Pisadeira, alucinações e os aspectos evolutivos do sono REM (V.5, N.1, P.5, 2022)

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Divulgadoras e Divulgadores da Ciência:

Amanda Ogoshi, Ariadne Augusto, Arthur Medeiros, Isaque da Silva e Natasha Andrade

Cornélio Pires, folclorista brasileiro, num diálogo com um caipira ao pé de uma fogueira nos idos de 1920, recebeu uma descrição detalhada da “Pisadeira”, personagem folclórica que permeia o imaginário popular, principalmente na região sudeste do Brasil, mas que também é encontrada em outras regiões do país com diferentes nomes, como “Pesadeira” na região do Rio São Francisco, e “Pisador” no Ceará [1][2]. A descrição que se segue sobre a “Pisadeira” é estarrecedora:


“Esta é ua muié muito magra, que tem os dedos cumprido e seco cum cada unhão! Tem as perna curta, cabelo desgadeiado, quexo revirado pra riba e nari magro munto arcado; sombranceia cerrado e zóio aceso… Quando a gente caba de ciá e vai durmi logo, deitado de costa, ele desce do teiado e senta no peito da gente, arcano… arcano… a boca do estámo… Purisso nunca se deve dexá as criança durmi de costa [2].”


A Pisadeira é descrita geralmente como uma mulher velha de chinelos, com dedos enormes e unhas compridas, que se esconde nos telhados e age soturnamente, aparecendo nas madrugadas para pisar fortemente no peito de quem dorme de barriga para cima e estômago cheio. Quando entra em ação, é implacável. Pisa com tanta força que a vítima sente falta de ar, fica indefesa, paralisada, incapaz de qualquer reação [1][3]. É aterrorizante, não é?


Os ataques da Pisadeira, assim como diversos outros fenômenos ditos sobrenaturais ou fantasmagóricos, podem estar associados a um distúrbio do sono conhecido como Paralisia do Sono (PS). Num episódio de PS, que ocorre geralmente quando se está quase dormindo ou acordando, os indivíduos ficam conscientes, porém totalmente imobilizados, exceto pelo movimento dos olhos. Para tornar a experiência mais desagradável, a PS pode vir acompanhada de alucinações multissensoriais que envolvem imagens, sons e cheiros, além da sensação de pressão no peito e um forte sentimento de uma presença assustadora [1][3]. Tudo isso torna a PS hiper-realista, e embora o distúrbio dure apenas alguns segundos ou minutos, a experiência pode ser traumática. Quando os episódios são frequentes, podem levar a quadros de ansiedade e medo do sono [4].


Mas não se preocupem, cara leitora e caro leitor, as chances de vocês se depararem com a Pisadeira numa noite de sono é baixa, pois menos de 8% da população sofre de PS. Para os desafortunados que lidam com esse distúrbio, talvez uma boa pergunta a se fazer neste momento é: o que causa a PS? Não temos resposta única e definitiva para essa indagação. Diversos estudos sugerem que fatores como estresse, traumas, fatores hereditários, agenda de sono irregular, uso de substâncias alucinógenas e – pasmem! – dormir de barriga para cima (a famosa posição supina ou decúbito dorsal), podem aumentar a probabilidade de ocorrência da PS [1][3][5].


Neurobiologicamente, a PS acontece num estágio específico do ciclo do sono, o sono REM (abreviação do inglês Rapid Eye Movement), isto é, na fase onde ocorrem movimentos repetitivos dos olhos e no qual o cérebro apresenta uma intensa atividade neuronal. Nesta etapa, que ocupa cerca de 20% do tempo total do sono, os sonhos tendem a ser mais expressivos, emocionais e enigmáticos. Lembram do filme “A hora do pesadelo”? Sim, os pesadelos também são comuns na fase REM. É justamente por esse motivo que nosso cérebro nos mantém temporariamente paralisados, para que não reajamos a esses sonhos com pontapés, xingamentos e outras coisas mais [3][6].


Mas calma lá! Como assim fases do sono? De forma resumida, o ciclo do sono pode ser dividido em dois padrões fundamentais, os sonos não-REM (NREM) e REM, cada um com suas especificidades fisiológicas. Este ciclo dura em torno de 90 minutos, variando do sono NREM para o REM e isso se repete de quatro a seis vezes por noite. O sono NREM apresenta quatro fases diferentes e à medida que se avança por esses estágios, o sono se torna mais profundo. Este período é essencial para a conservação de energia e reposição metabólica, além de exercer um papel importante na aprendizagem, no que diz respeito ao que será ou não lembrado, isto é, nas memórias selecionadas e memórias descartadas. Há sonhos durante a fase NREM, mas comparados aos que acontecem na fase REM, são sonhos curtos, com pouca participação do sonhador e dificilmente são lembrados [6][7]. Ou seja, para quem sofre de PS, sonhar na fase NREM é um paraíso!
Notem que até aqui, aparentemente, vilanizamos o sono REM, mas ele tem um impacto enorme em nossas funções neurofisiológicas. É na fase REM que temos um aumento da atividade parassimpática, isto é, dos estímulos de atividades relaxantes, como a diminuição da frequência cardíaca e pressão arterial. Além disso, há um aumento da expressão de genes, como o arc e zif-268 que, quando transcritos, desencadeiam o fortalecimento e remodelação de conexões sinápticas. Em outras palavras, esta etapa do sono é essencial para a formação de memórias de longo prazo, ou seja, o que aprendemos ao longo do dia é processado e pode ser armazenado [6][7].


Uma curiosidade sobre o sono REM é que ele não é exclusivo da espécie humana. Aves, mamíferos e répteis crocodilianos apresentam episódios de sono REM com tempos de duração distintos. Para aves e crocodilos, os episódios duram alguns segundos, já em mamíferos, podem durar mais de uma hora. Sabendo desse fato, talvez seja a hora de nos questionarmos, numa perspectiva evolutiva, como o sono REM surgiu? Esta é uma questão desafiadora e não existe um consenso na comunidade científica. Uma das hipóteses para explicar o sono REM é que se trata apenas de um efeito colateral de mudanças evolutivas [7].


Essa resposta não suscitou fortes emoções, não é verdade? Então tentaremos uma outra abordagem, cuja discussão inicia-se com os Amniotas, um grupo monofilético de vertebrados que incluem répteis, aves e mamíferos. Todos os Amniotas possuem sono NREM, o que possibilita inferirmos que esse estágio foi selecionado no início desta linhagem, na ocasião da migração do ambiente aquático para o terrestre, ocorrido no período Carbonífero a 354-290 milhões de anos atrás. Quanto ao sono REM, não sabemos ao certo em que parte da história evolutiva dos Amniotas essa aquisição aconteceu e o porquê. No caso dos mamíferos, todos possuem sono REM, inclusive os de linhagem mais antiga, como a dos monotremados, da qual o ornitorrinco faz parte. Daí podemos concluir que esse estágio estava presente nos mamíferos desde o seu surgimento, no período Triássico, há pelo menos 220 milhões de anos [7][8].
E sobre os primatas, mais especificamente os humanos, o que podemos inferir? Temos um sono diferenciado dos demais mamíferos

dessa ordem. Temos um sono de melhor qualidade e dormimos menos, com episódios de sono REM maiores. A nossa história evolutiva está repleta de eventos que provavelmente contribuíram para isso. Vejamos um exemplo: abandonamos o hábito de dormir em árvores e adotamos o uso do solo como nova acomodação, aumentando a exposição do gênero Homo à predação e ataque de bandos rivais. No entanto, essas novas pressões seletivas devem ter proporcionado mudanças de hábitos e comportamentos [7][9].


Começamos a utilizar fogueiras, dormir em bandos e em abrigos protegidos do frio e de predadores, e isso pode ter facilitado a aquisição do sono de boa qualidade sem precisar dormir por longas horas. Tais mudanças podem ter permitido ao gênero Homo dedicar uma fração maior do seu tempo para a formação de vínculos sociais e construção de ferramentas, por exemplo. Com a melhora da qualidade do sono, certamente houve ganhos cognitivos, melhorando a capacidade de aprendizagem [9]. Portanto, cara leitora e caro leitor, embora seja no sono REM que os pesadelos aconteçam e que a Pisadeira vem nos amedrontar, a aquisição evolutiva desse estágio do sono impactou diretamente na capacidade de aprendizagem da espécie humana.

 

Referências:

[1] SÁ, José F. R. de; MOTA-ROLIM, Sérgio A. Sleep Paralysis in Brazilian Folklore and Other Cultures: a brief review. Frontiers In Psychology, [S.L.], v. 7, n. 1294, p. 1-8, 7 set. 2016. Frontiers Media SA. http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01294.

[2] HOFFMANN, Bruno. Brasil: Almanaque de Cultura Popular: outros mitos que metem medo. Ano 10, out. 2008. nº 114. Disponível em: https://issuu.com/almanaque/docs/outubro2008. Acesso em: 21 jul. 2021.

[3] FAKOYA, Adegbenroomotuyi John; OLUNU, Esther; KIMO, Ruth; ONIGBINDE, Estherolufunmbi; AKPANOBONG, Mary-Amadeusuduak; ENANG, Inyeneezekiel; OSANAKPO, Mariam; MONDAY, Ifuretom; OTOHINOYI, Davidadeiza. Sleep paralysis, a medical condition with a diverse cultural interpretation. International Journal Of Applied And Basic Medical Research, [S.L.], v. 8, n. 3, p. 137-142, set. 2018. Medknow. http://dx.doi.org/10.4103/ijabmr.ijabmr_19_18.

[4] RAMOS, Daniela Figueiredo et al. Recurrent sleep paralysis – fear of sleeping. Revista Paulista de Pediatria [online]. 2020, v. 38 [Acessado 21 julho 2021]. https://doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2018226

[5] DENIS, Dan; FRENCH, Christopher C.; GREGORY, Alice M. A systematic review of variables associated with sleep paralysis. Sleep Medicine Reviews, [S.L.], v. 38, p. 141-157, abr. 2018. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.smrv.2017.05.005.

[6] FERNANDES, Regina Maria França. O SONO NORMAL. Medicina (Ribeirão Preto. Online), [S.L.], v. 39, n. 2, p. 157-168, 30 jun. 2006. Universidade de São Paulo, Agencia USP de Gestão da Informação Acadêmica (AGUIA). http://dx.doi.org/10.11606/issn.2176-7262.v39i2p157-168.

[7] RIBEIRO, Sidarta; MOTA-ROLIM, Sérgio A. Bases biológicas da atividade onírica. In: PINTO JUNIOR, Luciano Ribeiro (Org.). Sono e Seus Transtornos: do Diagnóstico ao Tratamento. Rio de Janeiro: Atheneu, 2012. Cap. 16. p. 201-227.

[8] PIRES, Mathias M.; RANKIN, Brian D.; SILVESTRO, Daniele; QUENTAL, Tiago B. Diversification dynamics of mammalian clades during the K–Pg mass extinction. Biology Letters, [S.L.], v. 14, n. 9, p. 1-4, set. 2018. The Royal Society. http://dx.doi.org/10.1098/rsbl.2018.0458.

[9] JAPYASSU, Hilton Ferreira. O sono da civilização. 2017. Disponível em: https://darwinianas.com/2017/07/18/o-sono-da-civilizacao/. Acesso em: 21 jul. 2021.

 

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