Os desastres são socialmente construídos (V.2, N.2, P.5, 2019)
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Fernando Rocha Nogueira é coordenador do Laboratório de Gestão de Riscos (LABGris) da UFABC. Graduado em geologia pelo Instituto de Geociências da USP, em 1981, e doutor em Geociências e Meio Ambientes pela IGCE-UNESP, em 2001. É especialista em gestão de riscos ambientais urbanos, área em que trabalha desde 1991.
Os desastres de todas as naturezas e dimensões expressam o uso e a gestão insustentável do ambiente em que vivemos.
Pouco ainda nos arrefeceu o sentimento coletivo de tristeza, solidariedade e indignação com o desastre causado pelo rompimento da barragem de rejeitos da Companhia Vale do Rio Doce em Brumadinho, MG, no dia 25 de janeiro, e esse mesmo sentimento já se desloca, em dois dias sequenciais, para o Rio de Janeiro, onde deslizamentos e inundações rápidas (enxurradas) provocaram enormes danos e seis mortes.
No dia 6 de fevereiro, e, na madrugada do dia 8, um incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo causou ao menos dez mortes de atletas muito jovens e graves ferimentos em outros três. Embora de dimensões e causas variadas, estas três tragédias não são resultados de fatalidades, de irresponsabilidade das vítimas ou de reações da natureza: resultam de riscos socialmente construídos.
Os perigos do ambiente urbano
A maioria das cidades brasileiras, em função da sua história de urbanização, das características do meio físico e da forma com que este foi modificado pelo uso e ocupação do solo, apresenta uma grande diversidade de situações de riscos ambientais urbanos. São “disfunções” ou “perigos” do ambiente urbano, com potencialidade de gerar processos que possam causar perdas e danos às pessoas, bens e infraestrutura do entorno.
Nos municípios brasileiros podem ocorrer cenários de riscos associados a perigos naturais ou sócionaturais, como deslizamentos, inundações, alagamentos, erosão urbana, erosão costeira, tempestades, secas e a escassez de recursos hídricos, e aqueles associados a perigos tecnológicos, como extravasamento de produtos perigosos, incêndios urbanos, colapso de edificações e rompimento de barragens.
* Em 1984, uma falha em dutos da Petrobras provocou o vazamento de 700 mil litros de gasolina na da Vila Socó, Cubatão (SP), o que causou um incêndio destruiu que destruiu parte de uma comunidade na periferia da cidade. Os dados oficiais indicam que 93 pessoas morreram.
Os maiores impactos não aparecem nos jornais
Muitas vezes, o impacto desses processos causa desastres, com vítimas fatais e cobertura pela mídia, como os três casos citados, mas muito mais recorrentes são os pequenos acidentes que produzem perdas econômicas significativas, tanto para as famílias afetadas quanto para a economia dos municípios.
Não há estimativas nacionais para este montante, mas não seria exagero afirmar que as perdas por pequenos deslizamentos que sequer são noticiados pela mídia e pelas inundações frequentes das margens de córregos correspondam a uma importante causa da miséria dos moradores dos assentamentos precários, que anualmente se empenham em novas dívidas para repor os bens danificados.
É a população mais pobre e vulnerável que, na maioria das vezes, é afetada pelos desastres e acidentes ao longo da história, pois vive nas áreas de menor valor imobiliário porque são menos aptas à urbanização, mais degradadas pelo uso e/ou mais suscetíveis a perigos.
Os riscos são resultado da gestão insustentável do ambiente
Quase sempre, a causalidade dos riscos pode ser explicada pelo processo de uso e ocupação do solo e pela apropriação dos recursos naturais e, portanto, pode ser interpretada como resultado da gestão insustentável do ambiente urbano e do ambiente modificado pelas grandes infraestruturas.
Em nosso País, a gestão dos riscos tem sido negligenciada em todos os níveis federativos, exceto em poucas experiências positivas que se desfizeram nas alternâncias de governo e em momentos pontuais em que, por curto prazo, foi incluída nas agendas de governo. A gestão dos riscos concentra-se nos organismos de defesa civil, que mantêm o foco no desastre, em ações de emergências e no atendimento pós-desastres, tendo como paradigma o “controle da natureza pela técnica”. As políticas públicas setoriais brasileiras, em sua maior parte, ignoram a componente “riscos e desastres” em suas diretrizes e linhas de ação, dificultando a formação de uma cultura de precaução e prevenção.
Propostas para uma gestão integral de riscos ambientais urbanos
Baseando-se nas melhores experiências e propostas nacionais e de países com similaridades ao nosso e nos protocolos internacionais de redução de riscos (Marcos de Ação de Hyogo, 2005 e de Sendai, 2015), são apresentadas a seguir algumas propostas para uma gestão integral de riscos ambientais urbanos:
1. A gestão integral de riscos ambientais urbanos pode se apoiar numa gestão institucional e numa governança organizadas em três eixos fundamentais: (I) a produção do conhecimento do risco em todos os âmbitos; (II) a implementação de medidas e estratégias para a redução de riscos; e (III) o gerenciamento de desastres e emergências. Os melhores formatos conhecidos de organização institucional para gestão de riscos recomendam que os três eixos sejam articulados, mas independentes nas atribuições, objetivos e recursos.
2. O Marco de Ação de Hyogo propõe fóruns de governança que chama de Plataformas de Redução de Riscos em todos os níveis, ou seja, fóruns de debate e decisão que agreguem os principais atores e instituições públicas, privadas e comunitárias no processo em discussão.
Dada a fragilidade de grande parte dos municípios brasileiros, recomenda-se a criação de fóruns regionais, nos Consórcios Intermunicipais, nos Comitês de Bacias ou outras estruturas, que se organizem por cada um dos eixos fundamentais e que se integrem em outros fóruns temáticos, como os de Habitação, Mudanças Climáticas, Infraestrutura, Recursos Hídricos, etc.
3. O Conhecimento dos Riscos é um processo indispensável para a tomada de decisões e priorização das intervenções para redução de riscos. Ele envolve a identificação, avaliação e mapeamento das suscetibilidades, das vulnerabilidades e dos riscos, o monitoramento dos seus fatores condicionantes, a construção de sistemas de informação, a comunicação do risco e a coprodução do conhecimento com a comunidade para aumento da resiliência, no sentido do protagonismo daqueles que vivem em risco para tomar medidas antecipadas, reagir ao desastre e ter capacidade de recuperação.
4. A Redução dos Riscos compreende o planejamento e a execução de ações para intervenções preventivas ou prospectivas destinadas a evitar a instalação de situações de risco (Prevenção) e para medidas e intervenções corretivas de situações de riscos já instaladas (Mitigação), bem como a criação de mecanismos para o suporte legal das ações (Normas Técnicas e Legais) e de instrumentos financeiros (fundos e seguros) para garantir recursos para as emergências e para a recuperação pós-desastres (Transferência do Risco).
A Prevenção tem suas ações direcionadas ao planejamento, monitoramento e controle da ocupação territorial e do uso do solo, buscando evitar novas situações de riscos. Está associada aos organismos de planejamento, meio ambiente, legislação.
A Mitigação abrange projetos e intervenções para redução e controle de riscos já instalados por meio de intervenções estruturantes e de redução da vulnerabilidade, tornando-se espaços mais seguros para a ocupação. Ela está integrada às políticas de habitação, meio ambiente, infraestrutura.
5. O Gerenciamento dos Desastres e Emergências compreende a preparação e a execução da Resposta a Emergências, e ainda a Recuperação dos espaços atingidos após a ocorrência do desastre, nas fases de Reabilitação e Reconstrução. São atribuições dos organismos de proteção e defesa civil, saúde, proteção social, habitação, obras.
As evidências cada vez mais explícitas das mudanças climáticas globais e seus reflexos na recorrência frequente de eventos extremos ainda não trouxeram às agendas públicas brasileiras a gestão integral de riscos como uma demanda indispensável de adaptação.
A atual crise econômica, política e institucional deve aumentar enormemente as situações de risco nas cidades, tanto pela ausência de gestão pública quanto pelo aumento das vulnerabilidades sociais.
Imagem destacada: Ricardo Moraes/Reuters
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