A compreensão epidérmica de um discurso (V.6. N.10. P.8, 2023)
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A compreensão epidérmica de um discurso passa pela absorção de, pelo menos, quatro camadas distintas de análise preliminar, que nos leva a identificação de todas as chaves de leitura deixada como pistas de compreensão pelo autor. a) conceitos existentes ou construídos no discurso necessitam ser apreendidos ou aprendidos; b) relações indicadas devem ser aceitas como naturais, próprias ou adequadas; c) os seus agentes ativos e passivos apresentados ou intuídos são reconhecidos; d) as analogias e metáforas existentes no discurso devem ser adequadamente interpretadas dentro dos limites projetados no discurso. O conjunto destes elementos trazem a eficiência pensada para o discurso e indicam que as etapas de produção e distribuição foram um sucesso absoluto pois o consumo alcançou o público correto.
A compreensão epidérmica pelo consumidor, do discurso veiculado pelo produtor, apenas garante que estamos dentro da bolha cognitiva delimitada pelo universo de distribuição do discurso. Não é sinal de competência singular ou de pensamento crítico relativo a temática do discurso. Do mesmo modo, a incompreensão do discurso, nessa análise preliminar, não é indicativa incompetência do consumidor, é apenas erro na distribuição ou na produção desse discurso. Essa análise preliminar corresponde a primeira atitude diante de um discurso. É rasa, emocional, sonolenta, preguiçosa e automática; correspondente ao sistema 1 explicado no livro “Rápido e Devagar, as Duas Formas de Pensar” de Daniel Kahneman. Os mesmos quatro elementos podem ser explorados de outra maneira para quem deseja fazer um estudos crítico sobre um discurso.
Os termos e conceitos são estrategicamente escolhidos e outros são preteridos dentro do mesmo campo disciplinar. Mesmo ao falar sobre materiais e objetos são feitas escolhas em função dos objetivos de um discurso. Por exemplo, sobre o diamante se pode falar sobre sua tenacidade (baixa) ou sobre sua dureza (alta). Nos discursos técnicos, as escolhas dos termos já dirigem os rumos que o discurso toma. Não há neutralidade nessas escolhas. Apresentar alguns parâmetros técnicos, absolutamente corretos, pode esconder o silêncio sobre outros parâmetros, igualmente relevante, visando preparar o leitor para uma conclusão específica, dentro de tantas possíveis, numa temática complexa. Desse modo, por indução, antecipa o que o leitor atinge por dedução.
Discursos pressupõe relações que precisam ser examinadas em sua validade dentro da temática proposta. Por mais consagrada que seja a relação, há sempre o que se examinar. Por exemplo, “onde há fumaça, há fogo”; é possível criar fumaça sem fogo e também fogo sem fumaça. Portanto, apenas a fumaça pode não ser indício de fogo. As relações de causa e efeito são muito exploradas em discursos de modo falacioso, que parecem uma dedução lógico-matemática de uma verdade incontestável. É comum apresentar relações complexas e multicausais como sendo extremamente simples, de uma só causa, visando lhe atribuir determinado efeito percebido ou medido. Desse modo, cala-se sobre um conjunto grande de outras possíveis causas escondendo-as, aos olhos de todos, como um truque de mágica. O excesso de luz provoca o ofuscamento desejado.
Um discurso é uma posição no mundo do produtor que aloca perto ou longe outros agentes e o próprio leitor. Esses agentes podem ser nominados ou pressupostos. Podem ser pessoas, empresas, governos. Podem ser parceiros, clientes, investidores ou concorrentes. Podem ser categorias profissionais, classes sociais, grupos étnicos ou qualquer grupo rotulável. O leitor crítico é aquele não aceita a sua posição no discurso e avalia a posição dos demais agentes relativos ao produtor. Ele não aceita que o mundo seja simples e que as posições sejam fixas ou fixadas a priori.
Um discurso pode ser arrematado por analogias, metáforas ou qualquer recurso retórico para atingir seus objetivos porque tudo já foi anteriormente preparado. Para o leitor sonolento, essa é a parte que confere sabor ao texto pois ele passou as três camadas anteriores sem encontrar nada que o incentivasse intelectualmente a reagir. Para o leitor crítico, que percebeu cada “jogada” do produtor do discurso, essa é a etapa mais fácil porque pode ser incrivelmente ridícula ao olhar de quem encontrou problemas nas três etapas anteriores. Recursos retóricos adornam a compreensão do discurso mas também revelam intenções do produtor. O leitor crítico avalia tais recursos.
A compreensão de um discurso nunca deveria ser apenas epidérmica.
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