“À mon seul désir” no século digital: unicórnios, Beatles e as redes sociais (V.8, N.9, P.06, 2025)
Tempo estimado de leitura: 7 minute(s)

“A mon seul desir”, foto de Didier Descouens – Own work, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=115126368
O unicórnio, essa criatura que jamais foi vista em carne e osso, conseguiu atravessar milênios com uma popularidade invejável. Símbolo de pureza, força e transcendência, ele ainda hoje aparece em camisetas, startups bilionárias e memes cor-de-rosa. Não deixa de ser curioso que algo que nunca existiu materialmente insista tanto em existir na imaginação humana. Talvez seja justamente isso: a humanidade adora acreditar no que não pode ter.
Entre as representações mais belas e célebres do unicórnio, estão as tapeçarias “La Dame à la Licorne”, guardadas no Museu de Cluny, em Paris [1]. Seis painéis monumentais, tecidos no final da Idade Média, que colocam uma dama nobre diante de vários simbolismos, onde se destacam dois animais heráldicos: um leão e, claro, um unicórnio. Cinco desta tapeçarias representam os sentidos humanos de forma bem evidente. O sexto, porém, é um enigma. Talvez um dos maiores enigmas da cultura humana.

Detalhe da tapeçaria, foto de Didier Descouens – Own work, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=115126368
Esse sexto painel, conhecido como “À mon seul désir” (que, sob uma dimensão espiritual como uma jornada da alma humana, pode ser traduzido como “Ao meu único desejo”), mostra a dama diante de um colar que parece colocar ou retirar de uma caixa [2]. O gesto é ambíguo — e justamente por isso fascinante. Trata-se apenas de mais uma cena cortesã ou de uma metáfora mais profunda? A frase inscrita, traduzida como “À mon seul désir”, abre espaço para leituras espirituais.
Devido ao excesso de interpretações ambíguas, esta obra, criada no final do século XV, já foi considerada a Mona Lisa das tapeçarias.
Sob meu ponto de vista favorito, a tapeçaria nos convida a ver além do sensorial. O “mon seul désir” não é comer, beber, tocar, ouvir ou ver — é algo que transcende os sentidos. É a aspiração da alma por algo maior, pela liberdade interior ou pela união com o divino. É a escolha de abrir mão da caixa de joias do mundo para acessar um tesouro invisível, além do nosso alcance como mortais.
Essa mesma aspiração ecoa, séculos depois, em uma música dos Beatles: “Across the Universe”, de 1969 [3]. John Lennon canta palavras que fluem como chuva interminável, dissolvendo-se no cosmos, cheia de simbolismos, enquanto entoa um mantra indiano. Não é difícil perceber o paralelo: tanto a tapeçaria medieval quanto a canção psicodélica nos lembram de que a vida não se esgota nos sentidos. Há sempre algo além (aconselho o nobre leitor a se deliciar observando os detalhes das tapeçarias medievais ao som de “Across the Universe”. Depois, anote no fundo da sua mente quais foram as sensações que surgiram, links nas referências [4][5]).
Mas aqui entra a ironia: se no passado o desafio era superar os prazeres sensoriais para chegar ao transcendente e alcançar a iluminação, no presente o problema se tornou sobreviver ao feed das redes sociais. O fluxo de pensamentos descrito por Lennon virou, em versão tecnológica, o scroll infinito — aquele rio de imagens, frases e notificações que nunca termina.
Em teoria, as redes sociais poderiam ser instrumentos de conexão humana, de aprendizado e até de autoconhecimento. Na prática, funcionam como uma máquina de dopamina: cada curtida é um colar brilhante oferecido por um algoritmo interessado apenas no tempo que você passa olhando para a tela. O “único desejo” se fragmenta em milhares de microdesejos: mais likes, mais seguidores, mais visualizações.
As redes sociais são o efeito colateral de uma tecnologia boa, mas mal utilizada. Criadas com a promessa de conectar pessoas, democratizar vozes e facilitar o acesso ao conhecimento, acabaram se tornando uma vitrine incessante de desejos superficiais, cuidadosamente manipulados por algoritmos que conhecem nossas fraquezas melhor do que nós mesmos. O que poderia ser um espaço de construção coletiva da inteligência se converte, muitas vezes, em um palco de distração, comparação e ansiedade. E, como se não bastasse, essa engrenagem não para de se sofisticar: a cada clique, a cada curtida, o sistema se alimenta e aprende mais sobre como nos prender, e a cada vez mais onipresente IA garante que isso acontecerá.
Enquanto a dama da tapeçaria, sob o olhar atento do unicórnio, hesita entre pegar ou soltar o colar, nós raramente hesitamos: clicamos, curtimos, rolamos. É como se a humanidade tivesse trocado a chance de contemplar o transcendente pela urgência de atualizar notificações. E, sejamos francos, fazemos isso com um entusiasmo que os monges medievais jamais compreenderiam.
É claro que existe beleza nesse fluxo também. Assim como “Across the Universe” descreve pensamentos que não cessam, o feed digital nos conecta a vozes diversas, causas globais, movimentos sociais. O problema é que, ao contrário do mantra meditativo que conduz ao silêncio interior, o mantra contemporâneo é outro: “Compartilhe, curta, comente, reenvie”. Difícil encontrar iluminação nisso.
Ainda assim, a tapeçaria permanece como lembrete: “À mon seul désir”. Talvez a mensagem que atravessa os séculos seja exatamente essa — o ser humano precisa aprender a escolher. Escolher quando olhar, quando desligar, quando retirar o colar da caixa e quando guardá-lo. No fundo, é a mesma luta entre os prazeres imediatos e o desejo mais profundo.
Com uma leve dose de cinismo, podemos dizer que a humanidade não mudou muito. Continuamos fascinados por coisas que não existem (unicórnios), por melodias que prometem o infinito (Beatles) e por caixas mágicas que guardam colares (ou smartphones). A diferença é que agora carregamos o colar no bolso e ele apita a cada minuto pedindo atenção.
No fim das contas, a lição é simples: “o único desejo” só pode ser definido por cada um de nós. A dama medieval tinha sua caixa, Lennon tinha seu mantra, e nós temos nossos algoritmos. A questão é se seremos capazes de, em algum momento, olhar para o fluxo interminável e saber escolher.
Referências
[1] ERLANDE-BRANDENBURG, Alain. La Dame à la licorne. Paris: Presses du Ministère de la Culture, 1978. Nouvelle édition: 1994.
[2] DE VITIS, Mark. Explainer: the symbolism of The Lady and the Unicorn tapestry cycle. The Conversation, 8 fev. 2018. Disponível em: https://theconversation.com/explainer-the-symbolism-of-the-lady-and-the-unicorn-tapestry-cycle-91011. Acesso em: 9 fev. 2025.
[3] Across the Universe. In: A Bíblia dos Beatles, 14 mar. 2008. Arquivado em: 8 ago. 2010. Disponível em: https://web.archive.org/web/20100808123456/http://www.beatlesbible.com/songs/across-the-universe/. Acesso em: 4 ago. 2025.
[4] MUSÉE DE CLUNY. La Dame à la licorne. Disponível em: https://web.archive.org/web/20130425080946/http://www.musee-moyenage.fr/ang/pages/page_id18368_u1l2.htm. Acesso em: 16 ago. 2025.
[5] THE BEATLES. Across the Universe. YouTube, 2008. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=we0tO0LxY8Y. Acesso em: 16 ago. 2025.