|Série Buraco Negro #1| Muito além de um borrão: o que é essa primeira foto de um buraco negro? (V.2, N.4, P.3, 2019)
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Após uma expectativa maior que a dos fãs para a temporada final de Game of Thrones (ou não), foi divulgada nesta quarta-feira (10), a primeira foto de um buraco negro e ela é… bem, um borrão?
Mas, porque é tão difícil tirar a foto de um buraco negro? O que, afinal, é um buraco negro e o que torna esse borrão tão especial?
Imagine uma grande piscina completamente cheia… Agora imagine que, nessa piscina, há um ralo aberto, sugando a água com grande velocidade. Dentro da piscina, há, também, um peixinho nadando tranquilamente, até que ele chega até um ponto em que a água sugada pelo ralo começa a puxá-lo. Ele tenta escapar nadando, mas é impossível, pois, por mais que ele tente nadar na direção contrária, a velocidade com que a água escorre em direção àquele buraco é muito maior do que a velocidade de nado do peixinho, empurrando-o para um destino desconhecido.
Se você trocar a piscina pelo universo e o peixinho pela luz, o ralo será um buraco negro.
Saindo da órbita
Agora imagine que tem em mãos uma bolinha (daquelas que encontramos em maquininhas de supermercados ou shoppings). Se você jogar essa bolinha para cima ela irá subir e, em seguida, cair, puxada pela gravidade. Mas será que seria possível jogar a bolinha com uma velocidade tão grande, a ponto de ela escapar da influência gravitacional?
Sim, é possível que isso ocorra, e a velocidade mínima para conseguir esse feito é chamada de velocidade de escape. Essa velocidade de escape depende da massa do corpo celeste de onde será preciso escapar (um planeta, uma estrela, etc.) e da distância entre esse objeto e o centro do corpo celeste. No caso da Terra, a velocidade de escape de um objeto na sua superfície é de pouco mais de 40 mil km/h, ou seja, é preciso arremessar sua bolinha mais rápido que isso se quiser que ela saia do planeta e não seja mais puxada pela gravidade.
Quanto maior a massa do corpo celeste, maior a velocidade de escape. Com a distância, é ao contrário, quanto menor ela for, aí sim é que a velocidade precisa ser maior.
Então se, por acaso, tivermos um corpo celeste com uma massa bem maior que a da Terra, mas que for menor em tamanho (o que faz com que a distância do objeto em sua superfície até seu centro seja pequena) teríamos um lugar com uma velocidade de escape muito superior aos 40 mil quilômetros por hora. E assim por diante.
Voltando aos buracos negros
Buracos negros possuem uma massa bilhões de vezes maior que a da Terra, só que comprimida em um pequeno espaço, por isso a velocidade de escape deles é gigantesca, maior até que a velocidade da luz. E como nada no universo se move mais rápido que a luz, absolutamente nada consegue escapar de um buraco negro! O peixinho poderia tentar o quanto quisesse, mas, mesmo que ele atingisse a maior velocidade possível, ele não conseguiria escapar do ralo. É importante deixar claro que os objetos não conseguem sair do buraco negro porque é impossível atingir a velocidade de escape necessária, não porque ele faz uma sucção de matéria muito forte ou sempre mais rápida que o objeto tentando fugir (como a analogia da piscina pode dar a entender). Estudando a física mais à fundo, essa explicação com velocidade de escape deixa de ser tão correta, porém prefiro usá-la aqui para entendermos melhor.
O fato de nada escapar de um buraco negro é que os torna tão difíceis de serem estudados. Para enxergá-los e descobrir suas características é preciso que a luz os atinja e depois chegue aos nossos telescópios, mas já vimos que isso é impossível porque nada pode escapar de seu poder atrativo. Mas então como foi possível tirar essa foto?
Bem, a imagem publicada, intitulada como “primeira foto de um buraco negro” não é nem uma foto no sentido que conhecemos, nem é exatamente do buraco negro. Calma, eu explico.
A ciência por trás do borrão
A imagem foi feita pelo projeto Event Horizon Telescope (EHT), que reuniu oito telescópios em lugares diferentes da Terra, todos sincronizados com a precisão de um relógio atômico (os instrumentos mais precisos para medir o tempo já criados pela humanidade, utilizados, por exemplo, em GPS) e apontados para o mesmo alvo. Com todos eles unidos a capacidade de visualização foi ampliada, como se a união dos seus poderes (Vai, Planeta!) tivesse formado o equivalente a um telescópio superpoderoso do tamanho do nosso planeta. Só assim foi possível coletar os dados desse buraco negro. Então vamos à ficha do sujeito: chamado de M87*, ele está no centro da galáxia Messier 87, a 55 milhões de anos-luz da Terra (o mesmo que 500 quintilhões de quilômetros, um 5 seguido de 20 zeros!). E tem a incrível massa de 6,5 bilhões de vezes a do Sol!
Voltando à analogia do peixinho, vocês se lembram que ele só começou a ser sugado pelo ralo quando chegou perto de uma área onde a água começava a puxá-lo? Pois é, há um limite de até onde é seguro para o peixinho sem que ele seja puxado pelo ralo. No caso dos buracos negros esse limite é chamado de horizonte de eventos, uma borda onde a luz ainda pode trafegar sem ser atraída e, portanto, pode chegar até outros lugares do espaço. Dessa forma, o horizonte de eventos é o limite máximo que conseguimos ver.
E o que teríamos para ver? Bem, de tudo que o buraco negro puxa para dentro de si, ainda sobram alguns restos, como detritos e nuvens de gases que ficam orbitando ao seu redor em grande velocidade, o que faz com que brilhem intensamente. Esse é o chamado disco de acreção, um nome que deixa bem claro seu formato circular achatado em torno do buraco negro.
Então, o que vemos na imagem é esse disco de acreção no horizonte de eventos. O seu diâmetro, o que nos dá uma aproximação do diâmetro do buraco negro, é de cerca de 40 bilhões de quilômetros (3 milhões de vezes maior que a Terra e maior que o Sistema Solar inteiro). Pode parecer muito, mas, considerando que ele pesa 6,5 bilhões de vezes a massa do Sol, seu tamanho é bem pequeno!
A foto mais difícil da história
Só que ainda há mais um probleminha. A luz visível tem muita dificuldade de chegar até nós, principalmente porque o universo está repleto de poeira e outros detritos espaciais que interferem no caminho. A maioria dos objetos que observamos não são capturados com luz visível e sim por outras faixas do espectro luminoso, como a radiação infravermelha. No caso da imagem obtida pelo EHT, os telescópios estavam calibrados para captarem a radiação com comprimentos de onda maiores, na ordem das ondas de rádio.
Por isso demorou tanto para termos o anúncio da foto, considerando que os dados começaram ser coletados em 2017. É claro, ainda houve toda a logística de unir os dados dos telescópios espalhados pelo mundo. Como a imagem captada foi feita em ondas de rádio foi preciso converter para uma faixa da radiação em que possamos enxergar, que é a faixa do visível, montando assim a imagem. Vale ressaltar aqui o trabalho sensacional da dra. Katie Bouman, responsável por grande parte da criação e liderança no desenvolvimento do algoritmo de computador responsável por converter esses dados coletados em uma imagem visível . Por isso eu disse que não foi bem uma foto do jeito que conhecemos, já que nossas câmeras e celulares captam apenas luz visível. Aqui, a luz invisível para humanos foi captada e transformada em algo visível.
Os dados captados fornecem outras informações além da massa, como também da rotação do buraco negro. Esse é um detalhe desses corpos: suas características únicas que conseguimos descobrir se reduzem a massa, rotação e carga elétrica. Nada mais. Você pode comparar um buraco negro que “comeu” uma estrela com o que “comeu” um planeta, eles vão ser idênticos (pelo menos até onde compreendemos). Daí vem a famosa frase “buracos negros não têm cabelos”, ou seja, são apenas sujeitos bem pesados, pequeninos e carecas, indistinguíveis um do outro. Mas as novas informações que os cientistas continuam coletando podem mudar essa ideia e quem sabe um dia encontraremos as belas madeixas de um buraco negro.
Diante de tais dificuldades (afinal os telescópios estavam tentando fotografar algo que é impossível de ser visto e que estava há uma distância absurda de nós!) a imagem deixa de ser apenas um borrão e se torna o símbolo de uma conquista fantástica, um passo muito importante para a astrofísica, e também para a física em geral. Para dimensionar o tamanho dessa conquista, basta pensarmos que os buracos negros eram corpos percebidos pelos olhos da relatividade geral, e, agora que foram confirmados, temos mais um ponto para a teoria de Albert Einstein!
O feito foi um passo muito grande não só para a ciência, mas, também, para a humanidade em geral. Conseguimos enxergar algo próximo daquilo que parecia impossível, vencemos mais um limite graças ao trabalho coletivo de mais de 200 pesquisadores de cerca de 20 países diferentes, assim como todo o esforço de pesquisa que os sucedeu, uma união que trouxe o progresso. E do mesmo modo que muitas dúvidas foram sanadas, outras mais surgiram e surgirão, e é assim que a ciência funciona.
Portanto, podemos afirmar: não é apenas um borrão.
Sobre o autor:
Pedro Silva é estudante do bacharelado e licenciatura em Física pela Universidade Federal do ABC e bolsista de extensão do UFABC Divulga Ciência. |
Referências e recomendações:
- O anúncio completo está no site do Event Horizon Telescope. Disponível em: https://eventhorizontelescope.org/
- Artigo com os primeiros resultados: First M87 Event Horizon Telescope Results. I.The Shadow of the Supermassive Black Hole. Disponível em: https://iopscience.iop.org/article/10.3847/2041-8213/ab0ec7
Livro:
- The Black Hole War (2008), de Leonard Susskind
Vídeos:
- O canal SpaceToday tem uma playlist sobre o tema, incluindo vídeos sobre a imagem do EHT. Disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLSn5Nx9GNk6IEbEX3KRlBHuh_Z5a26Odz
- Para conteúdo em inglês, recomendo o canal Veritasium: Disponível em: https://www.youtube.com/user/1veritasium/videos
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Que matéria incrível! Descobri esse blog há pouco tempo e preciso dizer o quão feliz fiquei! <3
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