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Fios de Ferro, Violino e MELODIA: A Economia da Acessibilidade (V.8, N.9, P.08, 2025)

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Divulgador da Ciência: Júlio Francisco Blumetti Facó, PcD.

 

Começo com uma cena que merece ser afinada no ouvido e no juízo: um homem de boné, jeans e um Stradivarius de 1713 encostado ao queixo, tocando Bach na boca do metrô de Washington, estação L’Enfant Plaza, às 7h51 de uma sexta. Em 43 minutos, 1.097 pessoas passaram; apenas sete pararam; o dinheiro recebido no estojo somou US$ 32,17. O violinista? Joshua Bell. O experimento? Um teste de contexto, atenção e prioridades: a beleza atravessa a pressa? O resultado, implacável, trocou o aplauso pela indiferença, como se um cometa cruzasse o céu de um escritório e os relógios insistissem em marcar ponto. 

A cena me visita porque diz mais que um relatório: infraestrutura sem escuta vira ruído; escuta sem infraestrutura vira vento. Entre o trilho e a arcada do violino há um pacto tácito — sem contexto que acolha, o som se dissolve; sem som que convoque, o contexto endurece. É nesse compasso que proponho pensar a economia da acessibilidade: um concerto em que o aço vibra à altura do humano.

O público invisível que paga imposto, consome, produz — e é empurrado para fora da foto

A escala é maior que o clichê. Estimativas recentes da OMS apontam que cerca de 1 bilhão de pessoas, ou 1 em cada 8 habitantes do planeta, vivem com algum tipo de deficiência. Não é margem; é humanidade em números redondos. 

No Brasil, os números dançam conforme a régua — e convém encará-los de frente, sem truques de luz. Pela lente do Censo 2022, usando um recorte específico de severidade funcional, o país contabiliza 14,4 milhões de pessoas com deficiência (aprox. 7,3% da população com 2 anos ou mais). Em outra medida, a PNAD Contínua 2022 (módulo PcD) mostra 18,6 milhões (cerca de 8,9%) quando se aplica a bateria de perguntas sobre PcD; fato no mínimo curioso, pois de acordo com o censo anterior (2010) a quantidade de PcDs na população brasileira era de 45 milhões (cerca de 23%). O instrumento muda, a população não evapora; o efeito é fotográfico, não ontológico. 

Se o retrato demográfico já pede nuances, o retrato econômico é um soco. Em 2022, apenas 26,6% das pessoas com deficiência estavam inseridas no mercado de trabalho; 55% estavam na informalidade; e o rendimento médio real foi de R$ 1.860, ante R$ 2.690 entre quem não declarou deficiência — um hiato de cerca de 30%. A participação, a formalidade e a renda ficam para trás; o imposto indireto sobre consumo, porém, não pergunta por acessibilidade na boca do caixa.

A matemática macro também não perdoa. A Organização Internacional do Trabalho calcula que a exclusão de pessoas com deficiência pode custar entre 3% e 7% do PIB de um país — riqueza que se perde por barreiras evitáveis, inovação abortada e renda que não circula. É o preço da distração coletiva. 

O que o violino no metrô ensina ao orçamento

O que acontece com a música também acontece com o dinheiro. Damos por “normal” um ecossistema financeiro em que aplicativos lindos não conversam com leitores de tela, biometrias exigem “selfies perfeitas” de quem tem tremor, baixa visão, espasticidade ou 4G capenga, e contratos em PDF escaneado se travestem de transparência. A boa nova é que nada disso é destino: é projeto. Projeto se refaz.

Um parêntese técnico que convém fechar com precisão:

KYC — Know Your Customer (Conheça seu Cliente)
Conjunto de procedimentos de identificação, verificação e classificação de risco exigidos para prevenir lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. No Brasil, os pilares do KYC estão consolidados na Circular BCB nº 3.978/2020 e alterações, que determinam políticas, controles e diligências para instituições autorizadas pelo Banco Central. O objetivo é conhecer quem é o cliente e como transaciona — sem confundir segurança com humilhação operacional. 

O problema não é conhecer o cliente (KYC) — é quando o corredor do KYC fica estreito. Segurança não precisa ser sinônimo de um único caminho (a selfie que não reconhece todos os rostos, a assinatura digital que não aceita navegação por teclado). Do ponto de vista de risco, o desenho ideal fala em equivalência de controles: múltiplas rotas com o mesmo nível de robustez, auditáveis, sem filas “preferenciais” que duram o dobro. A boa engenharia de processos é como a boa acústica: você não repara quando funciona, só percebe quando falha.

Do lado do software, não há mistério, há cuidado. Quem usa leitor de tela navega por árvores de elementos, labels e landmarks; o botão sem rótulo simplesmente não existe. Contraste “decorativo” é ruído. Acessibilidade não é modo simplificado; é projeto padrão. Quando desenhamos para o uso extremo, melhoramos o uso comum.

No seguro, vale separar hazard (a fonte do dano), exposição e resiliência. Punir a pessoa — e não o contexto inacessível — é anacronismo com planilha. E, se a resiliência depende de tecnologia assistiva, então financiamento e manutenção viram parte do cálculo atuarial — e do contrato.

E a educação financeira? Aqui, autonomia se escreve com liquidez redundante (a clássica reserva de emergência + uma “reserva tática” para barreiras de acessibilidade: equipamento que quebrou, transporte adaptado que falhou, reforma urgente), com procuração granular (quem pode consultar, pagar, resgatar — e como revogar rápido), com senhas bem geridas, sem gambiarra.

MELODIA — um roteiro prático para afinar aço e gente

Como professor-pesquisador que também é PcD, sei que a mente adora acrônimos que cabem no bolso. Fico, portanto, com M.E.L.O.D.I.A. — melodia que ordena o ferro:

M – Medição que enxerga.
Adoção de instrumentos biopsicossociais consistentes (como os módulos baseados no Washington Group) e transparência metodológica. Quando a régua muda, a série precisa explicar o porquê — só assim políticas e orçamento saem do palco e chegam à rua. (Veja a diferença entre o recorte do Censo 2022 e o da PNAD Contínua 2022. Sem falar da ‘releitura’ do Censo 2010). 

E – Equivalência operacional.
Se o processo exige selfie, ofereça rota alternativa com mesmo nível de segurança: prova de vida por biometria de voz, videochamada assistida com agente treinado, validação presencial agendada sem fila paralela. A Circular 3.978 abre espaço para desenho de controles — usemo-lo para incluir sem reduzir a blindagem

L – Legibilidade integral.
Contrato navegável desde a origem (nada de PDF nem imagem escaneada), texto claro, versão em áudio, simuladores operáveis por teclado, foco visível. Transparência que não pode ser lida é vitrine.

O – Operabilidade com redundância.
Planos de contingência: queda de conexão, quebra de tecnologia assistiva, necessidade de apoio por terceiro. Procuração granular auditável; reversão fácil. O mundo trepida; serviços precisam sustentar o tranco.

D – Dignidade como default.
Sem provas de humanidade a cada clique; sem “senha especial” que vira gueto. Autonomia com apoio — e apoio que amplia, não substitui, a decisão da pessoa.

I – Interoperabilidade humana e técnica.
APIs que conversem, bases integradas (com consentimento e proteção de dados), órgãos públicos que não pedem três vezes o mesmo documento. Parceria entre bancos, seguradoras, reguladores, organizações da sociedade civil e universidades. Menos atrito é mais energia para viver.

A – Auditoria partilhada.
Relatórios públicos de acessibilidade avaliados por quem usa. Isso não é “compliance fofo”; é governança. Investidor lê DRE e Balanço financeiro; pode ler também a continuidade operacional para todos os perfis — até porque governança que não governa para todos é risco material.

Lei não é moldura — é partitura

A Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) já mudou o paradigma: deficiência resulta da interação entre impedimentos e barreiras arquitetônicas, urbanísticas, comunicacionais, tecnológicas e atitudinais. Reconheceu a capacidade legal plena, tipificou discriminação, e convocou políticas públicas a saírem do PDF. Quando a LBI fica só na moldura, a partitura é bela e o silêncio é absoluto. 

O argumento econômico que cabe no estojo do violino

Para quem pede “números de mercado”: estão aí. Milhões de brasileiros — de 14,4 a 18,6 milhões, conforme o instrumento de medida — pagam impostos, compram, produzem, investem e herdam. A taxa de inserção laboral é baixa (26,6%), a informalidade é alta (55%), e a renda é comprimida (−30%). É um oceano de demanda mal atendida e de potencial de produtividade. A OIT lembra: 3% a 7% do PIB podem ser a conta da exclusão. Cada “selfie obrigatória” que trava, cada menu invisível ao leitor de tela, cada rampa que não existe é um centavo a menos no caixa, um compasso a menos na sinfonia coletiva. 

O mercado financeiro pode traduzir isso em quatro linhas de produto:
(1) Crédito assistivo para adaptações residenciais e laborais, com prazos elásticos e carências realistas;
(2) Seguros que precificam ambiente, não pessoas;
(3) Previdência que reconhece trajetórias contributivas descontínuas sem punir;
(4) Canais equivalentes (digital acessível, telefone ágil, atendimento humano treinado) costurados por sistema KYC inclusivo.

Do lado do Estado, o papel é menos épico e mais decisivo: regulamentar plenamente instrumentos de avaliação biopsicossocial, integrar bases, formar avaliadores e auditar execução. Política pública boa é aquela que não exige advogado para existir na vida real.

Do lado das empresas, é hora de atrelar remuneração variável a métricas não cosméticas de inclusão: tempo de remoção de barreiras, percentual de produtos testados por usuários reais, queda de chamados por falhas de desenho, presença de pessoas com deficiência em posições de decisão (decisão, não vitrine). Como costumo dizer aos meus alunos, o problema não é o problema — é quem você chama para afinar o violino quando o solista arranha a corda por falta de experiência: chame o luthier certo, com diapasão na mão, não o maestro do karaokê corporativo.

E para quem investe, uma dica de análise que paga dividendos de lucidez: perguntem sobre acessibilidade no ‘call de resultados’. Governança que ignora 1/8 da humanidade não merece o rótulo G do ESG — merece desconto de múltiplo.

Bach, Bell e o Brasil

Volto à arcada de Bell. Se um Stradivarius pode ser engolido pelo ruído da rotina, uma lei e um mercado também podem. O experimento do começo de nossa história não pergunta apenas sobre gosto musical; pergunta sobre atenção. Sobre a capacidade de uma sociedade ouvir o que está claramente à sua frente — um tema, aliás, que Bach entenderia como ninguém: variação sobre um mesmo baixo até que a arquitetura faça sentido. 

No Brasil, o baixo contínuo está aí: números, leis, tecnologia. Falta a variação corajosa que transforma fios de ferro (trilhos, cabos, vigas, códigos) em melodia (cultura, história, ciência, comportamento). Ferro sem melodia é ruído técnico; melodia sem ferro é utopia que não para de pé. A obra, técnica e humana, é fazê-los vibrar juntos — com o ouvido colado ao mundo e a disposição de ajustar a afinação sempre que a realidade desafinar.

Não ofereço moral. Deixo apenas a provocação que me serve de diapasão: o futuro nos cobrará juros compostos não só pelo que fizemos, mas pelo que deixamos de projetar por preguiça de imaginar. E, quando a fatura vier, façamos o favor de não cobrá-la de quem já pagou caro demais.

 

Para Saber mais:

  • Joshua Bell é um violinista e maestro americano que começou aos quatro anos, estreou aos 14 com a Orquestra da Filadélfia e hoje dirige a Academy of St Martin in the Fields, mantendo uma carreira de solista celebrada; ele toca o lendário Stradivarius “Gibson ex Huberman”, construído em 1713 no auge da chamada Era de Ouro de Antonio Stradivari. Esse instrumento — um dos raríssimos Strads em atividade — carrega uma história novelesca: pertenceu ao virtuose Bronisław Huberman e foi roubado duas vezes, sendo a última confessada pelo ladrão no leito de morte décadas depois. Bell descreve-se não como dono, mas como guardião afortunado dessa peça histórica de valor incalculável, cuja sonoridade e passado se tornaram parte inseparável de sua própria narrativa artística. 
  • “Dinheiro que me Veja”, escrito por Ho-kei Dube. Post: ‘O PIB Não Usa Bengala: Como a Economia Finge Que Pessoas com Deficiência Não Existem’.  https://dinheiroquemeveja.blogspot.com/ 
  • OMS/WHOGlobal Report on Health Equity for Persons with Disabilities (estimativa de 1 bi; 1 em 8). Organização Mundial da Saúde+1
  • Módulos do Washington Group (WG on Disability Statistics), são conjuntos padronizados de perguntas sobre funcionalidade (ver, ouvir, locomover-se, comunicar, lembrar/concentrar, etc.) desenhados para censos e pesquisas domiciliares e comparáveis internacionalmente. O WG é uma iniciativa no ecossistema da ONU que coordena esse padrão de mensuração para que políticas e metas falem a mesma língua. washingtongroup-disability.com+1

Vídeo do experimento com Joshua Bell e seu Stradivarius no metrô de Washington (YouTube): https://www.youtube.com/watch?v=hnOPu0_YWhw 

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