Nós e os outros degenerados: questionando a normalidade da Norma (V.4, N.4, P.5, 2021)
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A questão do desvio é condição sem a qual não se poderia pensar em uma suposta retidão. Cada gesto qualificado de sobriedade, normalidade e equilíbrio resulta necessariamente da fabricação de seus opostos. Logo, não há como pensar o desvio enquanto atributo de desencaminhamento, visto que, a norma é apenas um caminho que garante a passagem de um grupo específico ao lugar de poder. Se soubermos da existência e da legitimidade de outras possibilidades, serão extintas as hierarquias entre estradas e vielas, becos e travessas, ruas e avenidas. Até mesmo o almejado destino perderá seu encanto, em função da descoberta do não-lugar enquanto possibilidade de existência.
A cada dia que passa fico mais seguro de que o padrão de normalidade é um potente mecanismo para manutenção de uma estrutura de poder que se consolidou na história da humanidade. Tal estrutura confere autoridade àqueles que se revestem da identidade da normalidade sobre o “outro” a quem se confere a anormalidade.
Ora, se a definição de deficiência intelectual, por exemplo, se ancora em condutas adaptativas, (comunicação, auto cuidado, vida no lar, habilidades sociais, desempenho na comunidade, independência na locomoção, saúde e segurança, habilidades acadêmicas funcionais, lazer e trabalho), não seriam tais habilidades uma produção elaborada para atender a uma determinada ordem? É notório que para viver em segurança e ter autonomia no tipo de sociedade em que vivemos é necessário que nos apropriemos de alguns saberes e da própria cultura produzida pelo conjunto dos homens e mulheres.
Entretanto, se são adaptativas as condutas isso quer dizer que o sujeito deve se enquadrar ou se alinhar a uma ordem previamente imposta. A reflexão que faço é a de que essa ordem é violenta e segrega a todos quanto a subvertem. Pensar nessa ordem como uma estrutura construída e não como algo natural, nos faz entender que podem existir formas de se relacionar com o mundo que não estão em harmonia com essa ordem e nem por isso estaríamos diante de seres inferiores.
O que acontece é que, quem está no poder necessita de um tipo de ser humano que garanta a continuidade da estrutura. Assim, esse perfil “normocêntrico” é violento e suplanta do sujeito as capacidades que extrapolam aquilo que se faz necessário para a manutenção da ordem.
Os laudos médicos que caracterizam e enquadram o sujeito em uma tipificação patológica são demonstrações de que alguém que é caracterizado como anormal, não deve deixar o seu lugar, ou seja, deve ocupar os espaços destinados aos “anormais”. Uma vez “laudado” o sujeito é transformado em um “não-sujeito” e deve se comportar como tal. O recado é claro, morte (física, psicológica e social) àqueles que ousam sair de seus espaços e comprometer a engrenagem da estrutura que se consolidou e legitimou os privilégios de quem está no poder.
Creio, portanto, que o caminho para a superação da lógica da normalidade compulsória deve ser construído por todos nós. Isto porque, a normalidade nos neutraliza enquanto sujeitos potentes e criativos. A norma mantém o status quo e perpetua relações sociais de opressão. Há que se construir espaços para a pluralidade da existência humana em que as diferenças sejam compreendidas como motor do desenvolvimento humano por meio da completude que dela advém. Que a cada dia os espaços de poder sejam ocupados pelos tantos “marginais”, pois não há movimento quando garantimos a hegemonia da mesmidade.
Gostaria de fazer a referência desse texto em um trabalho escolar ou acadêmico? Veja como a seguir:
OLIVEIRA, Ângelo. NÓS E OS OUTROS DEGENERADOS: QUESTIONANDO A NORMALIDADE DA NORMA. Blog UFABC Divulga Ciência, ISSN 2596-0695. Disponível em: https://proec.ufabc.edu.br/ufabcdivulgaciencia/2021/04/19/nos-e-os-outros-degenerados-questionando-a-normalidade-da-norma-v-4-n-4-p-5-2021