Uma Breve Jornada sobre Tolkien, Braille e o Cosmos que Nos Cerca [Parte 2] (V.8, N.3, P.2, 2025)
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¹ PcD com cegueira e Professor Dr. vinculado ao Bacharelado em Ciência e Tecnologia, à Engenharia de Gestão e à Pós-graduação em Engenharia e Gestão da Inovação da UFABC.
2 Coordenador da Graduação em Engenharia de Gestão, Professor vinculado ao Bacharelado em Ciência e Tecnologia, à Engenharia de Gestão e à Pós-graduação em Engenharia e Gestão da Inovação da UFABC.
As Placas Pioneers e os Discos Dourados: Comunicação com o Desconhecido:
Vamos voltar para 1972. Era o ano em que as sondas Pioneer 10 e 11 partiram rumo ao espaço profundo, com uma missão além de enviar dados científicos. Cada uma levava consigo uma placa de ouro em relevo, contendo uma mensagem. Não era escrita com palavras, mas com símbolos universais que representavam a posição do nosso planeta e a humanidade. A chave para essa comunicação? A simplicidade. Elementos básicos do cosmos, como o átomo de hidrogênio, foram utilizados como referência para que qualquer ser que encontrasse as sondas pudesse compreender tempo e espaço.
Mais tarde, em 1977, as sondas Voyager 1 e 2 seguiram essa tradição com os famosos Discos Dourados. Além de uma seleção de sons e músicas da Terra — baleias cantando, trovões retumbando, pássaros gorjeando — eles também traziam imagens em relevo, acompanhadas de instruções táteis. A NASA sabia que, para comunicar com o desconhecido, era preciso pensar além das palavras. E o relevo — a mesma técnica usada no Braille — foi uma das escolhas para assegurar que essas mensagens pudessem ser interpretadas de forma visual ou tátil.
Detalhe do Atomo de hidrogênio: fonte Nasa (reprodução das placas Pioneer e Disco de Ouro das Sondas Voyager 1 e 2)
Assim como o Braille simplificou a comunicação para pessoas cegas, as mensagens interestelares da NASA também foram projetadas com uma simplicidade primitiva. A ideia era clara: criar algo universal. O Braille, com seus padrões táteis, eliminou a complexidade das letras tradicionais em relevo e os longos traços do sistema de Barbier. Em vez disso, pontos. Simples, diretos, acessíveis. As mensagens nas sondas Pioneer e Voyager seguiram um raciocínio semelhante, optando por imagens simples, instruções táteis e arquivos sonoros de nós e de nosso planeta.
A escolha do relevo como método de comunicação interestelar pode parecer uma curiosidade, mas reflete a força da comunicação tátil. E assim como Louis Braille usou essa mesma técnica para transformar a maneira como pessoas cegas acessam o conhecimento, a NASA reconheceu o poder do toque e do relevo para transmitir algo a seres que podem não compartilhar nossa visão ou sequer nossa biologia.
Essas mensagens nas sondas representam o ápice daquilo que Braille começou: criar algo acessível, que transcende fronteiras e limitações. Não podemos dizer com certeza se alguma vez alguém ou algo encontrará essas sondas e decodificará suas mensagens. Mas a escolha de incluir elementos táteis foi um passo corajoso e visionário, no espírito de inovação que Louis Braille inaugurou.
Quenya e Braille: Inovações a Serviço da Comunicação
Se o Braille nos ensina que a comunicação pode transcender a visão, o Quenya, a língua dos Altos Elfos de Valinor, nos lembra que a comunicação também pode transcender mundos inteiros, reais ou fictícios. Criada pelo escritor e filólogo J.R.R. Tolkien, o Quenya é uma das muitas línguas élficas que compõem o complexo universo da Terra Média. Assim como Louis Braille desenvolveu seu sistema de escrita tátil para resolver uma necessidade prática — possibilitar a leitura para pessoas cegas —, Tolkien também criou o Quenya com uma visão bem clara: trazer profundidade e autenticidade ao seu mundo literário.
O Quenya, que originalmente evoluiu de uma língua chamada Eldarin Comum, foi projetado para ser uma língua formal, usada pelos elfos de Valinor em momentos solenes e cerimoniais. No universo de Tolkien, o Quenya é, em muitos aspectos, uma língua “antiga”, preservada e transmitida para expressar sabedoria e tradição. O que Braille e Quenya têm em comum, além de serem criações linguísticas, é que ambos nasceram da mente de visionários, e ambos serviram para conectar diferentes grupos de pessoas a algo maior: o conhecimento e a expressão.
Enquanto o Braille visava conectar pessoas cegas ao vasto mundo de informações e ideias, o Quenya conectava diferentes povos élficos dentro da mitologia de Tolkien. É como se Louis Braille e J.R.R. Tolkien, cada um em seu próprio campo, tivessem criado ferramentas para que grupos distintos pudessem se comunicar, preservar seu legado e se conectar a algo mais profundo — seja a educação, no caso de Braille, ou a herança cultural e linguística dos elfos, no caso do Quenya.
A criação do Quenya e do Braille pode ser vista como um reflexo do poder transformador da inovação linguística. Nenhuma dessas “línguas” surgiu de forma acidental. Ambas foram cuidadosamente planejadas para responder a necessidades específicas: uma prática, outra artística, mas ambas com impacto duradouro. A necessidade que moveu Braille foi a de dar voz, através do tato, àqueles que não podiam ver. A de Tolkien foi a de dar autenticidade e profundidade a um universo ficcional, criando uma língua que expressasse não só palavras, mas também a alma e a história de um povo.
O Braille, assim como o Quenya, não é apenas um meio de comunicação. É também um símbolo. Braille representa acessibilidade, inclusão e inovação. Já o Quenya é um símbolo de tradição, sabedoria e da importância da preservação cultural. Em ambos os casos, estamos lidando com a ideia de que a linguagem é mais do que uma ferramenta prática: ela é uma ponte entre mundos, seja entre mundos literários ou entre a cegueira e o conhecimento.
Curiosamente, tanto o Braille quanto o Quenya têm algo em comum além da linguagem em si: ambos são notavelmente simples em seu conceito. O Braille, com seus padrões de pontos em relevo, simplifica a escrita e a leitura para pessoas cegas, eliminando a complexidade das letras tradicionais. O Quenya, embora pareça complexo a princípio, é uma língua que flui com uma simplicidade melódica, fácil de aprender e bela em sua estrutura e fonética.
Essa simplicidade é muitas vezes a chave para a inovação. Quando Braille criou seu sistema, ele reduziu a leitura a um padrão que poderia ser facilmente sentido com a ponta dos dedos. Da mesma forma, Tolkien construiu o Quenya com uma estrutura gramatical que, embora rica em detalhes, pode ser rapidamente dominada, permitindo que os leitores de suas obras mergulhem profundamente no mundo dos elfos sem a barreira de uma língua excessivamente complexa.
A simplicidade, em ambos os casos, não diminui a profundidade de seus respectivos sistemas. Pelo contrário, é exatamente essa simplicidade que os torna tão poderosos e acessíveis. Assim como os pontos em relevo do Braille são universais, permitindo que qualquer pessoa cega ao redor do mundo tenha acesso ao conhecimento, o Quenya é igualmente universal dentro do universo de Tolkien, sendo uma língua que qualquer leitor pode aprender e usar para se conectar com as profundezas da mitologia élfica.
O que torna tanto o Braille quanto o Quenya tão significativos é o impacto duradouro que eles tiveram. O Braille não é apenas um sistema de escrita: é uma ferramenta vital para a inclusão educacional, profissional e cultural das pessoas cegas em todo o mundo. Ele transformou vidas, principalmente ao longo do século XX quando se popularizou antes do advento d eleitores de tela acessíveis e universais, permitiu que milhões de pessoas acessassem o mundo das ideias e contribuiu para a criação de uma sociedade menos XXXinclusiva. E mesmo com o advento das tecnologias modernas, como leitores de tela e assistentes de voz, o Braille continua a ser uma ferramenta poderosa – mas não exclusiva – para aqueles que desejam mais graus de liberdade e autonomia.
Assim como as placas em relevo das sondas Pioneer e os Discos Dourados da Voyager são a tentativa da humanidade de se comunicar com o desconhecido, o Braille e o Quenya são nossas tentativas de expandir os limites da comunicação aqui na Terra. Eles nos lembram que, por mais diferentes que sejam nossas realidades — sejam elas baseadas em limitações físicas ou em universos fictícios —, a linguagem sempre será nossa ponte para o entendimento, a conexão e a inovação.
Para Saber mais:
Museu Louis Braille: https://museelouisbraille.com/en
O que tem nos discos de ouro das sondas Voyager? https://www.youtube.com/watch?v=PcWD-x2ea-w
The Golden Record. NASA JPL. https://science.nasa.gov/mission/voyager/voyager-golden-record-overview/
Compilação de entrevistas com Tolkien feitas pela BBC nos anos 1960: https://www.youtube.com/watch?v=NTz2-im7s9k