Vós desnuyo ides (V.6. N.8. P.8, 2023)
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Existe uma história infantil em que um menino grita em determinado momento “O rei tá nu”. Segundo uma das versões que vi na internet, o conto é de Hans Christian Andersen (http://revistavitrineibiuna.com.br/?p=6701). Há, no entanto, um texto mais antigo que talvez tenha inspirado o autor. Trata-se do “El Conde Lucanor” de autoria de Juan Manuel, Infante de Castilla do ano de 1335. Esse livro traz vários exemplos e, em um deles (Exemplo XXXII), conta a história “De lo que contesció a un rey con los burladores que fizieron el paño”. Coloco aqui dois trechos do livro inspirador e convido os leitores a conhecerem ou relembrarem a fábula da “Roupa nova do Rei” na versão atual procurando em algum canto da internet ou visitando o link sugerido acima.
Nessa versão mais antiga, não ver a roupa do rei, funcionava como teste de DNA. Significava que não era filho do pai que pensava ter. Uma situação vexatória que correspondia acusar a própria mãe. Ninguém queria assumir tal condição construída com base no discurso de alguns “picaretas” (“burladores”) e apoiados pelos bajuladores, pois “sería perdido et desonrado”. A simples verdade (vós desnuyo ides) tinha consequências. Precisava alguém dizer o óbvio (ou estou cego ou você tá nu) para que muitos outros percebessem a situação. Esse livro está disponível para download gratuito no site (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bk000075.pdf).
-Señor, a mí non me enpeçe que me tengades por fijo de aquel padre que yo digo, nin de otro, et por ende, dígovos que yo só çiego, o vós desnuyo ides.
Desque el negro esto dixo, otro que lo oyó dixo esso mismo, et assí lo fueron diziendo fasta que el rey et todos los otros perdieron el reçelo de conosçer la verdat et entendieron el engaño que los burladores avían fecho.
Na fábula atual o foco está na ingenuidade da criança, que é capaz de dizer coisas inconvenientes para os adultos, inclusive as verdades óbvias. Nisso difere da obra original inspiradora, pois outra perspectiva pode ser colhida do narrador, antes da fala do jovem:
“Et por esto fincó aquella poridat guardada, que non se atrevié ninguno a lo descubrir, fasta que un negro que guardava el cavallo del rey, et que non avía que pudiesse perder, llegó al rey et díxol’: (…) vós desnuyo ides”.
Segundo o narrador, não se tratava de ilusão coletiva pelo efeito do discurso construído pelos trapaceiros da história (“tres omnes burladores”). Todos tinham medo e o corajoso foi desqualificado pois era aquele que não tinha nada o que perder: era negro e não se importava quem era o seu pai. Pelo próprio contexto, não se pode aceitar a justificativa do narrador. Portanto, apresento outra justificativa: O jovem tinha muito a perder, a começar pela vida, liberdade ou trabalho. Sua coragem veio por ser pobre e negro e não topar viver aquela hipocrisia coletiva. A sua coragem inspirou outros. Quem o ouviu, inicialmente outros pobres ao seu redor, repetiram o óbvio (o rei está nu), finalmente os puxa-sacos também criaram coragem. Nascia ali uma liderança.
A história de Hans Christian Andersen atualizou, dentro de sua realidade, para o seu tempo e seu mundo, um conto de fadas. Está na hora de reler nossas fábulas e atualizar os seus discursos, até mesmo partindo de fontes como a citada aqui ou outras que compõem esse patrimônio cultural da humanidade. Mesmo um simples conto de fadas assume um campo discursivo de luta social.
Numa entrevista em 2009, Milton José Pinto2 disse que há duas críticas a análise do discurso que são comuns e injustas: 1) não diz mais do que o óbvio e 2) se preocupa muito com a produção do discurso e esquece a sua recepção. Aqui procurei também contestar essas criticas pois demonstro que o óbvio precisa ser dito (Vós desnuyo ides) e, em alguns casos, é perigoso dizer até o óbvio. Relativo a recepção de um discurso.
1 Contatos: whatsapp (+55 86 99921-0902) / e-mail (jose.machado.moita.neto@gmail.com) 2 Milton José Pinto. Entrevista a ECO-Pós em 2009. http://www.pos.eco.ufrj.br/site/memoria_interna.php?id=45.