O curioso caso da paciente que driblou a doença de Alzheimer (V.5, N.6 P.8, 2022)

Tempo estimado de leitura: 8 minute(s)

Autor: Maria Camila Almeida e Daniel Carneiro Carrettiero – Centro de Ciências Naturais e Humanas, Universidade Federal do ABC

 

A doença de Alzheimer é a demência neurodegenrativa mais comum associada ao envelhecimento. E assim começa a introdução da maioria dos artigos científicos, textos de divulgação, reportagens ou relatórios sobre a doença de Alzheimer. Todos já ouviram falar desta patologia que afeta hoje, segundo a organização mundial de saúde (1) mais de 35,6 milhões de pessoas no mundo. A patologia está frequentemente associada a pessoas idosas, já que cerca de 95% dos casos, aqueles conhecidos como doença de Alzheimer de causa esporádica, está associado ao envelhecimento, podendo acometer pacientes a partir de cerca de 65 anos de idade, com a prevalência aumentando progressivamente com a faixa etária.  Embora descrita há mais de um século, ainda hoje não existe medicamento eficaz para a prevenção ou tratamento da doença de Alzheimer, e estima-se que sem o advento de uma estratégia terapêutica eficaz, os casos devem quadruplicar em menos de 30 anos, devido ao aumento da expectativa de vida da população.  

O que muita gente não sabe é que esta demência pode também acometer pacientes mais jovens com uma prevalência de 5% dos casos. Esta forma da doença é chamada de doença de Alzheimer de início precoce, ou doença de Alzheimer familiar. O filme “Para sempre Alice” estrelado por Julianne Moore, ganhadora do Oscar pela interpretação de Alice Howland, conta a história de uma renomada professora de linguística, que começa a esquecer palavras e se perder em sua própria cidade. Ao procurar um médico, Alice é diagnosticada com doença de Alzheimer familiar. Os sintomas em Alice começam a aparecer na paciente aos 50 anos, muito mais jovem do que os casos mais comuns de doença de Alzheimer. Mas o que leva ao desenvolvimento desta doença nestes casos de início precoce?

A doença de Alzheimer familiar tem causa genética: está associada a uma mutação que é transmitida dos pais para os filhos. Três genes estão associados à doença de Alzheimer familiar, sendo eles: APP (proteína precursora de amilóide), PSEN2 (presinilina 2) e PSEN1 (presinilina 1). Hoje conhecemos mais de centenas de mutações que podem acontecer em um desses 3 genes e resultar no aparecimento da doença de Alzheimer familiar, mas basta ter uma única mutação para desenvolver a doença (2). Dentre essa gama de mutações, uma delas, conhecida por E280A, localizada no gene PSEN1, se destaca por ser a mais prevalente. O mais interessante é o fato que a maioria dos pacientes que carregam esta mutação vivem numa região específica do globo terrestre: no estado da Antióquia, na Colômbia. Muitos deles participam de estudos científicos destinados a melhor entender a doença e sua progressão. Esta mutação foi levada para a Colômbia por imigrantes europeus, que ocuparam uma região montanhosa e de difícil acesso, o que desencadeou muitos casamentos dentro da mesma família favorecendo assim, que a mutação passasse de geração à geração.  

Os pacientes que carregam esta mutação (PSEN1-E280A), apresentam seus primeiros sintomas de perda de memória com idade média de 45 anos, e a doença tem uma progressão muito rápida, usualmente levando o paciente ao óbito num período de 10 anos após o aparecimento dos primeiros sintomas. Apesar dos sintomas aparecerem em pacientes de meia idade, alguns marcadores da doença, como o atrofiamento cortical, acúmulo da proteína beta amilóide tanto plasmático quanto no líquido cerebroespinhal podem ser detectados décadas antes do início dos sintomas cognitivos (3).

Mas será possível driblar esta doença? Embora essas mutações sejam um atestado de garantia de desenvolvimento da demência, recentemente um caso raro em uma paciente Colombiana, portadora da mutação PSEN1-E280A, chamou a atenção de pesquisadores Colombianos e ao redor do mundo (4,5,6). O fenômeno surpreendeu a equipe internacional de neurocientistas que estudava sua família há décadas: a paciente foi poupada dos sintomas da doença de Alzheimer até os 70 anos, quase três décadas após a idade típica de início clínico dos portadores da mutação. Após muitos estudos, os pesquisadores descobriram uma segunda mutação extremamente rara, que forneceu uma pista que pode começar a explicar o status de “fugitiva” da doença da paciente e, quem sabe, prover uma luz para um possível tratamento eficaz para a prevenção ou tratamento da doença. Além da mutação PSEN1-E280A, a paciente apresentava uma segunda variante no gene APOE (3), um gene que produz lipoproteínas chamadas apolipoproteínas E. Esta variante é conhecida como Christchurch (em refrência a cidade de Christchurch na Nova Zelândia, onde foi primeiramente descrita). 

O cérebro da paciente foi estudado enquanto ela ainda estava viva, por equipes de pesquisa na Colômbia e Estados Unidos. Os pesquisadores observaram algo notável em relação aos dois tipos de agregados proteícos usualmente encontrados em cérebros de pacientes com Alzheimer: as placas de beta amilóide e agregados de proteína tau tóxica. Embora as placas amilóides estivessem presentes em seu cérebro, a quantidade de proteína tau patológica encontrada era notavelmente menor do que a vista em pacientes portadores da mesma mutação com prejuízo cognitivo (7). De alguma maneira, nesta paciente, este fenômeno mostrou-se protetor podendo ser um mecanismo importante a ser explorado para futuras terapias, mostrando o impacto positivo dos eventos raros em ciência para nossa sociedade (Fig. 1).

 

: imagem contendo os dizeres centralizados na borda superior: “A importância dos eventos raros em ciência”. Abaixo, um círculo todo formado por desenhos de pessoas cinza, uma tem destaque por ser vermelha. Abaixo a legenda:” Pessoa cinza: Pacientes portadores de mutação com déficit cognitivo (Alzheimer). Pessoa vermelha: Pacientes portadores de mutação e sem déficit cognitivo + gene protetor.

#ParaTodosVerem: imagem contendo os dizeres centralizados na borda superior: “A importância dos eventos raros em ciência”. Abaixo, um círculo todo formado por desenhos de pessoas cinza, uma tem destaque por ser vermelha. Abaixo a legenda:” Pessoa cinza: Pacientes portadores de mutação com déficit cognitivo (Alzheimer). Pessoa vermelha: Pacientes portadores de mutação e sem déficit cognitivo + gene protetor.

 

O cérebro da paciente que veio a óbito no final do ano de 2020 aos 77 anos de idade, por consequência de um melanoma, foi doado pela família para realização de pesquisas científicas, atualmente em andamento. Entre os fatos que distinguem o caso desta paciente destaca-se o conjunto abrangente de dados que o acompanhamento da paciente por um longo período em vida, e os estudos pós-morte irão agregar: desde informações genéticas, dados e imagens clínica e agora de autópsia e estudos moleculares de seu cérebro pós-morte. Se o efeito protetor da mutação Christchurch da paciente Colombiana puder ser replicado em ensaios laboratoriais, como culturas de células ou modelos experimentais da doença de Alzheimer, um novo horizonte para terapias desesperadamente necessárias para o tratamento desta doença pode se abrir.

 

Referências: 

1 –  https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/dementia 

2 – Lanoiselée H-M, Nicolas G, Wallon D, Rovelet-Lecrux A, Lacour M, Rousseau S, et al. (2017) APPPSEN1, and PSEN2 mutations in early-onset Alzheimer disease: A genetic screening study of familial and sporadic cases. PLoS Med 14(3): e1002270. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1002270

3 – Fuller, J.T., Cronin-Golomb, A., Gatchel, J.R. et al. Biological and Cognitive Markers of Presenilin1 E280A Autosomal Dominant Alzheimer’s Disease: A Comprehensive Review of the Colombian Kindred. J Prev Alzheimers Dis 6, 112–120 (2019). https://doi.org/10.14283/jpad.2019.6

4 – https://www.news.ucsb.edu/2020/020132/rare-and-exceptional-gift 

5 – https://www.nytimes.com/2020/12/11/science/alzheimers-genetics-brain-autopsy.html 

6 – https://www.alzforum.org/news/research-news/can-apoe-mutation-halt-alzheimers-disease

7 – Arboleda-Velasquez, J.F., Lopera, F., O’Hare, M. et al. Resistance to autosomal dominant Alzheimer’s disease in an APOE3 Christchurch homozygote: a case report. Nat Med 25, 1680–1683 (2019). https://doi.org/10.1038/s41591-019-0611-3

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