

DOYLE, Arthur Conan. The Adventure of the Beryl Coronet. 1 ed. London: The Strand Magazine, 1892.

DOYLE, Arthur Conan. The Five Orange Pips. 1 ed. London: The Strand Magazine, 1891.

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

POE, Edgar Allan. Medo Clássico. 1 ed. São Paulo: DarkSide, 2017.

POE, Edgar Allan. The Murders in the Rue Morgue. 1 ed. Philadelphia: Graham`s Magazine, 1841.

 

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