Monitoramento da biodiversidade: breve relato sobre os desafios e início de um projeto de ciência cidadã (V.5, N.8 P.3, 2022)

Tempo estimado de leitura: 13 minute(s)

Autora: Andrea Cristhiane Martins Martini 

Programa de pós-graduação em Evolução e Diversidade, Universidade Federal do ABC 

 

Os desafios do monitoramento da biodiversidade 

Sabe-se que em virtude do modo como os seres humanos ocuparam o território ao longo da história, a biodiversidade desde então teve um declínio. Animais e plantas, alguns que nem chegaram a ser conhecidos, desapareceram ou entraram na lista de ameaçados em extinção. Nesse sentido, conhecer nosso patrimônio biológico é de extrema importância, seja para protegê-lo, como também para destacar cada vez mais o papel ecológico que todos os seres vivos possuem. 

 

A grande questão é que monitorar as espécies de uma determinada localidade não é nada fácil e deixar essa tarefa apenas nas mãos de especialistas, tem nos mostrado que talvez não tenhamos o tempo e a capacidade de expansão que gostaríamos, frente aos impactos que temos visto. Programas de monitoramento de biodiversidade, em áreas protegidas ou não, são uma solução interessante para contribuir nesse levantamento de informações, contudo, eles devem ser realizados de modo padronizado e organizado para que sejam realmente efetivos. 

 

Um inventário de biodiversidade, por exemplo, é uma fotografia do local, que indica um recorte no espaço tempo, apresentando alguns indivíduos (nesse caso, as espécies) que foram observados, a partir de um protocolo estabelecido por um profissional. Essa iniciativa é importante, uma vez que pode ajudar a contribuir nas decisões de manejo de um determinado local ou ainda, servir de base para a elaboração de políticas públicas locais de proteção a esses seres vivos. Quanto melhor a informação, melhor o embasamento para a tomada de decisão no contexto em questão! 

 

Atualmente, existem diversos projetos, seja no mundo acadêmico, seja no mundo empresarial, para identificar os principais seres vivos existentes em uma área, porém, cada iniciativa possui seus objetivos próprios e consequentemente suas interferências, potencialidades e limitações. Essas diferenças de protocolo podem limitar muitas vezes a criação de um bancos de dados, como também reduzir a capacidade de alcance de monitoramento, o que reflete em informações soltas e que muitas vezes não conseguem ser alcançadas ou utilizadas de modo global. 

 

Muitos são os desafios para a realização dos monitoramentos tão necessários. Dentre eles, podemos citar a falta de profissionais capacitados para o estudo de diferentes espécies, uma vez que o desenvolvimento dessa expertise demanda tempo e conhecimento, que não são adquiridos só com a universidade. Além da limitação de recursos humanos, o investimento financeiro é escasso e não costuma ser prioritário, o que implica muitas vezes no recorte de tempo, espaço e, consequentemente, continuidade de projetos desse tipo.

Outro fator é a definição de um protocolo de monitoramento eficiente, com uma metodologia que faça sentido, por meio de registros sistemáticos (organizados) e critérios abrangentes que possam evitar vieses e tendências tão presentes no planejamento dessas atividades. 

 

Baseado nesses desafios, somar esforços no processo de acompanhamento da biodiversidade pode ser um grande passo para se conseguir realizar esse tipo de produção como também, despertar no  nosso olhar a importância de proteger e cuidar dos demais seres vivos, além dos seres humanos. 

 

 

A Ciência Cidadã como alternativa 

A mistura de ciência e cidadania pode ser a grande aliada na preservação e conservação da biodiversidade, além de uma aposta mundial para o combate aos problemas ambientais que atualmente são enfrentados. Contar com a contribuição de outras pessoas, que não só de especialistas e cientistas (isso mesmo, você também pode contribuir!), para o monitoramento pode ser uma alternativa para que possamos alcançar as metas Globais de Biodiversidade, reconhecendo de algum modo o patrimônio biológico presente nos diferentes ecossistemas e contribuindo para a sua conservação e proteção. 

 

Os programas de ciência cidadã têm colaborado em diversos países do mundo para aumentar a coleta de informações relevantes para os pesquisadores de muitas áreas diferentes. Por meio dessas iniciativas, cientistas puderam encontrar aliados para ampliar seu alcance na identificação de variáveis relevantes para os seus estudos. Contudo, apesar de ser uma saída considerável para somar esforços e já apresentar indicadores de sucesso com relação a essas parcerias, ainda é preciso aprimorar seu planejamento e execução para que não venham a sofrer com os mesmos problemas da ciência tradicional realizada pelos especialistas. 

 

O primeiro ponto a ser observado pelos projetos de monitoramento deve ser a escolha das variáveis essenciais que serão acompanhadas por cidadãos ou comunidades. Estudos mostram que a maioria dos dados relevantes para os indicadores de biodiversidade podem ser coletados por qualquer pessoa que siga um protocolo mínimo e que as possíveis falhas desse procedimento são as mesmas enfrentadas por especialistas e cientistas da área, como por exemplo, o desenvolvimento de uma metodologia assertiva.

 

Como segundo ponto, deve-se justamente, elaborar um protocolo muito bem desenhado, que siga um padrão metodológico claro e organizado que considere diferentes estratégias de acompanhamento. Essa fase é importantíssima, seja para o monitoramento participativo, seja ela realizada por especialistas, uma vez que pode comprometer todo o projeto se não for bem realizada. 

 

Por fim, um outro ponto relevante é se inspirar e aproveitar as iniciativas dessa área que já deram certo e vêm sendo aprimoradas em virtude de suas experiências. Como exemplo, a ocorrência de espécies é o indicador de biodiversidade mais utilizado e a coleta desses dados tem sido realizada por meio de plataformas abertas conforme a iniciativa do Inaturalist, que apesar de possuir focos taxonômicos e geográficos distintos, funciona muito bem para esse primeiro propósito já citado. E para facilitar o processo, muitas já são as ferramentas online, repositório de dados e portais que aceitam customizações de projetos e inserção de novos dados para compartilhamento. 

 

Vale destacar que as iniciativas de ciência cidadã, no caso do monitoramento da biodiversidade, não vem para substituir estudos mais robustos sobre as espécies, mas, sim, para contribuir na identificação dos pontos a serem priorizados nas pesquisas, uma vez que os recursos são extremamente escassos. (E quanto mais em conjunto o trabalho, melhor!) Existem projetos, por exemplo, que aceitam voluntários com níveis de experiências muito distintos para a coleta de dados, mas depois essas informações são verificadas por especialistas. Tudo vai depender do tipo de dado e indicador definido pelo projeto. 

 

É importante dizer que as iniciativas de ciência cidadã também possuem seus desafios, que por sinal são bem semelhantes a ciência feita por pesquisadores profissionais. Quando pensamos em projetos de monitoramento da biodiversidade as limitações também giram em torno da disponibilidade de recursos financeiros, infraestrutura e bons protocolos. Por isso, para que possam continuar acontecendo, a soma dos esforços da comunidade científica, sociedade, como também de políticas públicas precisa aparecer nesse meio, no qual infelizmente, não existe prioridade para incentivo de recursos. 

 

Breve relato: iniciativa das áreas protegidas do Município de São Paulo

Para exemplificar os pontos discutidos nessa publicação, escolheu-se uma iniciativa de monitoramento de biodiversidade, mais especificamente de fauna, que vem acontecendo na cidade de São Paulo, fruto da falta de recursos e infraestrutura pontuados anteriormente. Esse embrião de um possível projeto, já sofre as consequências de ter uma pauta que não é prioritária, mas, que vem encontrando forças na criação de redes e compartilhamento de um grande volume de informações que muito podem dizer sobre a fauna presente em um território altamente adensado, urbanizado e com 30% de sua cobertura vegetal de remanescentes da mata atlântica. 

 

O município de São Paulo possui mais de 100 áreas protegidas, sendo elas dos mais variados tipos de uso e proteção. Todas precisam elaborar e revisar um plano de gestão ou manejo de acordo com a legislação vigente para sua categoria e precisam reconhecer a biodiversidade presente no local para que as iniciativas de proteção e conservação possam ser de fato relevantes.

Atualmente, eles contam com uma pequena equipe das divisões de fauna e herbário municipal que contribuem com inventários da biodiversidade em boa parte desses locais. Nesse sentido, como não dispõe de recursos para desenvolver um plano de monitoramento contínuo de biodiversidade, alguns gestores dessas áreas criaram um grupo de troca de observações e registro de representantes de fauna do extremo sul do município. 

 

Em uma breve entrevista com um dos coordenadores dessa iniciativa, identificou-se a partir de 5 perguntas, como eles se estruturaram inicialmente e quais são os planos para o futuro. 

 

Segundo o entrevistado, atualmente o compartilhamento ocorre via um grupo de Whatsapp que possui como integrantes: técnicos de vários departamentos da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA), gestores das áreas protegidas da região, monitores ambientais, representantes do Instituto Butantã e colaboradores locais que estudam ou trabalham com identificação e levantamento de fauna.

Neste canal virtual os participantes enviam fotos ou áudios, a localização e outras condições sobre o momento do registro. Os participantes procuram auxiliar na identificação e encaminhamento no caso do animal estar debilitado ou em locais inapropriados, como a casa de algum munícipe. Eles não dispõem de um protocolo estabelecido para a coleta dessas informações,  nem de uma plataforma organizada para os registros enviados no grupo. 

 

Com relação aos desafios, há convergência com o que foi exposto no início deste texto, reforçando a necessidade de definição de metodologias para coleta e registro de dados. Contudo, como não há recursos e infraestrutura, já iniciaram a criação de uma rede colaborativa que pode ser essencial para a garantia de continuidade dessa iniciativa nos próximos passos. 

 

Já como planos para o futuro, eles possuem o desejo de transformar essa proposta em um projeto de monitoramento de fauna que conte não só com especialistas, mas com outros colaboradores, como por exemplo, moradores da região. Para isso, estão em busca de parceiros que possam contribuir de algum modo nos três pontos cruciais apresentados nessa discussão  (falta de profissionais ou qualificação dos mesmos, de recursos e de um protocolo de monitoramento).

Eles entendem que ao agregar outras pessoas a essa tarefa poderão inclusive reforçar a importância da biodiversidade da região, diminuir as ações de desmatamento e aumentar as iniciativas de proteção dos remanescentes de vegetação daquela região.

Enfim, o monitoramento da biodiversidade é uma meta global definida pela Convenção da Biodiversidade e converge com Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como o 15 – Vida Terrestre, 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis e 17 – Parcerias e Meios de Implementação, precisa ser pauta de políticas públicas locais para que não fique apenas restrito aos institutos de pesquisa e universidades, permanecendo distante da sociedade em geral. Por isso, a ciência cidadã pode ser uma porta para mostrar a relevância dessa atividade. 

 

Espera-se que essa breve reflexão faça com que você, leitor, desperte o olhar para iniciativas de proteção da biodiversidade e procure outras fontes que aprofundem os conceitos de monitoramento e ciência cidadã para quem sabe iniciar alguma forma de contribuição. Além disso, a reflexão serve para inspirar gestores e demais pessoas que precisam iniciar uma proposta, mas não sabem por onde começar a criar sua rede. 

 

 

Referências 

Silveira, L. F. et al. Para que servem os inventários de fauna?. Estudos Avançados [online]. 2010, v. 24, n. 68 [Acessado 14 Maio 2022] , pp. 173-207. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-40142010000100015>. Epub 17 Maio 2010. ISSN 1806-9592. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142010000100015. Acesso em: 28 abr de 2022. 

Kasten P.; Jenkins, S.R.; Christofoletti, R.A. Participatory. Monitoring—A Citizen Science Approach for Coastal Environments. Front. Mar. 2021 Sci. 8:681969. doi: 10.3389/fmars.2021.681969. Acesso em: 28 abr de 2022. 

Chandler, M. et al. Contribution of citizen science towards international biodiversity monitoring, Biological Conservation, Volume 213, Part B, 2017, Pages 280-294, ISSN 0006-3207. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.biocon.2016.09.004. Acesso em: 02 mai de 2022. 

Lukyanenko R; Parsons J; Wiersma YF. Emerging problems of data quality in citizen science. Conserv Biol. 2016;30(3):447-449. doi:10.1111/cobi.12706. Acesso em: 05 mai de 2022

São Paulo (cidade), Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Unidades de Conservação. Divisão de Gestão de Parques Urbanos (DGPU). São Paulo, 27 de Abr. 2022. Disponível em: 

<https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/parques/index.php?p=29 2393> Acesso em: 01 Mai. de 2022. 

São Paulo (cidade), Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Unidades de Conservação. São Paulo, 20 de Abr. 2022. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/unid_de_conservacao/in dex.php?p=3339> Acesso em: 01 Mai. de 2022. 

São Paulo (cidade), Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Mapeamento dos Remanescentes do Bioma Mata Atlântica no Município de São Paulo – PMMA SÃO PAULO. São Paulo, 21 de Mai. 2018. Disponível em: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/pmma/index.php?p=219941> Acesso em: 01 Mai. de 2022.

 

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