Mundo em transformação: Ainda acreditamos na ciência? (V.3, N.10, P.6, 2020)

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Divulgadora da Ciência:

Ana Paula Arêas, química formada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, Campinas, SP) em 1999, Doutorado Direto em Bioquímica pelo Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP, São Paulo, SP) em 2005. Realizou estágio de Pós-Doutoramento no Instituto Butantan entre 2005 e 2006, quando ingressou na UFABC. [Lattes]

 

Relações interpessoais e fé na ciência

Muitas são as mudanças que o isolamento social impôs aos acadêmicos e às pessoas, de modo geral. As relações se adaptaram e uma nova forma de comunicação se estabeleceu em meio a todo esse caos que a vida cotidiana se transformou. Mas o que fica de lição de tudo isso? Certamente muitos irão continuar higienizando as compras, limpando os pés em tapetes sanitizantes ou álcool 70 e lavando as mãos com frequência. É o que todos os veículos de comunicação estão chamando de “O novo normal”.

 

Não só a vida das pessoas “reais” foi transformada por esse longo período de isolamento; a academia também teve que se adaptar à nova forma de trabalho. Aqui não falo só da realização das tarefas de forma remota, mas acima de tudo, me refiro à atitude colaborativa que invadiu o fazer científico e à rapidez de divulgação de resultados. Nunca antes a ciência precisou responder a uma demanda dessa magnitude de forma tão ágil e centrada, através de esforços globais.

 

A pandemia causou óbitos, sequelas, impactos na economia, em uma primeira onda, e, está voltando a gerar esses efeitos na segunda onda, já observada na Europa. Assim também é a crença das pessoas na ciência, ela se mostra em ondas. Antes do vírus passar a fazer parte da ecologia de todos os países, a ciência brasileira sofreu ataques com cortes frequentes de bolsas de estudo, de financiamento à pesquisa, de manutenção de institutos de pesquisa, além da falta de apoio da população.

 

A pandemia fez as pessoas pedirem por soluções que só a ciência poderia trazer, a tão aclamada vacina virou o Santo Graal dos mais de 7 bilhões de habitantes do nosso planeta. Mas a demora começa a incomodar e enfraquecer essa fé na ciência, gerando uma segunda onda de descrença.

 

Teremos vacinas?

Muitos são os grupos de trabalho, inclusive brasileiros, que estão se dedicando para desenvolver vacinas para o novo coronavírus (vírus SARS-Cov2) e os efeitos diretos e indiretos da doença, a COVID-19. A coalizão Covax, uma iniciativa de 156 países e territórios, foi criada para acelerar o desenvolvimento de tratamentos, testes diagnósticos e vacinas, além de garantir acesso igualitário dos países a todos esses recursos, especialmente aqueles em desvantagem econômica. Ao todo, 35 vacinas estão sendo testadas, das quais nove vacinas estão em fase clínica 2 ou 3 e são candidatas promissoras para chegar à população nos próximos meses.

 

O Brasil aderiu à Covax em setembro de 2020, mas alguns países protagonistas nessa pandemia não entraram nessa parceria, como os EUA e a China. Os EUA adquiriram uma quantidade enorme de lotes das cinco vacinas mais adiantadas, desenvolvidas pelas empresas: AstraZeneca, Gamaleya/Sputnik, Moderna, Pfizer e Sinovac, enquanto a China confia que sua proposta de vacina, produzida pela Sinovac, seja eficaz na proteção dos indivíduos vacinados.

 

Sabendo de tudo isso, como podemos responder à grande inquietude do momento: Teremos vacinas? A resposta é um absoluto e sonoro Sim! Mas não sabemos quando isso acontecerá e nem se, em um primeiro momento, as formulações estarão disponíveis para todos. É importante que a fase 3 dos testes clínicos, feita em milhares de voluntários em diversos países, esteja concluída e seus resultados tenham sido cuidadosamente analisados. Nessa fase, confirmam-se as doses seguras e verificam-se efeitos colaterais raros, que só aparecem quando um grande número de voluntários participa do estudo.

 

Por que a confiança na ciência está abalada?

A grande maioria das pessoas não conhece todas as etapas para o desenvolvimento de uma vacina, que consistem nos testes pré-clínicos e clínicos. Os pré-clínicos baseiam-se no estudo das propriedades dos componentes das vacinas e no teste preliminar de eficácia, feito em animais. Nas 3 fases clínicas, testam-se, em humanos, as doses e a segurança da formulação quanto a efeitos colaterais comuns e raros. Ainda existe uma quarta fase onde se avalia a performance da vacina depois de vacinar a população, sendo um estudo pós-liberação, como uma forma adicional de controle.

 

Todos os testes de uma vacina, em tempos normais, demorariam em torno de 10 anos. Todas as etapas foram aceleradas para que a vacina proporcionasse uma esperança para aqueles em isolamento, especialmente os mais suscetíveis à doença. Ainda que aceleradas, as etapas estão levando quase 1 ano, tempo demasiado longo para o controle de uma epidemia com as proporções da que enfrentamos hoje.

 

Somadas a essa aparente demora, a minimização dos efeitos da infecção, incentivada pela esfera governamental, e, a adesão aos grupos antivacinas tem crescido em países desenvolvidos e também, em desenvolvimento. Todos esses fatores levam ao descrédito, à falta de confiança na ciência e no que ela representa.

 

A vacina restabelecerá a vida como deveria ser?

As vacinas possuem duas funções essenciais: prevenir o estabelecimento da doença decorrente da infecção e evitar o contágio pelo agente causador, que no caso da COVID-19 é um vírus de trato respiratório. Evitar a transmissão do vírus é de extrema importância, porque reduz o contato de todos com o agente patogênico. Como consequência, indivíduos em condição mais frágil, que possuem co-morbidades (outras doenças) estariam protegidos, mesmo que não fossem vacinados. É o que chamamos de imunidade de rebanho, mas não provocada pelo avanço natural do vírus, como muitos defendem irresponsavelmente, mas sim pela vacinação da população.

 

Vacinas direcionadas a impedir o estabelecimento de sintomas, por interferir com algum processo que o agente realiza no hospedeiro humano, protegem o indivíduo vacinado, tornando-o assintomático, mas, frequentemente, não conseguem evitar que esse portador transmita o patógeno para muitas pessoas do seu meio social. Os testes têm mostrado que as formulações estudadas conseguem proteger o indivíduo vacinado, mas não há evidências ainda de que elas bloqueiem a transmissão. Quando saberemos isso? No momento em que as vacinas alcançarem fase 4, quando a população receberá essas formulações. Aí poderemos dizer se a vida voltará a ser como era.

 

Nesse meio tempo, é importante estar atualizado com as outras vacinas do calendário de vacinação, principalmente as vacinas vivas virais e bacterianas, como a de poliomielite, a de gripe (influenza), a de sarampo e a BCG. Além de nos protegermos dessas doenças, um estudo mostrou que vacinas vivas podem ser capazes de auxiliar na resposta imunológica contra o novo coronavírus, por levarem a uma melhora geral na nossa resposta inata, que seria a primeira barreira contra infecções.

 

Nos resta agora esperar e torcer para que alguma dessas vacinas específicas, em fases mais avançadas de testes, consiga cumprir os requisitos necessários para controlar essa epidemia.

 

Referências

Chumakov, K.; Benn, C.S.; Peter Aaby, P.; Kottilil, S. e Gallo, R. Can existing live

vaccines prevent COVID-19? Science, vol. 368 (6496), p. 1187-1188. Publicado em

12/06/2020 e disponível no link:

https://science.sciencemag.org/content/368/6496/1187?fbclid=IwAR3NhwPxiVfCM7tI

VXiHN2LKlBKP71TO6T5oBFsrVfLdnqlJ-kfikvjGSKo

Dias, L.C. Coalizão Covax e a disputa mundial pelas vacinas contra Covid-19. Jornal da UNICAMP, versão digital, publicado em 28/09/2020. Disponível no link: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-carlos-dias/coalizao-covax-e-disputa-mundial-pelas-vacinas-contra-covid-19

Finn, A. e Malley, R. A Vaccine That Stops Covid-19 Won’t Be Enough. Artigo de opinião no The New York Times, publicado em versão digital em 24/08/2020. Disponível no link: https://www.nytimes.com/2020/08/24/opinion/coronavirus-vaccine-prevention.html?smid=fb-

share&fbclid=IwAR0Cny637LofSECzHB3ttQy4Dt8lrTmjRz6NB-r4EpKbuiWRihlSqRJ46-c

Revista Pesquisa FAPESP. Vacinas em desenvolvimento contra COVID-19. Matéria publicada de forma digital em 14/09/2020 e atualizada em 25/09/2020. Disponível no link: https://revistapesquisa.fapesp.br/vacinas-em-desenvolvimento-contra-covid-19/

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