|Série Biomas| Mangue não é só lama! (V.4, N.2, P.4, 2021)

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    Esta série sobre Biomas é o resultado dos trabalhos da disciplina Ciência Ambiental, ministrada pelo professor Prof. Dr. Ricardo H. Taniwaki, no âmbito do Programa de pós-graduação em Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Federal do ABC.

Divulgadores da Ciência:

Rodilei Morais e Sofia Spada

Quando pensamos em litoral, frequentemente pensamos em praias exuberantes, com longas faixas de areia. Mas engana-se quem pensa somente isso. Ao olharmos para a extensão da faixa costeira do Brasil, temos que ter em mente que haverá diferenças de acordo com as características de cada região. Compreender estas diferenças e como a sociedade vem ocupando e utilizando estas áreas é de vital importância para pensar em formas de conservação para este ambiente.

    Ao redor de todo o mundo, a ocupação humana se concentra principalmente nas regiões costeiras. No Brasil, isto não é diferente. O processo de colonização do país favoreceu a ocupação litorânea e, de acordo com dados do IBGE, cerca de 26% da população está nesta região atualmente. Esta população está associada também a uma série de atividades econômicas próprias, como a pesca, o turismo, a extração de petróleo, e a atividade portuária, tudo isso gerando uma grande pressão sobre as áreas naturais, conforme artigo de pesquisadores do Instituto Federal do Ceará (Abreu et al., 2017).

    Mas o que ocupa naturalmente as regiões costeiras? Segundo Leopoldo Coutinho, professor aposentado do departamento de Ecologia da USP, bioma é uma área que apresenta características ambientais semelhantes entre si. Desta forma, entende-se que a costa brasileira é formada por um conjunto de diferentes tipos de biomas e ecossistemas, dentre eles os manguezais, os apicuns, as praias e dunas, além das restingas e dos corais.

    Os mangues são biomas que se formam a partir da alternância entre maré alta e maré baixa, sendo considerado um ambiente de transição entre o ambiente marinho e o ambiente terrestre. Sua vegetação característica é composta por árvores de raízes expostas, que servem tanto de sustentação quanto para absorção de oxigênio. Estes ambientes são considerados verdadeiros berçários para diversas espécies de animais, contribuindo para o equilíbrio da biodiversidade, além de ajudarem na diminuição do aquecimento global por captarem grandes quantidades de gás carbônico da atmosfera. Os apicuns, também conhecidos como salgados, estão inseridos nos mangues e são áreas planas lamacentas, com elevadas quantidades de sal e com vegetação rasteira. Já as praias são regiões formadas a partir da deposição de sedimentos resultantes da ação dos oceanos sobre as rochas. A ação dos ventos pode carregar estes sedimentos e gerar a formação das dunas. Estas feições arenosas apresentam grande mobilidade e baixa vegetação. Outro ecossistema arenoso presente no litoral é o das restingas. Estas, por outro lado, são fixas e podem apresentar vegetação de portes variados, com predomínio de gramíneas e arbustos, mas também árvores de pequeno porte. Ainda que haja toda essa diversidade de ambientes costeiros, focaremos neste texto a questão dos mangues.

    Os manguezais ocupam uma área de cerca de 14.000 km² ao longo do litoral brasileiro. Desse total, 80% está distribuído entre os estados do Maranhão (36%), Pará (28%) e Amapá (16%), constituindo a maior porção desse ecossistema sob proteção legal em todo o mundo. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), 87% dos manguezais brasileiros encontram-se dentro de unidades de conservação, o que corresponde a uma área de aproximadamente 12.114 km².

    É notável que regulações que protejam áreas costeiras já existam desde os tempos do Brasil colonial. O ICMBio fez um levantamento histórico das legislações que tratam dos manguezais no estudo Atlas dos Manguezais do Brasil. Ainda que ainda não houvesse a preocupação ambiental, estas áreas já eram sujeitas a decretos que limitavam sua exploração, o que já demonstrava um reconhecimento de sua importância socioeconômica. Muitos séculos se passaram até a conscientização que levou o estabelecimento de uma vasta gama de leis que incluem a Política Nacional do Meio Ambiente, o Código Florestal e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

    Dentre as iniciativas que podem auxiliar a conservação destes ambientes, o monitoramento é uma que vem evoluindo consideravelmente. Destaca-se aqui o projeto MapBiomas, que busca rastrear as mudanças que ocorreram no uso e cobertura do solo a partir de 1985 para rastrear as perdas dos diferentes biomas que existem no país, servindo como uma importante ferramenta de suporte para políticas de proteção ambiental. O método utilizado pelo MapBiomas consiste na análise de imagens do Landsat, operado pela NASA e cujos produtos são disponibilizados gratuitamente para todo o mundo. Os pixels das imagens são classificados de acordo com o tipo de cobertura do solo e, a partir da série histórica, é possível ver como cada bioma evolui com o passar do tempo. São consideradas três categorias: a permanência de um bioma de um período de análise para outro, a expansão de um bioma sobre uma área que anteriormente era ocupada por outro uso, e a degradação de um bioma, que passa a ter outro uso no período seguinte.

    No que diz respeito às zonas costeiras, o último levantamento realizado pelo projeto indica que a partir de 2000 os manguezais brasileiros tiveram uma perda de 3% e os apicuns tiveram nas últimas duas décadas uma redução de 6%, totalizando ao todo uma perda de 9% de sua área. O mapeamento nos últimos 35 anos mostrou que o mangue apresenta uma área estável 92% em razão do dinamismo deste bioma.

    O gráfico abaixo mostra como que se deu a evolução dos manguezais ao longo dos anos, além da possibilidade de entender de que maneira ocorrem as perdas dos mangues. Entende-se por atividade antrópica a cobertura de mangue que foi substituída por área urbana ou aquicultura, esta atividade representa 5% das perdas.

    Já as perdas por atividade natural são as perdas que ocorrem quando o mangue é substituído por água oceânica ou por dunas. As perdas naturais representam 95% das perdas dos manguezais. A região Sudeste é a região que apresenta maior atividade antrópica, seguida da região nordeste.

Figura 1: Gráfico da evolução da cobertura dos manguezais brasileiros ao longo dos anos. FONTE: MapBiomas

    Para facilitar o monitoramento, o projeto separa as áreas de apicuns das áreas de mangues, mesmo que os apicuns ou salgados sejam parte dos manguezais. Essa separação é feita porque são os apicuns que apresentam maior degradação ambiental, quando comparado aos manguezais, já que nestas regiões é realizado o cultivo de camarões em tanques (carcinicultura). A carcinicultura incentiva também o desmatamento e o deslocamento das comunidades tradicionais dessas áreas.

Figura 2: Gráfico sobre a evolução da ocupação dos apicuns no litoral brasileiro. FONTE: MapBiomas

    Atualmente, 35% das áreas de apicuns fora da Amazônia podem ser ocupadas por aquicultura. Segundo reportagem da BBC News Brasil, em 2020 o país produziu cerca de 80 mil toneladas de camarão com destaque para os estados do Ceará (35 mil toneladas) e o Rio Grande do Norte (26 mil toneladas). Segundo a Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC) a meta é chegar a 200 mil toneladas em 2022. A aquicultura juntamente com a expansão urbana desordenada são os principais fatores que contribuem para a perda de mangue no país.

    O gráfico abaixo mostra a expansão da aquicultura no período de 1985 – 2019, sendo possível observar um aumento nas áreas destinadas para a aquicultura, totalizando 55%. As regiões com maior destaque são as regiões Sul e Sudeste, seguidas da região Nordeste. A região Norte, em virtude da floresta Amazônica, não apresenta intensa carcinicultura por conta da dificuldade de acesso da região, fazendo com que os mangues dessas áreas se mantenham mais bem preservados.

Figura 3: Evolução da aquicultura nas áreas de manguezais ao longo dos anos. FONTE: MapBiomas

    Além da criação intensiva de camarão, a agricultura e pecuária também são responsáveis pela degradação dos manguezais. Isso acontece porque 83% das áreas de mangues são classificadas como unidades de conservação de uso sustentável, da classe Reservas Extrativistas (RESEX). Essas unidades foram criadas para garantir que as populações tradicionais pudessem utilizá-las para sua subsistência de maneira sustentável.

    Na prática, as RESEX permitem que empreendimentos aquícolas sejam implementados dentro das unidades de conservação. A plantação da cana-de-açúcar próxima de regiões de mangues também contribui para a degradação desse habitat devido à utilização de fertilizantes e efluentes agrícolas. A expansão das áreas urbanas de forma desordenada também contribui para a destruição desse ecossistema. Nas áreas litorâneas essa expansão ocorre por conta da valoração dos imóveis, expulsando a população mais vulnerável dos centros urbanos que encontram nos manguezais uma opção barata de moradia. As palafitas acabam modificando os processos naturais que ocorrem no mangue, além de contribuir para a poluição das águas e assoreamento dos rios devido ao aumento da sedimentação.

    O Código Florestal de 2012 determina a recuperação de áreas de reserva legal e torna obrigatório o Cadastro Ambiental Rural (CAR). A ideia é conciliar a produção agrícola com a proteção ambiental, já que a projeção para 2030 é de que a área cultivada no país chegue a 92 milhões de hectares. Um estudo realizado pela ONG brasileira Imaflora, fundada em 1995 e que visa o uso sustentável dos recursos naturais, a região Nordeste é uma das regiões com maior desigualdade de terras no país, com destaque para a Bahia.

    A elevada especulação de terras no país, consequência da rentabilidade da desapropriação de proprietários com documentação frágil, contribui para que ocorra uma expulsão dessa população para áreas que são desvalorizadas, como o caso dos manguezais. Para evitar que os mangues continuem sendo destruídos, é preciso que os gestores públicos voltem a sua atenção para essas áreas e para as comunidades tradicionais de forma a garantir o bem-estar para essas populações. É preciso que a legislação seja aplicada e não afrouxada como temos observado nos últimos meses.

    O Brasil possui condições de proteger este ambiente tão importante, mas medidas mais efetivas ainda podem ser tomadas. Estudos das organizações WWF e UICN, que atuam globalmente pela conservação de ecossistemas, apontam uma série de ações possíveis para alcançar uma conservação adequada dos manguezais. Entre os principais pontos destacados estão: o fortalecimento de capacidades multidisciplinares dentro de instituições competentes, pois avaliar as medidas tomadas sob diferentes pontos de vista pode gerar resultados mais completos; o asseguramento de recursos humanos e financeiros para aplicação de regulações e monitoramento; o engajamento do setor privado, pois as ações deste setor podem impactar direta ou indiretamente no sistema; e principalmente, o envolvimento das comunidades tradicionais e locais no manejo destas unidades, já que este é o povo mais afetado por estar inserido há gerações neste ambiente. Além disso, o monitoramento feito pelo MapBiomas continua em evolução. Para os próximos anos espera-se que áreas de restinga e de corais também sejam incluídas na análise, expandindo as possibilidades para agências protetoras do meio-ambiente.

 

Referências 

 

ABREU, F. L.; VASCONCELOS, F. P.; ALBUQUERQUE, M. F. C. A Diversidade no Uso e Ocupação da Zona Costeira do Brasil: A Sustentabilidade como Necessidade. Conexões – Ciência e Tecnologia, v. 11, n. 5, p. 8, 22 dez. 2017.

 

ICMBio. Atlas dos manguezais do Brasil. 2018.

 

MENEGASSI, D. Decisão do Conama fragiliza proteção de restingas e manguezais. Associação O Eco. 28 set. 2020. Disponível em: <https://www.oeco.org.br/reportagens/revogacao-do-conama-fragiliza-protecao-de-restingas-e-manguezais/>. Acesso em 8 out. 2020.

 

PINHEIRO, M. V. DE A.; MOURA-FÉ, M. M.; FREITAS, E. M. DE N. Os Ecossistemas Dunares e a Legislação Ambiental Brasileira. Geo UERJ, v. 2, n. 24, 9 dez. 2013.

 

SHALDERS, A. Por que decisão de Ricardo Salles sobre manguezais representa ‘volta no tempo’ de quase 500 anos. BBC News Brasil, 8 out. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54461270>. Acesso em 8 out. 2020.

 

SLOBODIAN, L. N.; BADOZ, L. (ed.). Raízes Emaranhadas e Mudanças das marés. Governança dos mangais para a conservação e uso sustentável. WWF, UICN. 2020.

 

 

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