Para cada muro que se ergue e para cada grade que se monta, há dezenas de pessoas para derrubá-los (V.2, N.6, P.6, 2019)

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20 de junho- Dia Mundial do Refugiado é celebrado por coordenadores do projeto Português para Refugiados da região do ABC, primeiro do país a acolher crianças

 

 Divulgadores da Ciência

 

 Julia Serra Martins

 

Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC e aluna da graduação em Políticas Públicas na referida universidade. Pesquisadora bolsista CNPq em direitos humanos e coordenadores do curso de Português para Refugiados da UFABC, responsável pelo Espaço Infantil e turmas de crianças. Participa do Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Relações Internacionais da UFABC (GEDHRI-UFABC) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello ACNUR-UFABC.

 

Camila Nascimento

 

Aluna de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC, pesquisadora bolsista (UFABC e CNPq) em socialização e integração de refugiados no Brasil e no mundo e coordenadora geral do Curso de Português para Refugiados da UFABC, responsável por sua organização e pelas salas de aula de adultos. Participa do Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Relações Internacionais da UFABC (GEDHRI-UFABC) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello ACNUR-UFABC.

 

 José Blanes Sala

 

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, cursou dois anos na Facultat de Geografia e História da Universitat de Barcelona, mestrado e doutorado em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto da Universidade Federal do ABC – UFABC, coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR-UFABC e do Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Relações Internacionais da UFABC (GEDHRI-UFABC). Experiência na área de Direito, Relações Internacionais e Políticas Públicas, com ênfase em Direito Internacional, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direitos Humanos e Gestão Municipal.

 

Celebrado em 20 de junho, o Dia Mundial do Refugiado é uma data de grande importância. Em alguns anos, focamos em homenagear a coragem e a bravura de milhares de pessoas que são obrigadas a deixarem suas casas mundo afora em busca de uma nova vida em lugares desconhecidos; em outros, usamos a data para ampliar o diálogo e a conscientização sobre a causa; mas neste ano, o 20 de junho nos servirá para, além de tudo isso, celebrar os avanços sociais e políticos que têm se ampliado nos últimos anos ao redor do mundo. A crise humanitária que vivemos hoje, com centenas de milhares de pessoas se movendo em busca de proteção, segurança e perspectiva de futuro, nos mostra também um outro lado: como algumas sociedades têm mostrado alteridade e se mobilizado pela solidariedade quando observamos o acolhimento, integração e socialização de pessoas em situação de refúgio. Para cada muro que se ergue e para cada grade que se monta, há dezenas de pessoas para derrubá-los.

 

Internacionalmente, seguindo o Estatuto dos Refugiados de 1951 e a Declaração de Cartagena de 1984, entende-se por refugiado toda e qualquer pessoa que está forçadamente fora de seu país de origem em função de fundados temores de perseguição relacionados a questões de nacionalidade, raça, religião, grupo social ou opinião política; ou devido a conflitos armados, violência extrema e generalizada, além de graves violações de direitos humanos. Ano a ano, mundo afora, centenas de milhares de refugiados são forçados a se deslocarem para fora de seus países de origem, deixando para trás suas casas, empregos, seus bens, amigos e até familiares, em busca de uma nova opção mais segura de vida. Refugiados não escolhem abandonar suas vidas em seus países de nascimento, mas sim são forçados a isso.

 

Os países que os recebem, por sua vez, têm a complexa missão de assegurar aos refugiados direitos humanos e proteção, física e mental, que lhes foram gravemente tirados ou simplesmente não assegurados pelos seus países de origem. Sendo assim, os sistemas nacionais de proteção e refúgio existem para definir quais pessoas solicitantes de refúgio precisam de proteção conjunta com a internacional e quais ficam sob o mandato exclusivo de proteção nacional. Vale comentar que, por isso então, o princípio mais importante da condição de refúgio é o da não devolução – conhecido como ‘non-refoulement’ – o qual define a impossibilidade de qualquer pessoa com status de refugiado ou solicitante de refúgio de ser devolvido a seu país de origem, em cujo território sua vida e integridade estejam em alto risco de violação.

 

Os refugiados têm os mesmos direitos que as pessoas imigrantes que residem em situação regular em determinado país de acolhida. Entre eles, são assegurados os direitos civis – como liberdade, de propriedade e de deslocamento -, direitos econômicos – como ao trabalho – e direitos sociais – como assistência médica pública e educação. Em contrapartida, os refugiados devem seguir as leis do país de acolhida, como os cidadãos nacionais. Essa relação que se estabelece é complexa, porque os refugiados vêm de países com hábitos e costumes diferentes do habitual no país de acolhida, inclusive, com leis diferentes. Deste modo, soma-se a aprender no país de acolhida os novos direitos e deveres que não possuíam no país de origem.

 

No Brasil

 

Aprender sobre seus direitos e deveres no país de acolhida é um processo que envolve reaprender muitas vezes a própria construção do que é direito e dever, um tanto diferente do que o refugiado aprendeu em seu país desde criança. A obrigatoriedade das crianças em frequentar a escola no Brasil, por exemplo, é uma situação que coloca tais fatos em evidência. Em muitos países é uma escolha dos pais levar ou não seus filhos na escola. Aqui, é obrigatório, sendo um direito das crianças e, consequentemente, dever dos pais. Isso implica em não só apenas conhecer a lei, mas saber interpretá-la e aprender ainda sobre o sistema educacional do Brasil, público e privado.

 

No Brasil o acesso público ao sistema único de saúde ou o direito (e dever) das mulheres grávidas de fazer o pré-natal, algo que não existe em muitos países ou são serviços pagos.

 

O fato de a lei brasileira igualar os nascidos aqui com os que chegaram até aqui é marcante e por isso, é lembrada internacionalmente como uma das mais avançadas e modernas na temática. Entender o refugiado como um ser humano que, não por sua escolha, mas por uma situação, necessita de abrigo e dar a eles a oportunidades de crescer, estudar, se especializar, cuidar de sua saúde e da sua família deve ser celebrado. Por outro lado, é evidente que existe uma complexidade em relação a este aprendizado do que é direito e dever no país que recebe, em especial no aprendizado das relações socioculturais, uma vez que muitos hábitos podem ser bastante diferentes do país natal do refugiado, como relações familiares, amizades, hábitos, alimentação, etc. Um exemplo claro é em relação a casais ‘violência doméstica’ ou casais LGBTQ+. Ainda que o Brasil não seja referência em aceitação social deste arranjo familiar, a lei brasileira garante a igualdade de tratamento, o que difere de muitos países onde há prisões e penas de morte para casais gays. Muitos refugiados se deparam com esta diferença de olhar sobre tais questões e precisam estar abertos a ter um novo olhar sobre a questão, como exige-se de todos os brasileiros, que aceitando ou não, também precisam aprender a respeitá-los.

 

O Brasil, em especial, tem um papel importante como país de acolhida no cenário das migrações internacionais. Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE, 2019), órgão interministerial sob liderança do Ministério da Justiça do Brasil, destinado a deliberar sobre as solicitações de refúgio, o Brasil registrou até dezembro de 2018 mais de 157 mil solicitações de refúgio, sendo 10.522 delas refugiadas reconhecidas até então, advindas de 105 países diferentes.

 

 

 Fonte: Comitê Nacional para os Refugiados

 

Em relação aos sírios, o Brasil solidarizou-se com a situação de catástrofe enfrentada pela população daquele país por conta da guerra civil e dispôs-se a reconhecer previamente, nas embaixadas dos países árabes, a condição de refugiado para todo e qualquer sírio. Deste modo, o indivíduo não precisava chegar no Brasil para solicitar refúgio (o que é a regra), mas poderia pedir um visto em qualquer embaixada brasileira para conseguir viajar para cá. Isso deu condição de muitas famílias migrarem para o Brasil, uma vez que desburocratizou o processo, o que aumentou exponencialmente a quantidade de refugiados sírios no país, sendo eles hoje a maior parte dos refugiados reconhecidos no país.

 

Já com os haitianos, o governo foi tomado de surpresa, pois não era esperada tal migração, de modo que agiu em emergência para abrigar e acolher todos que chegavam, a maioria em situação documental irregular (sem visto). Deste modo, como eles não se encaixavam na definição de lei federal do refúgio (nº 9.474/97) porque não estavam fugindo de perseguição e sim em busca de condições melhores que permitissem sua sobrevivência e dada a situação de calamidade do país de origem, o governo criou o mecanismo do visto humanitário, um visto que não é nem de refúgio nem de migrante, mas que permite ao portador ficar no Brasil legalmente e regularizado, dando-lhe acesso ao mercado de trabalho, sistemas de saúde e educação, moradia, etc. Por conta disso, os haitianos não entram na conta da quantidade de refugiados reconhecidos no Brasil, mas, se entrassem, o número seria muito maior.

 

Hoje, além desses dois fluxos, há a migração dos venezuelanos para o Brasil, sendo um marco na história do país por conta da quantidade de pessoas que atravessam a fronteira todos os dias em busca de melhores condições de vida e de uma situação que lhes permita pelo menos a sobrevivência, dado a falta de alimentos da Venezuela. Desde 2015, mais de 85 mil venezuelanos procuraram a Polícia Federal para solicitar refúgio ou residência no Brasil.

 

Como acolher

 

Esta situação nos coloca, como sociedade, para pensar em como receber essas crianças, adultos, idosos, pessoas que necessitam de casa, abrigo, alimentação e moradia e que tem formação para entrar no mercado de trabalho e gerar emprego e renda para o país de acolhida. Grande parte dos migrantes forçados buscam o Brasil pelas condições e garantias legais que o nosso país lhes oferece. Internamente, existe uma legislação específica para o refúgio, a já citada Lei Federal 9.474/2010, considerada moderna por assumir uma definição ampliada sobre o reconhecimento de refugiados. Indo mais fundo em relação à definição internacional, a legislação brasileira estabelece como refugiadas todas as pessoas que procuram segurança, em geral, frente a situações de profunda violação de direitos humanos (ACNUR, 2019).  Ainda assim, apesar de ser internacionalmente reconhecido como um país acolhedor e preocupado com as migrações, o Brasil apresenta internamente diversas dificuldades aos refugiados, sobretudo quanto à sua integração na sociedade.

 

Em geral, as barreiras iniciais que se levantam na chegada de refugiados ao Brasil estão relacionadas ao aprendizado do idioma e a validação de seus documentos pelos serviços públicos brasileiros, que derivam em diversos outros problemas complexos, também enfrentados por brasileiros natos, como busca por colocação no mercado de trabalho e acesso a serviços básicos de qualidade, como educação, saúde e cultura. O desconhecimento do idioma local, em especial, é um dos principais – se não o principal – fatores de vulnerabilidade de refugiados mundo afora. Saber o idioma local é fundamental para o processo de adaptação e integração de migrantes em geral no país de recepção e/ou acolhida. Pensando em suas necessidades mais básicas – como tirar documentação, encontrar um emprego, moradia, acompanhar a vida escolar dos filhos e acessar locais cotidianos, como mercados, lojas e serviços de saúde – algumas instituições oferecem cursos de português gratuitos, que visam, através da metodologia do ensino de língua de acolhimento (PLAc), fornecer insumos para que os grupos migrantes se fortaleçam, se integrem à sociedade e diminuam vulnerabilidades que os cercam.

 

Pessoas em situação de refúgio precisam aprender em aula o que irão usar assim que saírem dali: conversar com um médico, pedir informações sobre transporte e clima, sobre como utilizar os bancos no Brasil, como tirar CPF e RNE, etc. O ensino precisa ser prático, indo além do idioma, mas carregando consigo a integração. É durante as aulas que para além de se ensinar gramática, se ensinará como fazer matrícula nas escolas ou acessar programas sociais como o Bolsa-Família. Deste modo, o enfoque da língua é diferenciado, o que gera uma ampla discussão sobre como criar o material para um curso tão específico, rápido, pragmático, mas que exige uma alta qualidade tanto em questões do português quanto em questões de integração, principalmente em relação ao ensino dos direitos e deveres do cidadão no Brasil.

 

Na UFABC

 

O projeto Português para Refugiados da região do ABC, vinculado à Universidade Federal do ABC (UFABC), com supervisão do professor José Blanes Sala e apoio da Cátedra tem o intuito de ajudar na construção de soluções duradouras (ACNUR, 2018), de modo a contribuir para a autossuficiência e autonomia de pessoas em situação de refúgio, reestruturamos as aulas pensando nas necessidades práticas de refugiados no país; portanto não se trata de um curso de idiomas ou de alfabetização, mas sim de acolhimento. Em 2018 o projeto atingiu 100 alunos adultos – foco do projeto – e, inesperadamente, 64 crianças, tornando nosso projeto o primeiro curso desse tipo no Brasil a acolher crianças.

 

Em 2019 o projeto conta com 55 voluntários, capacitados por um curso de formação feito pelos coordenadores, em parceria com a UFABC, com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e com o Instituto de Reintegração do Refugiado (ADUS). São 120 alunos adultos e 135 crianças matriculadas, que desenvolvem atividades educativas com base na metodologia da língua de acolhimento enquanto seus pais também estão em aula. Estamos focadas, neste ano, em estruturar materiais didáticos e de apoio que tenham conteúdos mais interessantes e que sejam mais eficientemente apreendidos pelos alunos. E uma lista de espera com 300 pessoas.

 

A luta é contínua

 

Como conseguir e manter recursos para um curso desse tamanho? Como desenvolver a metodologia de português como língua de acolhimento na prática? Como encontrar pessoas capacitadas para oferecer um curso forte e eficiente? Como adaptar na prática a metodologia referida para crianças? Como expandir o trabalho de acolhimento e de integração para outros lugares? São questões para as quais buscamos respostas.

 

Mas, ainda assim, lutamos e incentivamos que outras pessoas lutem pela causa. Entendemos que o engajamento das autoridades locais e, principalmente, da sociedade civil na acolhida e integração de refugiados tem se mostrado muito positivo e eficiente nos últimos anos. É necessário sempre recalcar que os esforços em prol da referida causa são essenciais para que a proteção a essas pessoas de fato seja garantida. Dessa forma, enfim, neste 20 de junho de 2019, celebramos os avanços obtidos até aqui, bem como nos comprometemos a nos empenhar em novas formas de luta em prol dos refugiados.  

 

REFERÊNCIAS

 

ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados); OIT (Organização Internacional do Trabalho). Livelihood for Migrants and Refugees in Brazil. ACNUR, 2019. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Livelihood-for-Migrants-and-Refugees-ACNUR-e-OIT.pdf.

 

BERNARDO, Mirelle do Amaral de São. Português como Língua de Acolhimento: Um Estudo com Imigrantes e Pessoas em Situação de Refúgio no Brasil. Tese de doutorado em linguística da Universidade Federal de São Carlos. São Paulo, 2016.

 

BRASIL, Governo Federal. Justiça e Segurança Pública: Refúgio em Números e Publicações. Site do governo federal do Brasil, disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/refugio-em-numeros.

 

PEREIRA, Giselda Fernanda. O Português como Língua de Acolhimento e Interação: A Busca pela Autonomia por Pessoas em Situação de Refúgio no Brasil. Cadernos de pós-graduação em letras. São Paulo: 2017.

 

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