Sentimentos e emoções dos animais: somos tão diferentes assim? (V.1, N.3, P.2, 2018)

Tempo estimado de leitura: 16 minute(s)

Michaella Pereira Andrade

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michaella.andrade@ufabc.edu.br

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O planeta em que vivemos tem aproximadamente 4,6 bilhões de anos, sendo que os primeiros animais começaram a aparecer por volta de 700 milhões de anos. Entre 6 e 2 milhões de anos surgiram os nossos ancestrais hominídeos, e posteriormente, a 200 mil anos, o desenvolvimento e manuseio de ferramentas pelos mesmos. A partir de então, os hominídeos praticamente dominaram o planeta, demonstrando a princípio, admiração e medo perante a natureza selvagem, porém com o passar dos tempos, toda essa admiração e medo transformou-se em uma postura humanizadora e artificializante da natureza. Em um passado longínquo nossos ancestrais também adquiriram a capacidade de representação da realidade em que viviam através de desenhos que faziam em vários locais. Estes relatos sempre causaram muita inquietação em nossa espécie curiosa, e diante de várias interpretações e estudos científicos, hoje temos acesso a informações preciosas a respeito de suas vidas. Uma descoberta interessante foi encontrada em uma caverna no Sul da França: Um desenho bastante claro de um possível mamífero de grande porte com algo semelhante a uma flecha próxima ao local onde estaria seu coração:

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Fonte: Paixão, R. L., (2001).

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Diante de tal representação, podemos refletir: Por que será que escolheram desenhar este animal não humano com tal sinalização de possível flecha neste local? Podemos pensar a respeito da caça, que era uma atividade cotidiana da época (já que não haviam supermercados e açougues naquele tempo!). De alguma forma, possivelmente através de diversas tentativas diferenciadas e estocásticas, descobriram que se atingissem o animal neste local, o mesmo morreria mais facilmente, o que se mostrou ótimo e bastante eficiente diante das necessidades nutricionais dos hominídeos daquele tempo e da economia de tempo no sacrifício do animal. Segundo Rita Leal Paixão (2001) se refletirmos um pouco podemos relacionar tais acontecimentos com os primórdios dos estudos a respeito dos animais no contexto científico. Os seres humanos sempre buscaram respostas para suas perguntas referentes ao mundo que o cerca, e pelo que parece, cada vez que aumentamos a quantidade de respostas, surgem novas perguntas, logo, temos menos respostas [1].

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O momento em que ficamos cara a cara com qualquer animal é de certa forma, instigante e intimidador: Instigante pela beleza intrínseca de um organismo, cheio de mistérios, afinal são vidas formadas por um emaranhado de milhões de células com milhares de especializações que ao longo de sua trajetória evolutiva surgiram ao acaso, passando por muitas adaptações e pela seleção natural; E intimidador pelo fato de não estarmos sozinhos no planeta e dividirmos o mesmo com espécies tão distantes, mas ao mesmo tempo tão próximas a nós. Qual será a história por trás de cada animal com que interagimos no nosso dia a dia? Como, quando e por quê eles surgiram? Diante dessa imensidão cósmica de perguntas, podemos fazer um recorte especial: Durante um mergulho na região dos lagos no estado do Rio de Janeiro, um mergulhador se deparou com 8 sépias (cujo nome científico é Sepioteuthis sepioidea), “dançarinas” deslumbrantes que fazem parte de um grupo chamado Filo Mollusca. Durante essa interação, depois de tentativas de cada vez mais aproximação, o mergulhador pensou a respeito da perturbação que estava causando naquele ambiente: Elas estavam próximas do costão rochoso, e com a chegada dos seres humanos após algumas piruetas e tentativas de reconhecimento, elas partiram para uma região mais profunda, longe de toda aquela humanidade. Diante dessa vivência, questionamentos podem começar a borbulhar em nossas mentes: Essas sépias são inteligentes? Elas sentiram alguma sensação ao verem os mergulhadores? Há muitos anos se alguém respondesse essas questões com um mero “sim”, iria com certeza diretamente para um manicômio. Tal omissão não é e nunca foi meramente por acaso. Porém, com os avanços das pesquisas científicas muitas dessas questões podem ser resolvidas ou ao menos melhor entendidas através de hipóteses, testes e experimentos.

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Várias sensações são sentidas por todos nós em nosso dia-a-dia, mas infelizmente a maioria das pessoas permanece acreditando que essas sensações e experiências de vida são limitadas a nós, seres humanos. A consciência, inteligência, racionalidade, criatividade, empatia e amor na realidade estão bastante difundidos entre os animais não humanos [2]. Existem muitos tipos de cérebros, alguns maiores outros menores, mas, o que os animais não humanos fazem com eles? Podem pensar ou sentir? Podemos responder essas questões através de análises destes cérebros, da evolução e dos mecanismos atrelados a eles. A primeira coisa que devemos colocar em nossas cabeças é que de alguma forma todos esses atributos citados acima são herdados: Para nossos cérebros estarem dentro de nossas cabeças hoje, precisou-se de bilhões de anos de trajetória árdua no planeta. As águas vivas, representantes do Filo Cnidaria, por exemplo, foram um dos organismos colonizadores pioneiros no planeta. Sabemos atualmente olhando para as espécies viventes deste grupo, que ao longo da seleção natural durante os tempos, surgiram os primeiros nervos, sendo que estes foram uma base responsável a desencadear, ao acaso, os nervos mais complexos. Atualmente, olhando para vários outros animais, percebemos uma distinção clara entre cabeça e corpo, que é ausente em Cnidaria, e isso implica em uma centralização do sistema nervoso. Os nervos de muitos animais são semelhantes, e se eles são tão parecidos, como será que eles influenciam na capacidade de sentir sensações e ter experiências mentais?

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Fonte: https://pt.depositphotos.com/163465406/stock-illustration-scary-human-skull-print.html

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Observando o cérebro humano temos uma tendência lógica de encará-lo como um refinamento de cérebros mais simples ao longo de períodos de evolução, nos colocando no topo de uma árvore, onde todos os outros seres vivos estão apenas abaixo de nós. Se compararmos o cérebro de um chimpanzé (Pan troglodytes) e de um humano (Homo sapiens sapiens), concluiremos que o cérebro do animal humano é apenas um grande cérebro de um primata. Mas, e se olharmos para o cérebro dos golfinhos, que são muito maiores do que os nossos, podemos nos perguntar o porquê de possuírem esses cérebros. Será que os animais não humanos estão conscientes do mundo que os cerca? Basicamente se você percebe o mundo ao seu redor você está consciente, e se você passar por algum procedimento cirúrgico e precisar de uma anestesia geral, estará inconsciente e com os estímulos sensoriais em repouso, não percebendo mais o mundo ao seu redor.

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Vamos agora analisar alguns exemplos abaixo:

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Para os mamíferos, as estruturas conhecidas como espinhos ou pelos contribuem para diversas finalidades. No âmbito de seu comportamento, o eriçar de pelos remonta evolutivamente a uma resposta a estímulos e a expressão de seus estados e emoções, por exemplo, podem demonstrar a outros animais medo, raiva ou perigo. No caso de alguns anfíbios (animais que não possuem espinhos ou pelos), Darwin (2000) observou que alguns sapos aumentavam o tamanho de seus corpos inalando ar quando estavam furiosos. O objetivo primário deste mecanismo era fazer o corpo parecer maior para seus inimigos, porém, existem finalidades secundárias neste caso (sobrevivência e reprodução), que em sua grande maioria servem de alimento para determinadas espécies de cobras. Na hora que a cobra dá o bote e tenta engolir o sapo, ele imediatamente incha seu corpo com todo ar possível, logo a cobra não consegue se alimentar devido a capacidade de abertura de sua boca (importante frisar especificamente neste exemplo dado por Darwin, pois sabemos que existem cobras que comem animais muito maiores do que as mesmas, e que existem diversas espécies diferentes de sapos viventes). Aqui vemos um claro exemplo de preservação pela sobrevivência do mais apto, afinal o sapo que desenvolveu este mecanismo de defesa de maneira aleatória, foi mais apto e selecionado pela seleção natural devido a sua fuga da morte e maior probabilidade de reprodução, deixando mais descendentes [3].

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Os lagostins, animais chamados de crustáceos, que fazem parte do Filo Arthropoda, podem adquirir transtornos de ansiedade quando são infligidos com choques elétricos toda vez que tentam sair de um buraco. O experimento de Elwood e colegas em 2009, causou muita repercussão: Eles descobriram que se ministrassem remédios para transtornos de ansiedade nos lagostins nessa situação experimental (os mesmos utilizados em humanos) os mesmos relaxavam, seu comportamento anormal era finalizado e saiam de um buraco onde estavam escondidos para exploração do ambiente externo [4]. A mesma coisa acontece com transtornos obsessivo compulsivo em cães, por exemplo. Neste caso, se ministrado remédios para tal doença, o comportamento se ameniza, segundo Rapoport e colaboradores (1992) [5]. Por que será que as respostas são tão semelhantes em animais tão diferentes?

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As sépias possuem habilidades de mudança de suas cores corporais, e até onde sabemos isso evoluiu de maneira aleatória para que estes animais evitassem serem predados, conseguissem capturar mais alimentos, etc. Porém, Brown e seus colegas (2012) descobriram que tal habilidade pode ocorrer devido a outras circunstâncias: Eles relataram em um artigo científico que a mudança de cores pode ser vista como uma resposta a competição entre machos da mesma espécie em momentos de acasalamento. Observaram que algumas sépias machos “enganavam machos rivais” através de mimetismo “mistura de gênero”: Padrões de cores femininas são imitados de um lado do corpo de um macho em que outros machos competidores estão presentes, enquanto o outro lado do corpo (que está voltado para fêmea) expressa um padrão de cores masculino (conforme fotografia abaixo) [6]:

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Fonte: Brown, et al., (2012). Duas sépias machos, porém, o animal da direita está praticando o mimetismo (imitando a coloração de uma fêmea do seu lado direito do corpo), enquanto o lado esquerdo (o que está voltado à fêmea) apresenta o padrão de cor masculino. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3440998/.

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Será que esta habilidade necessita de algum grau de consciência e cognição extremamente sofisticados? Estes animais são conscientes? Este comportamento é atrelado a capacidade dos seres de ter emoções e sentimentos (senciência)?

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Diante de tantos exemplos um ponto bastante importante gira em torno da sensibilidade animal, que ainda vem sendo estudada pelos cientistas. Segundo Helen Proctor (2013) dizemos que um animal é “senciente” se ele tem uma consciência de si próprio, e uma das muitas formas para inferir hipóteses a respeito disso tem como base a capacidade de sentir dor (repulsão) e prazer (atração), estar ciente dessas sensações em algum grau e responde-las de alguma forma. Essa tal de senciência é importante para todos os seres vivos pois sem ela talvez o caminho da evolução da vida multicelular poderia ter tomado milhares de outros rumos diferentes, afinal, a senciência é fundamental como uma adaptação que promove a sobrevivência das espécies, logo, tanto na terra quanto no mar, é o mesmo imperativo: Permaneça vivo e se reproduza [7].

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Talvez os estudos a respeito da senciência chamem menos atenção do público em geral por se tratar de um território extremamente vasto, interdisciplinar e multifacetado, que leva muitas vezes a desistência do “tentar entender algo sobre”, afinal parece tão impalpável. É nossa tarefa, como estudantes e cientistas brasileiros, desmistificar tal pensamento a respeito deste tema, afinal, desde tempos imemoráveis utilizamos os animais não humanos para diversas finalidades, sejam elas de propósito alimentício ou força de trabalho, e na atualidade com finalidades de pesquisa, entretenimento ou até mesmo lucro, logo as respostas provenientes desta área de estudo possuem consequências no âmbito político, social, econômico e moral de nossa sociedade (mais detalhes em Perry & Baciadonna, 2017) [8].

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Durante o decorrer dos debates a respeito das diferenças de tratamentos humanos para com os animais nós passamos por diferentes momentos conflitantes: Na antiguidade clássica, Descartes, que era um filósofo, físico e matemático Francês (1596-1650) acreditava que todos os animais eram completamente desprovidos de sentimentos e emoções, logo eram autômatos, meras máquinas (comparando-os com relógios e suas peças sem vida). Com a chegada do século XVII, essa visão passou a sofrer algumas modificações significativas, pois alguns cientistas começaram a se preocupar com o sofrimento animal. Quando Robert Boyle (1627-1691) e Robert Hook (1635-1703) notaram o sofrimento em diversos organismos em seus próprios experimentos, declararam não mais repeti-los. Na década posterior, o cientista James Ferguson (1710-1776), foi um dos pioneiros na busca de métodos alternativos à utilização de animais na ciência, devido a sua sensibilidade moral aguçada. Em demonstrações públicas de seu estudo sobre respiração, utilizou um modelo de balão para simular os pulmões. Já no século XVIII, o filósofo iluminista, François Marie Arouet (1694-1778), conhecido popularmente como Voltaire, escreveu uma pertinente inquietação a respeito da teoria mecanicista de Descartes: Segundo Paixão, (2001) sua argumentação baseava-se na igualdade dos órgãos das sensações, tanto em animais humanos e não humanos, logo seria uma impertinente contradição da própria natureza se apenas os seres humanos pudessem sentir sensações [1]. Para Sant’Ana (2016), Charles Darwin, no século XIX, já discutia precocemente sobre a possibilidade da existência de senciência em não-humanos, inclusive insetos, dadas muitas semelhanças de comportamento e atributos anatômicos e morfológicos [9].

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Resumidamente, parece difícil associar o conhecimento científico a tantos exemplos de comportamentos complexos e percepção de mundo dos animais, pelo simples fato de não sabermos exatamente o que está acontecendo na cabeça destes organismos. Se você se perguntar: Como saber que os outros animais pensam e são sencientes? Você pode tentar recordar de todas as referências de artigos científicos que já leu (e sim eles já trouxeram grandes avanços em nosso entendimento a respeito da senciência animal!), mas talvez uma resposta mais simples e esteja aí do seu lado, aonde quer que você esteja. Uma pessoa com um cão, por exemplo – quando o mesmo levanta de onde estava deitado e segue em direção ao pé de seu tutor, pula e rola no chão mostrando sua barriga para cima, ele apenas deve ter pensado: “Quero um carinho na barriga! ”. Ele sabe que pode ir até o humano que vive com ele e não até o sofá ou a parede, pois é exatamente o humano que vai entender o que pede e talvez realize a tarefa que ele deseja. Ele é capaz de pensar e sentir. Mas, e os outros animais com que convivemos tão pouco ou quase nunca, com morfologias tão distintas e modos de vida diferenciados? Será que somos capazes de abrir mão da nossa zona de conforto e considerar, pelo menos em um instante, que eles também são capazes de sentir e pensar de seu próprio jeito, em seu próprio grau de consciência, apesar de seus tamanhos, formatos ou aparência?

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Referências

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[1] Paixão, R. L. (2001). Experimentação animal: razões e emoções para uma ética. Tese de Doutorado (Doutorado em Saúde Pública) Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

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[2] Safina, C. (2015). Beyond words: What animals think and feel. Henry Holt Co. New York.

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[3] Darwin, C. (2000) A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras.

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[4] Elwood, R. W.; Barr, S.; Patterson, L. (2009). Pain and stress in crustaceans? Applied animal behaviour science, v. 118, n. 3, p. 128-136.

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[5] Rapoport, J. L.; Ryland, D. H.; Kriete, M. (1992). Drug treatment of canine acral lick: an animal model of obsessive-compulsive disorder. Archives of general psychiatry, v. 49, n. 7, p. 517-521.

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[6] Brown, C.; Garwood, M. P.; Williamson, J. E. (2012). It pays to cheat: tactical deception in a cephalopod social signalling system. Biology letters, p. rsbl20120435.

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[7] Proctor, H. S.; Carder, G.; Cornish, A. R. (2013). Searching for Animal Sentience: A Systematic Review of the Scientific Literature. Animals, 3 (3), 882-906.

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[8] Perry, C. J.; Baciadonna, L. (2017). Studying emotion in invertebrates: what has been done, what can be measured and what they can provide. Journal of Experimental Biology, v. 220, n. 21, p. 3856-3868.

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[9] Sant’Anna, A. C., Valente, T. S. (2016). Personalidade em animais: o que diz a ciência? Revista Brasileira de Zoociências. 17 (2), 58-63.

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[10] Imagem título: https://www.hiper.fm/15-fotografias-que-provam-que-ha-muito-amor-no-reino-animal/

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1 Resultado

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