Salmonella: Uma aliada nada convencional no tratamento do câncer (V.5, N.5, P.5, 2022)
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Falar em Salmonella assusta e gera preocupações em todo mundo. Na última década, as doenças causadas por Salmonella como intoxicações alimentares, febre e presença das bactérias no sangue mataram aproximadamente 650.000 pessoas no planeta. Mas como uma bactéria tão perigosa pode ajudar no tratamento contra o câncer? Com avanço da biotecnologia, a ciência encontrou a resposta através da modificação genética. E os resultados até o momento são promissores, mas para entender melhor como isso acontece, vamos do começo.
A palavra câncer tem origem latina e significa “caranguejo”, um crustáceo familiar pelo seu comportamento de enterrar-se na areia, similar às células tumorais que se prendem aos tecidos do corpo. Para quem já tentou tirar um caranguejo da areia, sabe que não é tarefa fácil, assim como lidar com essa doença que desde o Egito antigo já era conhecida da humanidade.
Os primeiros procedimentos para tratamento do câncer foram registrados em 1840 com descrições de cirurgias para a remoção dos tumores e usando anestésicos como éter e clorofórmio. Mas essas cirurgias tinham alto índice de fracassos, pois os anestésicos eram pouco eficientes e faltava uma higienização especializada das ferramentas cirúrgicas. Assim, os procedimentos para remoções de tumores só começam a ser realizados de forma mais seguras a partir de 1860. O advento dos raios-X em 1895 e da radioterapia em 1898 também foram chave para o combate contra o câncer quase dois séculos atrás.
Inúmeros fatores podem transformar uma célula saudável em uma célula tumoral, mas todos eles têm um fator em comum: afetam regiões específicas do DNA conhecidas como proto-oncogenes. Esses genes em células saudáveis são inativos, mas quando ativados, transformam essas células em células tumorais. As células tumorais, ao contrário das normais, reproduzem-se desordenadamente no corpo, causando todo tipo de problemas no tecido onde essas células estiverem. Alguns problemas podem decorrer do aumento do número de células de um tecido, como a hiperprodução de hormônios da tiroide (caso as células desse órgão se tornem tumorais) ou disfunções neurológicas, quando há a presença de tumores no cérebro.
Atualmente, sabe-se que um câncer pode se desenvolver por diversos motivos e existe a participação dos mais variados agentes causadores, como por exemplo substâncias químicas, hormônios, radiação, vírus e outros. Infelizmente, as causas primárias do câncer ainda não foram completamente compreendidas. Por isso a proposta de novos tratamentos, usando estratégias inéditas, têm surgido.
Os tipos mais comuns de terapia contra o câncer são bastante conhecidos e podem ser usados simultaneamente, como a radioterapia (tratamento que usa radiação, que é mais letal em células tumorais, mas também causa a morte de algumas células saudáveis), a quimioterapia (uso de medicamentos para destruir e inibir o crescimento de células cancerosas, mas que também afeta células saudáveis) e cirurgia (remoção do tumor usando técnicas cirúrgicas, possível apenas para alguns tipos de tumores).
No corpo humano, cada medicamento age de forma variada. Por essa razão são utilizados diversos tipos de medicamentos a cada vez que o paciente recebe o tratamento. Os medicamentos são levados pelo sangue e são distribuídos a todas as partes do corpo, destruindo as células doentes que estão formando o tumor, além de impedir que elas se espalhem pelo corpo. Em geral, como os medicamentos costumam agir em todo organismo, alcançando seu alvo (as células cancerosas) em qualquer área do corpo, essa ação é caracterizada como sistêmica. Porém, algumas regiões são menos acessíveis aos quimioterápicos em circulação. Para atingir as células malignas nesses locais, muitas vezes é necessário aplicar o medicamento de forma direta, para atuar no local de ação desejado.
As limitações das terapias antitumorais convencionais, como alta toxicidade para as células saudáveis, a incapacidade de tratar o tecido tumoral profundo e a possibilidade de seleção de células resistentes aos medicamentos têm impulsionado a busca por abordagens alternativas de tratamentos. Muitas bactérias como Clostridium, Bifidobacterium, Escherichia coli e Salmonella, mostraram-se eficazes no tratamento de tumores.
A Salmonella possui capacidade de destruir tumores naturalmente, como a indução da morte celular em tecidos tumorais e produção de toxinas bacterianas. Existem duas formas de morte celular, a programada que não causa inflamação, e a não programada que gera uma resposta inflamatória no organismo. As toxinas de Salmonella induzem uma morte celular programada das células tumorais, facilitando o trabalho do nosso sistema imunológico para remoção delas. A bactéria também inativa alguns genes causadores de tumor, resultando em um tumor muito menos agressivo, menos resistente às drogas, menor possibilidade de se espalhar pelo corpo e mais fácil para o sistema imune tentar destruir.
Além dos efeitos contra tumores citados acima, a própria presença da bactéria atrai a atenção do sistema imune do hospedeiro para o câncer, uma vez que a bactéria fica próxima aos tumores por ser uma zona mais ácida e com menos oxigênio do que o resto do corpo (ambiente ideal para a sobrevivência de Salmonella). Os cânceres são muito bons em passarem desapercebidos pelo sistema imunológico, mas com a presença da bactéria nas regiões cancerosas, as células do sistema imune detectam que algo está errado, e inicia-se um processo de destruição da bactéria e da massa tumorosa ao redor.
Claro que infectar qualquer tipo de organismo com uma bactéria como a Salmonella seria irresponsável e geraria revolta e comoção na sociedade. Assim, para atenuar a da Salmonella sobre os organismos testados, os pesquisadores realizaram procedimentos biotecnológicos para que essa fosse menos danosa ao hospedeiro, porém sem perder suas capacidades de chamar a atenção do sistema imune para a presença do tumor, facilitando sua destruição.
Essas técnicas envolvem a manipulação genética da Salmonella, que por ser uma bactéria nociva, já é alvo de diversos estudos utilizando técnicas para se alterar seu código genético. Muitos produtos que consumimos hoje são produzidos a partir de bactérias geneticamente modificadas para, por exemplo, produzir a insulina usada pelos diabéticos, ou os hormônios do crescimento usados por pessoas com doenças na tireoide. Usando essas técnicas, os cientistas realizam diversas mudanças na célula da bactéria, de forma a torná-la mais segura para o uso nos testes. Alguns dos genes alterados pelos cientistas permitem maior controle do ciclo de vida da bactéria, que pode ser feito, por exemplo, adicionando-se uma substância ao meio de cultivo da bactéria que pode causar a morte automática da célula durante seu crescimento. Portanto, os cientistas podem interromper o ciclo de vida da bactéria a qualquer momento, bastando alterar o meio (colocando ou tirando dada substância) e voilá: a bactéria morrerá e não terá mais efeitos no hospedeiro. Outro gene modificado pelos autores faz com que ela não consiga gerar energia suficiente para viver e se reproduzir normalmente. Essas alterações genéticas diminuem a letalidade da bactéria em humanos em até 50.000 vezes.
Uma outra forma de aumentar ainda mais o poder da bactéria contra o câncer é a introdução de alguns genes que auxiliam na batalha contra este. Como a bactéria é naturalmente atraída por regiões tumorais, uma vez que ela se estabeleça nesses locais, ela começa a produzir proteínas e outras moléculas que ajudam na batalha contra o câncer, tais como proteínas envolvidas no recrutamento do sistema imune, moléculas que tornam os medicamentos usados em quimioterapia letais para as células cancerígenas, e algumas outras que impedem o tumor de funcionar corretamente, impedindo sua multiplicação desenfreada, o que os torna muito mais suscetível à terapias tradicionais em doses menores, diminuindo os efeitos colaterais.
Mesmo diante de tantos benefícios observados no laboratório, ainda são necessários mais estudos antes do uso em humanos. Em 1999, uma linhagem de Salmonella modificada geneticamente, conhecida como VNP200009, foi testada em humanos. O resultado foi a ausência da mobilização da Salmonella para o tecido tumoral, assim como a total ausência de qualquer atividade antitumoral. Essa falha foi atribuída ao fato de que a alteração genética usada nessa cepa alterava a membrana celular da bactéria – isso fazia com que ela fosse tanto menos capaz de sobreviver ao ambiente tumoral quanto diminuía a capacidade do sistema imune de reconhecer essa bactéria.
Ainda assim, muitos conhecimentos e técnicas totalmente novas foram descobertos e construídos de lá para cá – ainda existe a chance de, no futuro, termos um aliado nada convencional contra a doença que mais mata no mundo.