Além do Teorema de Bell: Podemos Manter o Realismo na Física Quântica? (V.8, P.9, P.04, 2025)

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Divulgador da Ciência: Prof. Dr. Ever Aldo Arroyo Montero.

Um dos maiores mistérios da física moderna surgiu a partir da observação de um efeito surpreendente: o
estudo de partículas entrelaçadas no chamado estado singlete. Quando dois elétrons (ou fótons) são
preparados nesse estado especial, eles passam a ter seus spins (ou polarizações) fortemente
correlacionados, mesmo quando separados por grandes distâncias. Isso significa que, ao medirmos o spin
de uma partícula em determinada direção, o resultado da outra — medido em outra direção, longe dali —
não será aleatório, mas correlacionado de uma forma precisa, prevista pela mecânica quântica.
Essas correlações quânticas são tão fortes que desafiam nossa intuição sobre como o mundo funciona.
Desde os anos 1930 — com o famoso artigo de Einstein, Podolsky e Rosen (EPR) — os físicos
questionam se seria possível explicar esses efeitos com uma teoria mais profunda, que complementasse a
mecânica quântica, ou seja, com elementos da realidade ainda desconhecidos que determinassem, de
modo local e causal, os resultados de cada medição. Mais tarde, esses elementos hipotéticos ficaram
conhecidos como variáveis ocultas.
Essa investigação ganhou um novo rumo nos anos 1960, com o trabalho revolucionário do físico John
Bell. Bell demonstrou que qualquer teoria de variáveis ocultas — baseada em três pressupostos
fundamentais: realismo, localidade e independência das medições — deve obedecer a certas limitações
matemáticas, conhecidas como desigualdades de Bell. Mas os experimentos mostraram justamente o
contrário: as previsões da mecânica quântica violam essas desigualdades, e os resultados experimentais
confirmam essas violações com impressionante precisão.
Os três pilares do teorema de Bell
Para entender o que está em jogo, é importante conhecer os três pilares do teorema de Bell:
1. Realismo: a ideia de que as propriedades físicas das partículas (como o spin ou a polarização)
existem de forma bem definida antes da medição, e que o ato de medir apenas revela esses valores.
2. Localidade: o princípio de que um evento que ocorre em um local não pode influenciar
instantaneamente outro evento em um ponto distante, respeitando o limite de velocidade da luz
imposto pela relatividade.
3. Independência das medições: a suposição de que as configurações escolhidas pelos
experimentadores (como as direções para medir o spin) são estatisticamente independentes das
variáveis ocultas que determinam os valores de spin (ou polarização) revelados em cada medição.
O teorema de Bell mostra que, se esses três princípios forem verdadeiros, certas correlações entre as
medições jamais poderiam ocorrer. Mas como os experimentos demonstram essas correlações — e elas
coincidem com as previsões quânticas — então, ao menos um desses princípios deve estar errado.

O que a maioria dos físicos assume
Diante das evidências experimentais, a física contemporânea em geral rejeita o realismo, adotando
interpretações como a de Copenhague. Segundo essa visão, a natureza quântica do mundo é
fundamentalmente indeterminística: os resultados das medições não estão pré-determinados, mas só se
definem no momento da interação com o aparato de medição. Nessa perspectiva, a realidade física só se
concretiza no ato da medição — uma ideia que Einstein criticava com seu famoso questionamento: “Será
que a Lua só existe quando a olhamos?”. O pai da relatividade defendia um realismo robusto, segundo o
qual os objetos físicos possuem propriedades bem definidas independentemente da observação, em claro
contraste com a interpretação ortodoxa da mecânica quântica.

Mas será mesmo necessário abandonar o realismo?
Alguns pesquisadores, no entanto, buscam preservar tanto o realismo quanto a localidade, propondo uma
alternativa menos discutida: talvez o problema esteja no terceiro pilar — a chamada independência das
medições. Esse princípio, também conhecido como independência estatística, afirma que as escolhas
experimentais são livres no sentido de que não estão correlacionadas com as variáveis ocultas que
determinam os valores de spin (ou polarização) revelados em cada medição. Questionar a hipótese da

independência estadística não implica necessariamente negar que os cientistas possam fazer escolhas
conscientes ou deliberadas.
Se existir alguma correlação preestabelecida entre as configurações de medição e as variáveis ocultas, isso
não implicaria necessariamente uma violação da liberdade. Há cenários conceitualmente consistentes — e
fisicamente plausíveis — em que a dependência estatística pode surgir de forma natural.

Quatro caminhos para entender a dependência estatística
Pesquisadores propuseram diferentes formas pelas quais as escolhas de medição e as variáveis ocultas
poderiam estar correlacionadas:
1. Determinismo radical: As variáveis ocultas determinariam, no sentido causal, não apenas os
resultados dos experimentos, mas também as próprias escolhas dos experimentadores. Essa
hipótese levanta debates filosóficos sobre o livre-arbítrio e, em geral, é vista com ceticismo.
2. Retro causalidade: As escolhas feitas no presente influenciariam as variáveis ocultas no passado.
A ideia de que o futuro pode afetar o passado é controversa, mas tem sido explorada em propostas
inovadoras dentro da física teórica.
3. Causa comum: Uma hipótese mais intuitiva é que tanto as variáveis ocultas quanto as escolhas de
medição compartilhem uma origem comum. Assim como uma predisposição genética poderia ser
responsável tanto pelo hábito de fumar quanto pela propensão ao câncer de pulmão, uma variável
oculta primordial poderia, de forma análoga, explicar as correlações sem exigir uma relação causal
direta entre as variáveis ocultas e as escolhas de medição — e sem recorrer a ações à distância ou a
interferências retroativas.
4. Restrições globais: Uma proposta mais recente, conhecida como abordagem “all-at-once”, sugere
que os valores das variáveis ocultas e as escolhas de medição não são definidos separadamente,
mas devem obedecer a restrições globais de consistência. É como se todos os elementos do
experimento — inclusive o que os cientistas acreditam ter escolhido livremente — fizessem parte
de um padrão coeso que só pode ser compreendido em sua totalidade.
Essas ideias permitem imaginar teorias que preservam o realismo e a localidade, mas que ainda assim
reproduzem as correlações quânticas observadas, ao custo de abandonar a suposição da independência
estadística.

E a liberdade do experimentador?
Um ponto crucial nesse debate é questionar se a rejeição da independência estatística necessariamente
compromete a liberdade dos experimentadores em escolher suas configurações de medição. É importante
destacar que os modelos baseados em causa comum ou em restrições globais não implicam na supressão
prática da liberdade dos responsáveis pelos experimentos. Eles propõem apenas que pode existir uma
correlação estatística entre as escolhas de medição e as variáveis ocultas — uma relação que não exige
qualquer forma de controle ou manipulação consciente por parte dos experimentadores. Como observou
Bell em 1985: Se uma teoria local de variáveis ocultas for possível, ela requer uma conspiração — mas
talvez uma conspiração da natureza, não dos físicos.

Conclusão
O teorema de Bell nos obriga a questionar suposições profundas sobre o mundo físico. A maioria dos
físicos aceita que o realismo foi a vítima dessa revolução, abraçando um universo essencialmente
indeterminado. Mas uma leitura alternativa, cada vez mais discutida, mostra que ainda é possível
preservar uma visão determinista e local da realidade — desde que estejamos dispostos a reconsiderar a
ideia de que as medições são completamente livres de influências estatísticas ocultas. Essa alternativa nos
leva a uma física talvez menos intuitiva, mas potencialmente mais coerente com um universo conectado
de maneira mais profunda do que imaginávamos.

Comentário final
O presente artigo de divulgação científica fundamenta-se nas ideias e resultados apresentados na seguinte
publicação:

A family of deterministic models for singlet quantum state correlations,
E. Aldo Arroyo, Journal of Physics A: Mathematical and Theoretical, Volume 58, Number 24, publicado
em 12 de junho de 2025.
Link: https://doi.org/10.1088/1751-8121/ade104

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