Relações Centro-Periferia das Cadeias de Valor Farmacêuticas (V.4, N.5, P.7, 2021)

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Divulgadores da Ciência:

Cristina Fróes de Borja Reis [Lattes]

José Paulo Guedes Pinto [Lattes]

Professores de Economia e Relações Internacionais no Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas (CECS) e do Programa Pós-Graduação de Economia Política Mundial da Universidade Federal de ABC (UFABC)

 

Recentemente, publicamos um artigo na Review of Political Economy intitulado Center-periphery relationships of pharmaceutical value chains: a critical analysis based on goods and knowledge trade flows. Em nossa análise das cadeias de valor farmacêuticas investigamos a Divisão Internacional do Trabalho a partir da perspectiva teórica novo-estruturalista, perguntando: de que forma as cadeias de valor farmacêuticas são globais? Existem relações de centro-periferia nelas e, em caso afirmativo, quais países estão em cada polo? 

 

Sob a hipótese de que este setor é simbólico em termos da nova Divisão Internacional do Trabalho (DIT) que se dá nas relações centro-periferia globais (Cadeias Globais de Valor ou CGV) e regionais (Cadeias Regionais de Valor ou CRV), essas questões foram tratadas empiricamente examinando indicadores como o comércio mundial de produtos farmacêuticos em termos brutos, sua estrutura de produção e emprego, o comércio em valor adicionado, o preço por quilo de produtos farmacêuticos importados e exportados, os salários da indústria farmacêutica e os fluxos de direitos de propriedade intelectual.

 

Para os novos-estruturalistas, a linha divisória entre o centro e a periferia é basicamente a propriedade da tecnologia e do capital (protegido por direitos de propriedade) ficar com o primeiro grupo, o que leva a padrões mais sofisticados de especialização produtiva e comercial e, consequentemente, a dinâmicas de renda desiguais entre os países do centro e da periferia (CEPAL, 2015; Reis e Cardoso, 2020).

 

As empresas transnacionais (TNC) desenvolveram cadeias de valor internacionais, determinadas por decisões financeiras, sendo que as atividades de alto valor adicionado (geralmente intangíveis e intensivas em conhecimento e tecnologia, como pesquisa e desenvolvimento (P&D)) estão principalmente localizadas nos países do centro, enquanto que as de baixo valor adicionado (relacionadas a tarefas tangíveis de fabricação e produção, como a montagem) geralmente são realizadas pelos países do Sul Global (Globerman, 2011; Reis e Cardoso, 2020).

 

A histórica relação produtiva e comercial entre os EUA (centro) e o México (periferia) serve como uma ilustração desta nova DIT. Com a realocação no México das atividades mais simples do processo produtivo, como a montagem de produtos de exportação por parte das TNC estadunidenses, seus investimentos diretos criaram um enclave de exportação de manufatura (indústria maquiladora), com pobres efeitos de encadeamento dinâmicos nos circuitos de renda e emprego da economia mexicana (Gallagher e Zarsky, 2007; Bergin et al, 2008).

 

Na nossa avaliação empírica sobre as cadeias farmacêuticas, procuramos mostrar que o fenômeno da maquiladora não se restringe ao México, mas acontece com outros países periféricos do sistema mundial, os quais também se portam como periferias regionais (Castillo e Szirmai, 2015).

 

É bem conhecido que, durante o século XX, a indústria farmacêutica se tornou extremamente poderosa em nível internacional, ao lado de empresas financeiras, energéticas, tecnológicas e manufatureiras (Wells, 1984). Como lembra Haakonsoon (2009), a internacionalização da indústria farmacêutica só aumentou após a internacionalização da proteção de patentes no Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPs). Esta indústria está altamente concentrada em torno de um pequeno número de grupos transnacionais (65% das vendas globais são feitas pelas 20 maiores TNC – a chamada “Big Pharma”) as quais operam mundialmente através de filiais presentes, em 150 países. Mesmo durante a queda da economia global de 2008, a receita no mercado farmacêutico mundial aumentou a uma taxa considerável, tendo sido  estimada em 1,143 trilhões de dólares em 2017 (Statista, 2019).

 

Nas últimas décadas, as CGV farmacêuticas foram reorganizadas através da terceirização massiva de certas atividades, desenvolvendo parcerias e favorecendo o crescimento externo e a inovação aberta (Geymond, 2020). A governança das cadeias de valor farmacêutico é alta, apresentando polos globais centralizadores e diversas filiais amplamente dispersas nas CRV. Para os chamados “produtos de marca” (protegidos através de propriedade intelectual) – os quais ainda são a principal fonte de receita do setor (Guedes Pinto e Shadlen, 2018) -, as principais cadeias das TNC farmacêuticas são bastante integradas verticalmente, concentradas em seus países de origem; para os produtos genéricos de qualidade, as TNC estão engajadas em cadeias voltadas aos mercados de fornecedores, com aumento das atividades de terceirização em países como Índia e China; para os genéricos de baixo valor, as cadeias são voltadas para os mercado consumidores, com participação crescente dos países em desenvolvimento (Haakonson, 2009).

 

Nossa análise mostra que a especialização em um setor de alta tecnologia não significa necessariamente que os países estão desempenhando atividades de maior valor adicionado na cadeia. Dados sobre o conteúdo importado do valor das exportações brutas e sobre os preços dos produtos farmacêuticos sustentam este argumento, mostrando que, embora todo o setor seja considerado de alta intensidade tecnológica, alguns países são especializados em itens cujo preço é baixo ou em atividades de baixo valor adicionado da cadeia, cujo conteúdo importado em suas exportações é alto. Além disso, ao examinar os níveis salariais, a produtividade e os salários como parcela do valor adicionado, encontramos evidências de que, na nova DIT, trabalhadores do centro se beneficiam mais das cadeias de valor do que os da periferia.

 

Os países periféricos, mesmo os localizados em regiões geográficas desenvolvidas e de alta renda, são em geral responsáveis pela montagem dos produtos e por outras tarefas produtivas simples, que geram empregos e investimentos de baixa qualidade, e são incapazes de desencadear uma dinâmica virtuosa de desenvolvimento socioeconômico sustentável. Nos países centrais se encontram, em geral, as sedes da “Nig Pharma”, que investem fortemente em P&D, realizando a maioria das atividades intangíveis de alto valor adicionado das cadeias.

 

A DIT das cadeias de produtos farmacêuticos é ainda mais concentrada do que o das cadeias da indústria de transformação e seu centro é composto basicamente por três países: os EUA na fábrica regional da América do Norte e a Suíça e a Alemanha na fábrica regional europeia. São sstados ricos e poderosos que se beneficiam dos excedentes advindos dos direitos de propriedade intelectual (DPI), que recebem altos preços por quilograma exportado e pagam altos salários aos funcionários, cujas participações salariais,  obviamente, são inferiores à dos lucros no total de valor adicionado gerado.

 

Além disso, há alguns Estados ricos também do centro das CRV – como Bélgica, Dinamarca, França, Japão, Suécia e Reino Unido – que em geral são grandes exportadores e importadores em termos de valores brutos e preço por quilograma, têm níveis médios de conteúdo importado em suas exportações de valor agregado, são enormes produtores, pagam salários altos e apresentam excedentes em DPI. Por outro lado, há países de médio porte na periferia global/ regional (e também países pequenos que não foram incluídos em nossa análise) que estão fracamente integrados – como Brasil, Rússia, Arábia Saudita – ou fortemente (mas problematicamente) integrados nas cadeias de valor – como México, Índia, Hungria e Polônia. Este último grupo, embora composto de grandes produtores e exportadores, recebe um baixo preço por quilograma das suas exportações, paga salários baixos, apresenta déficits nos encargos pelo uso de DPI e tem um alto conteúdo de valor adicionado importado em suas exportações.

 

Estes países que estão se especializando em atividades de baixo valor adicionado das cadeias estão se tornando maquiladoras, o que reforça a sua posição de dependência na DIT das cadeias farmacêuticas. Do ponto de vista estruturalista, os países periféricos poderiam melhorar sua inserção nas cadeias de valor e reduzir as desigualdades através de mudanças estruturais e institucionais, a partir da ação estatal para promover mudanças estruturais e nas relações de classe na direção de uma distribuição mais uniforme da riqueza e do poder.

 

Neste sentido, mesmo estando entre os maiores produtores e exportadores do mundo antes da pandemia, a China ainda se apresentava entre o grupo de países periféricos nas CGV farmacêuticas. A sua posição, porém, está mudando rapidamente com o poder do Estado alavancando a inovação nas cadeias de valor da saúde, por exemplo, desenvolvendo vacinas e medicamentos contra a pandemia da Covid-19 mesmo antes que algumas TNC do grupo da “Big Pharma”.

 

Por fim, a pandemia da Covid-19 revelou os efeitos dramáticos da concentração das cadeias de valor farmacêuticas lideradas por poderosas TNC. As rupturas nos fluxos de bens e serviços das cadeias associadas à prevenção, contenção, cuidado e tratamento contra o vírus em escala global atrasaram o fim do sofrimento e da morte de milhões de pessoas, o que poderia ter sido parcialmente evitado se a distribuição de poder e riqueza fosse mais equitativa. Além disso, a pandemia revelou que a divisão centro e periferia representada pelos direitos de propriedade tecnológica e do conhecimento são intimamente determinados não apenas pelas decisões de governança corporativa, mas também pelas políticas dos governos associadas às rivalidades do sistema capitalista inter-estatal.

 

Referências

 

Bergin, P. R., R. C. Feenstra, and G. H. Hanson. 2009. ‘Offshoring and Volatility: Evidence from Mexico’s Maquiladora Industry.’ American Economic Review, 99 (4): 1664-71.

 

Castillo, J. C., and A. Szirmai. 2016. ‘Mexican Manufacturing and its Integration Into Global Value Chains.’ UNU-MERIT Working Paper, 2016-001.

 

CEPAL. 2015. Neoestructuralismo y Corrientes Heterodoxas en América Latina y el Caribe a Inicios del Siglo XXI. Libros de la CEPAL, N° 132 (LC/G.2633-P/Rev.1), Santiago de Chile, Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL).

 

Gallagher, K.P., and L. Zarsky. 2007. The Enclave Economy Foreign Investment and Sustainable Development in Mexico’s Silicon Valley.  MIT Press: Cambridge, MA.

 

Geymond, M. 2020. ‘The Influence of Local Institutional and Historical Frameworks on a Globalized Industry: The Case of the Pharmaceutical Industry in France and Quebec.’ CES Working Papers, 20011, Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1), Centre d’Economie de la Sorbonne.

 

Globerman, S. 2011. ‘Global Value Chains: Economic and Policy Issues.’ In Global Value Chains: Impacts and Implications, edited by A. Sydor, 17-42. Ottawa: Department of Foreign Affairs and International Trade Canada.

 

Guedes Pinto, J. P., and K. Shadlen. 2018. ‘Cross-Border Flows of Goods and Services Associated with Intellectual Property: Highlighting the Asymmetries among Countries and Regions.’ Workshop: Political Economy of Capitalism – Young Scholars Initiative: University of Geneva.

 

Haakonsson, S. J. 2009. The changing governance structures of the global pharmaceutical value chain. Competition and Change, 13 (1): 75-95.

 

Reis, Cristina Fróes de Borja and  José Paulo Guedes Pinto. 2021. Center–periphery Relationships of Pharmaceutical Value Chains: A Critical Analysis based on Goods and Knowledge Trade Flows, Review of Political Economy, DOI: 10.1080/09538259.2021.1882192

 

Reis, C. F. B., and F. G. Cardoso. 2020. ‘Center and Periphery in Global Value Chains: an Interpretation based on the Pioneers of Development.’ In Contemporary Issues in Heterodox Economics, edited by A. Hermann and S. Mouatt, 171-190. London: Routledge.

 

Statista 2019. Revenue of the worldwide pharmaceutical market from 2001 to 2017 (in billion U.S. dollars). Available from: https://www.statista.com/statistics/263102/pharmaceutical-market-worldwide-revenue-since-2001/ . Accessed 05 May 2019.

 

Wells, N. 1985. ‘Pharmaceuticals Among the Sunrise Industries.’ Proceedings of an Office of Health Economics symposium, Royal College of Physicians, London, October: 22-23.

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