Quando uma pessoa se torna refugiada? (V.5, N.6 P.6, 2022)
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#ParaTodosVerem: Fotografia em preto e branco com os dizeres no canto superior esquerdo: “20 de junho Dia Mundial do Refugiado”. Abaixo, garoto de aproximadamente 10 anos carregando grande saco de plantas nas costas.
O ano de 2022 ficará marcado pela maior crise humanitária desde a Segunda Guerra
Mundial, originada da guerra na Ucrânia. Segundo dados do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), mais de 14 milhões de pessoas ucranianas
tiveram que se deslocar forçadamente devido ao conflito (cerca de um terço da
população do país), das quais 7,3 milhões cruzaram a fronteira. As consequências da
guerra impostas aos ucranianos trouxeram à tona, novamente, a tragédia das pessoas
refugiadas.
Embora o tema receba muita atenção da mídia, focando nas dificuldades e superações
das pessoas que foram obrigadas a deixar seus lares e seu país para proteger sua vida, há
muito desconhecimento, desinformação e preconceito sobre as pessoas refugiadas, o que
por sua vez gera xenofobia (discriminação e aversão ao estrangeiro) contra essas
pessoas. Uma das formas de prevenir e combater tais condutas que violam os direitos
humanos é saber quando uma pessoa se torna refugiada.
Infelizmente, a Ucrânia não é um caso isolado no mundo. Há dezenas de conflitos
internos e internacionais que, há décadas, continuam gerando deslocamentos forçados
de pessoas dentro de seu território ou para fora dele. O ACNUR estima que até maio
deste ano, mais de 100 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar (incluindo
pessoas deslocadas internas e refugiadas). Segundo o Relatório Tendências Globais, documento anual publicado pelo ACNUR com dados do ano anterior, até o final de
2021 havia 89.3 milhões de pessoas em deslocamento forçado no mundo. Em 1951, foi
aprovada a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, um tratado que passou a
regular a proteção internacional das pessoas refugiadas e lançou as bases do Direito Internacional dos Refugiados (DIR). Em 2021 a Convenção celebrou 70 anos com mais
de 140 assinaturas e adesões dos países membros da ONU.
Quando uma pessoa se torna refugiada?
É muito comum vermos e ouvirmos a expressão “refugiado político” para se referir a
uma pessoa refugiada, mas a definição internacional inclui outros motivos além deste.
Para que uma pessoa seja reconhecida como refugiada, a Convenção de 1951
estabeleceu: são pessoas perseguidas ou que tem um fundado temor de perseguição por
cinco razões – política, religiosa, étnico/racial, por sua nacionalidade ou por pertencer a
um determinado grupo social. Existem também mecanismos regionais de proteção, na
União Europeia e na América Latina, que ampliam a definição da ONU, incluindo
graves e generalizadas violações de direitos humanos.
Porém, não compete à ONU reconhecer se uma pessoa é ou não refugiada. Cabe a cada
país, de acordo com a Convenção de 1951 (+ os regimes regionais mais benéficos às
pessoas refugiadas), avaliar os pedidos de refúgio e ao final de um processo declarar se
reconhece ou não a pessoa como refugiada. Para solicitar o refúgio é necessário estar
fora do seu país. Não se pode solicitar refúgio em embaixada ou consulado (existe o
chamado asilo diplomático, o caso recente mais conhecido foi de Julian Assange, na
embaixada do Equador em Londres, mas não se trata de refúgio, é outro mecanismo de
proteção mais antigo que depende de uma decisão unilateral do Estado de asilo). A
partir do momento em que a pessoa atravessa a fronteira de seu país e ingressa no
território de um país vizinho, ela já pode solicitar o refúgio e ser reconhecida como
refugiada pela autoridade migratória do país de acolhimento.
Uma pessoa refugiada pode ser barrada na fronteira? Pode ser devolvida ao país
de origem?
As pessoas refugiadas (que podem ser assim chamadas genericamente, mas que
dependem de reconhecimento oficial de sua condição) tratam de escapar da perseguição
ou da guerra atravessando a fronteira terrestre, marítima ou fluvial (aérea também, mas
é menos comum) de seu país com algum país vizinho. As autoridades migratórias do
país de recebimento têm a obrigação de acolher e permitir que a pessoa solicite refúgio,
se assim desejar. Em nenhuma hipótese a pessoa pode ser barrada na fronteira e muito
menos devolvida. Isso se deve ao “princípio da não devolução” (em francês, nonrefoulement) da Convenção de 1951. Para o DIR, este é um princípio sagrado, que não
pode ser violado, pois representa a garantia de proteção à vida da pessoa refugiada.
O Brasil diante do refúgio
Nos últimos anos, o tema do refúgio vem ganhando mais espaço na mídia no Brasil,
seguindo as diversas crises humanitárias que trouxeram migrantes e pessoas refugiadas
ao país, desde haitianos (depois do terremoto de 2010), sírios (desde a guerra nascida na
Primavera Árabe, em 2011) e venezuelanos (com a crise política e econômica que se
intensificou, em 2016). Na verdade, o Brasil vem recebendo e acolhendo pessoas
refugiadas muito antes, e de várias partes, como Colômbia, República Democrática do
Congo, Angola, entre outros, que compõem um universo de cerca de 121 nacionalidades
diferentes. Entretanto, o número de pessoas refugiadas sempre foi muito baixo, em
comparação a outros países e à própria população e território brasileiros.
Um dos primeiros países a assinar a Convenção de 1951, somente após a
redemocratização o Brasil aprovou a Lei 9474/1997, que regulamenta o processo de
refúgio no Brasil, estabelecendo o Conselho Nacional para os Refugiados (Conare),
como órgão administrativo vinculado ao Ministério da Justiça, que recebe as
solicitações de refúgio, avalia e decide. No sistema brasileiro, a polícia federal é a
autoridade migratória a qual cabe proteger e atender as pessoas refugiadas na fronteira
do país e dar seguimento às solicitações de refúgio. De acordo com o Conare, até 2021 o
Brasil tinha 60.011 mil pessoas reconhecidas como refugiadas (a maioria venezuelanas,
seguidas de sírias, senegalesas, angolanas e congolesas, entre outras nacionalidades).
Proteção e soluções duradouras: os grandes desafios
Em termos de legislação sobre refúgio, o Brasil avançou bastante com a lei, colhendo
elogios do próprio ACNUR. Tradicionalmente, o Brasil tem sido um país de fronteiras
abertas e com uma cultura de acolhimento que é reconhecida internacionalmente, fator
importante para a proteção internacional das pessoas refugiadas. A lei de 1997 garante
um tratamento digno para os solicitantes de refúgio, liberdade, direito ao trabalho e de
acesso aos serviços de educação básica e saúde (nem todos os países conferem essas
garantias). Entretanto, o grande desafio do Brasil está nas políticas públicas: nem a lei
prevê, nem existe uma política nacional para a inclusão/integração das pessoas
refugiadas. Recentemente, estados e municípios vem desenvolvendo ações e políticas,
com apoio do ACNUR, envolvendo sociedade civil, setor privado e universidades.
A Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM)
O brasileiro Sergio Vieira de Mello, um dos mais destacados funcionários da ONU,
faleceu no atentado terrorista contra a sede da ONU, em Bagdá, em 19 de agosto de
2003. Vieira de Mello havia dedicado grande parte de sua vida profissional à proteção
das pessoas refugiadas, então o ACNUR decidiu criar uma Cátedra em sua homenagem
para difundir o Direito Internacional dos Refugiados na América Latina. A CSVM
evoluiu bastante no Brasil, desde então, e hoje reúne 34 universidades filiadas,
tornando-se uma boa prática para outros países.
Instalada em 2014 na UFABC, a CSVM tem atuado em ensino, pesquisa e extensão,
com a criação de vagas exclusivas para pessoas refugiadas na graduação e na pós-
graduação, e atividades de extensão, com destaque para o Curso de Português como
Língua de Acolhimento (Projeto Nossa Casa), que tem atendido dezenas de pessoas
refugiadas nos últimos anos. Com a CSVM, as universidades brasileiras passaram a
compor a “rede de acolhimento e assistência” – informal, incipiente, e baseada no
princípio de solidariedade regional do regime de Cartagena da América Latina, com
ações policêntricas, ao lado de uma rede de ONGs que atuam no campo humanitário e
de direitos humanos, com apoio do ACNUR e, em grande medida, à margem de
qualquer coordenação e apoio do Estado nacional.