Alfabetização Científica na formação e na prática de professores (V.2, N.8, P.3, 2019)
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Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas
A popularização da ciência e da tecnologia para a difusão e democratização dos saberes tem constituído uma pauta permanente nas discussões sobre educação científica. Este século tem testemunhado uma vasta e rica produção tecnológica e científica, desafiando não somente nossa compreensão, como também nossa habilidade em usufruí-las de forma saudável e eticamente sustentável.
O pesquisador americano Jay L. Lemke, em 2006, já discursava que uma educação científica desejável implicava diretamente no compromisso social pela melhoria da qualidade de vida das pessoas. Não é possível pensar em educar cientificamente uma sociedade se, de alguma forma, as pessoas não puderem compreender quais as implicações da ciência e da tecnologia em suas vidas, desde o uso de utensílios do cotidiano, como televisores, micro-ondas, aplicativos para diversas finalidades, até instrumentos que contam com avanços da nanotecnologia e tantas outras invenções e aplicações.
Do ponto de vista da escola, precisamos reunir esforços para que o desenvolvimento científico dos e das estudantes ultrapasse os princípios e as teorias abstratas, incorporando experiências e questões concretas. O que queremos dizer é: certamente, os conceitos, as definições e as teorias são muito importantes; mas também é muito importante pensar bem em como os trabalhamos nas salas de aula, ou seja, as formas de ensinar.
Nessa perspectiva, a formação de professores parece-nos o espaço ideal para a necessária reflexão, construção e reformulação do trabalho docente. E é nesse espaço de formação e aprimoramento que os professores têm procurado novas estratégias formativas para lidar com os desafios na sala de aula e com o acesso que os alunos têm à tecnologia muito antes de chegar à escola. A ideia é inovar, mas nem sempre inovar significa fazer algo mega diferente, que ninguém fez. Muitas vezes, é a partir do compartilhamento de práticas com seus pares, de uma conversa informal que a criatividade docente vem à tona e que muitas práticas se reinventam e conquistam nossos jovens.
Contudo, alguns professores relatam a dificuldade de fazer esses cursos de formação continuada, ora por conta da falta de tempo para os encontros presenciais, ora porque alguns desses cursos têm um caráter de “transmissão de conhecimentos”, isto é, são desenvolvidos com o pressuposto que o formador “vai ensinar o professor a dar aula”; que vai ensinar o que ele já sabe fazer! E eles têm razão!
Então, defendemos a ideia de fortalecer o desenvolvimento de uma alfabetização científica nas salas de aula e ainda fazer isso de uma maneira mais dialógica, acolhendo as experiências e os saberes de cada um, professores e alunos. Assim, pensamos em um espaço permanente de formação, de descontração, de lazer, de prazer, de acolhimento, um lugar para a construção e para o compartilhamento de materiais e práticas.
Acreditamos que a criação de um espaço assim, além de contribuir para a formação docente, traz os jovens para a universidade, divulga a produção acadêmica, abre-se, literalmente, a porta do saber, do aprender, do trocar. É pensar em projetos, feiras, mostras culturais, espaços para estudantes, professores, comunidade escolar, um espaço para todos!
É pensar formação docente junto com os discentes, num contexto de popularização do conhecimento, num contexto de fomentar o processo individual e coletivo de alfabetização científica.
No contexto de formação sabemos que são várias as concepções e os princípios que fundamentam as discussões, as atividades, as propostas e os currículos. Porém, de acordo com a nossa identidade docente, assumimos a alfabetização científica como o pressuposto central do trabalho do professor de Ciências/Biologia e a compreendemos a partir do que autores como Cazelli e Creso escreveram em 2001 com base em um documento de uma organização internacional, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE): trata-se da capacidade das pessoas relacionarem o conhecimento científico com a habilidade em tirar conclusões baseadas em evidências para que possam tomar decisões sobre vários assuntos da vida cotidiana. Ou seja, que as pessoas realizem ações e façam escolhas na vida usando o desenvolvimento científico.
E como há outras definições no campo acadêmico, outras autoras como Sasseron e Carvalho (2008) identificaram repetições entre elas, constituindo seus “Eixos Estruturantes da Alfabetização Científica”.
Tais eixos reúnem características e padrões que recorrentemente se apresentavam como fundamentais para que um sujeito fosse considerado alfabetizado cientificamente.
O primeiro eixo se refere à compreensão de conceitos científicos fundamentais e termos básicos; o segundo eixo tem como foco a compreensão sobre a natureza da ciência e sua dimensão política e ética enquanto que o terceiro eixo abarca as relações entre a ciência, a tecnologia, a sociedade e o meio ambiente.
De acordo com a amplitude desses eixos, observamos que a ideia de alfabetizar cientificamente um sujeito pressupõe, sobretudo, sua capacidade de compreender como a ciência interfere em sua vida e como também sua atuação no mundo contribui para o desenvolvimento científico; de lidar com questões autênticas a partir de investigações e de posicionar-se criticamente.
Diante da necessidade de buscar evidências sobre o desenvolvimento da alfabetização científica no trabalho docente, Sasseron e Carvalho (2008) propuseram três indicadores com “a função de nos mostrar algumas destrezas que devem ser trabalhadas quando se deseja colocar a AC em processo de construção entre os alunos” (p. 338).
O indicador 1 se refere às informações obtidas, se elas foram seriadas, organizadas, classificadas. O indicador 2 está relacionado ao pensamento, como é o raciocínio. E o indicador 3 tem relação com a compreensão da situação, se houve construção e teste de hipóteses, se teve uma justificativa para aquela situação, se teve uma explicação.
Nesse sentido, com o intuito de contemplar a alfabetização científica e ainda pensando naquilo que falamos sobre a necessidade de um espaço de construção e troca de materiais e estratégias didáticas para o ensino de Ciências e Biologia, organizamos a criação do que chamamos de experimentoteca, junto com alguns professores da rede pública do ABC paulista, em uma formação continuada semipresencial, de modo a privilegiar a elaboração de instrumentos de ensino, de materiais e de estratégias de ensino de Ciências / Biologia à luz de algumas discussões que desenvolvemos em alguns encontros presenciais, de saídas a campo e trocas de experiências.
Todo esse processo tinha que ser alicerçado na ideia da alfabetização científica, seus eixos e seus indicadores para que pudéssemos refletir sobre o que foi produzido de forma mais criteriosa.
Entendemos que essa produção de material e de estratégias é uma tarefa muito particular do professor porque ele precisa mobilizar os conhecimentos que julga necessários, suas ideias sobre o ensino e sobre a forma de ensinar e a relação que ele estabelece com os seus alunos.
O mesmo acontece com os discentes. Ao participarem de espaços de formação ou de cursos, colocam em evidência tudo o que sabem, suas ideias e concepções e suas experiências. Mostram a relação que estabelecem com o conhecimento científico e que lugar esse conhecimento ocupa em suas vidas.
Em tom de despedida (talvez provisória) de nosso diálogo, aproveitamos para frisar a importância do trabalho do professor, que não é uma tarefa qualquer! Ao contrário, é uma atividade social e profissional cheia de desafios, de uma possibilidade real e permanente de transformar a vida de outras pessoas.
Imagem destacada: Pixabay
Referências Bibliográficas
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