Mundo em transformação: Ainda acreditamos na ciência? (V.3, N.10, P.6, 2020)
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Muitas são as mudanças que o isolamento social impôs aos acadêmicos e às pessoas, de modo geral. As relações se adaptaram e uma nova forma de comunicação se estabeleceu em meio a todo esse caos que a vida cotidiana se transformou. Mas o que fica de lição de tudo isso? Certamente muitos irão continuar higienizando as compras, limpando os pés em tapetes sanitizantes ou álcool 70 e lavando as mãos com frequência. É o que todos os veículos de comunicação estão chamando de “O novo normal”.
Não só a vida das pessoas “reais” foi transformada por esse longo período de isolamento; a academia também teve que se adaptar à nova forma de trabalho. Aqui não falo só da realização das tarefas de forma remota, mas acima de tudo, me refiro à atitude colaborativa que invadiu o fazer científico e à rapidez de divulgação de resultados. Nunca antes a ciência precisou responder a uma demanda dessa magnitude de forma tão ágil e centrada, através de esforços globais.
A pandemia causou óbitos, sequelas, impactos na economia, em uma primeira onda, e, está voltando a gerar esses efeitos na segunda onda, já observada na Europa. Assim também é a crença das pessoas na ciência, ela se mostra em ondas. Antes do vírus passar a fazer parte da ecologia de todos os países, a ciência brasileira sofreu ataques com cortes frequentes de bolsas de estudo, de financiamento à pesquisa, de manutenção de institutos de pesquisa, além da falta de apoio da população.
A pandemia fez as pessoas pedirem por soluções que só a ciência poderia trazer, a tão aclamada vacina virou o Santo Graal dos mais de 7 bilhões de habitantes do nosso planeta. Mas a demora começa a incomodar e enfraquecer essa fé na ciência, gerando uma segunda onda de descrença.
Muitos são os grupos de trabalho, inclusive brasileiros, que estão se dedicando para desenvolver vacinas para o novo coronavírus (vírus SARS-Cov2) e os efeitos diretos e indiretos da doença, a COVID-19. A coalizão Covax, uma iniciativa de 156 países e territórios, foi criada para acelerar o desenvolvimento de tratamentos, testes diagnósticos e vacinas, além de garantir acesso igualitário dos países a todos esses recursos, especialmente aqueles em desvantagem econômica. Ao todo, 35 vacinas estão sendo testadas, das quais nove vacinas estão em fase clínica 2 ou 3 e são candidatas promissoras para chegar à população nos próximos meses.
O Brasil aderiu à Covax em setembro de 2020, mas alguns países protagonistas nessa pandemia não entraram nessa parceria, como os EUA e a China. Os EUA adquiriram uma quantidade enorme de lotes das cinco vacinas mais adiantadas, desenvolvidas pelas empresas: AstraZeneca, Gamaleya/Sputnik, Moderna, Pfizer e Sinovac, enquanto a China confia que sua proposta de vacina, produzida pela Sinovac, seja eficaz na proteção dos indivíduos vacinados.
Sabendo de tudo isso, como podemos responder à grande inquietude do momento: Teremos vacinas? A resposta é um absoluto e sonoro Sim! Mas não sabemos quando isso acontecerá e nem se, em um primeiro momento, as formulações estarão disponíveis para todos. É importante que a fase 3 dos testes clínicos, feita em milhares de voluntários em diversos países, esteja concluída e seus resultados tenham sido cuidadosamente analisados. Nessa fase, confirmam-se as doses seguras e verificam-se efeitos colaterais raros, que só aparecem quando um grande número de voluntários participa do estudo.
A grande maioria das pessoas não conhece todas as etapas para o desenvolvimento de uma vacina, que consistem nos testes pré-clínicos e clínicos. Os pré-clínicos baseiam-se no estudo das propriedades dos componentes das vacinas e no teste preliminar de eficácia, feito em animais. Nas 3 fases clínicas, testam-se, em humanos, as doses e a segurança da formulação quanto a efeitos colaterais comuns e raros. Ainda existe uma quarta fase onde se avalia a performance da vacina depois de vacinar a população, sendo um estudo pós-liberação, como uma forma adicional de controle.
Todos os testes de uma vacina, em tempos normais, demorariam em torno de 10 anos. Todas as etapas foram aceleradas para que a vacina proporcionasse uma esperança para aqueles em isolamento, especialmente os mais suscetíveis à doença. Ainda que aceleradas, as etapas estão levando quase 1 ano, tempo demasiado longo para o controle de uma epidemia com as proporções da que enfrentamos hoje.
Somadas a essa aparente demora, a minimização dos efeitos da infecção, incentivada pela esfera governamental, e, a adesão aos grupos antivacinas tem crescido em países desenvolvidos e também, em desenvolvimento. Todos esses fatores levam ao descrédito, à falta de confiança na ciência e no que ela representa.
As vacinas possuem duas funções essenciais: prevenir o estabelecimento da doença decorrente da infecção e evitar o contágio pelo agente causador, que no caso da COVID-19 é um vírus de trato respiratório. Evitar a transmissão do vírus é de extrema importância, porque reduz o contato de todos com o agente patogênico. Como consequência, indivíduos em condição mais frágil, que possuem co-morbidades (outras doenças) estariam protegidos, mesmo que não fossem vacinados. É o que chamamos de imunidade de rebanho, mas não provocada pelo avanço natural do vírus, como muitos defendem irresponsavelmente, mas sim pela vacinação da população.
Vacinas direcionadas a impedir o estabelecimento de sintomas, por interferir com algum processo que o agente realiza no hospedeiro humano, protegem o indivíduo vacinado, tornando-o assintomático, mas, frequentemente, não conseguem evitar que esse portador transmita o patógeno para muitas pessoas do seu meio social. Os testes têm mostrado que as formulações estudadas conseguem proteger o indivíduo vacinado, mas não há evidências ainda de que elas bloqueiem a transmissão. Quando saberemos isso? No momento em que as vacinas alcançarem fase 4, quando a população receberá essas formulações. Aí poderemos dizer se a vida voltará a ser como era.
Nesse meio tempo, é importante estar atualizado com as outras vacinas do calendário de vacinação, principalmente as vacinas vivas virais e bacterianas, como a de poliomielite, a de gripe (influenza), a de sarampo e a BCG. Além de nos protegermos dessas doenças, um estudo mostrou que vacinas vivas podem ser capazes de auxiliar na resposta imunológica contra o novo coronavírus, por levarem a uma melhora geral na nossa resposta inata, que seria a primeira barreira contra infecções.
Nos resta agora esperar e torcer para que alguma dessas vacinas específicas, em fases mais avançadas de testes, consiga cumprir os requisitos necessários para controlar essa epidemia.
Referências
Chumakov, K.; Benn, C.S.; Peter Aaby, P.; Kottilil, S. e Gallo, R. Can existing live
vaccines prevent COVID-19? Science, vol. 368 (6496), p. 1187-1188. Publicado em
12/06/2020 e disponível no link:
https://science.sciencemag.org/content/368/6496/1187?fbclid=IwAR3NhwPxiVfCM7tI
VXiHN2LKlBKP71TO6T5oBFsrVfLdnqlJ-kfikvjGSKo
Dias, L.C. Coalizão Covax e a disputa mundial pelas vacinas contra Covid-19. Jornal da UNICAMP, versão digital, publicado em 28/09/2020. Disponível no link: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/luiz-carlos-dias/coalizao-covax-e-disputa-mundial-pelas-vacinas-contra-covid-19
Finn, A. e Malley, R. A Vaccine That Stops Covid-19 Won’t Be Enough. Artigo de opinião no The New York Times, publicado em versão digital em 24/08/2020. Disponível no link: https://www.nytimes.com/2020/08/24/opinion/coronavirus-vaccine-prevention.html?smid=fb-
share&fbclid=IwAR0Cny637LofSECzHB3ttQy4Dt8lrTmjRz6NB-r4EpKbuiWRihlSqRJ46-c
Revista Pesquisa FAPESP. Vacinas em desenvolvimento contra COVID-19. Matéria publicada de forma digital em 14/09/2020 e atualizada em 25/09/2020. Disponível no link: https://revistapesquisa.fapesp.br/vacinas-em-desenvolvimento-contra-covid-19/