Tomada de Decisões Sob Embriaguez: Explorando o Impacto do Transtorno Por Uso de Álcool no Cérebro Através da Neuroeconomia (V.7, N.10, P.11, 2024)
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Kevin Pearson, um dos trigêmeos da série “This Is Us”, é mais do que um personagem carismático e talentoso. Sua batalha contra o alcoolismo nos leva a uma profunda reflexão sobre os mecanismos do vício e as complexas decisões que o acompanham. A relação do personagem com o álcool começa de modo inocente, como uma forma de aliviar o estresse e se encaixar socialmente. No entanto, com o tempo, o consumo se torna excessivo e incontrolável, levando a graves consequências em sua vida pessoal e profissional. O uso abusivo de substâncias alcoólicas é um problema de saúde pública global. Estima-se que cerca de 2,3 bilhões de pessoas consumam álcool regularmente, e que 283 milhões de pessoas apresentem algum transtorno relacionado ao uso de álcool, sendo o Brasil o terceiro país com maior número de casos nas Américas. Ainda, segundo a OPAS/OMS, o uso nocivo do álcool equivale a 5,3% de todas as mortes no mundo [1]. Para se ter uma ideia, somente no ano de 2021 o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 400,3 mil atendimentos a pessoas com transtornos comportamentais devido ao uso de álcool e outras drogas [2].
O Transtorno por Uso de Álcool (AUD) é um transtorno crônico caracterizado pelo consumo excessivo de álcool, apesar de suas consequências devastadoras. Conforme o DSM-V, que o define de leve a grave com base, principalmente, no prejuízo do controle comportamental do consumo de álcool, este transtorno requer a presença de pelo menos dois dos seguintes critérios durante um período de 12 meses: consumo excessivo de álcool, dificuldade em reduzir ou controlar o uso, tempo significativo gasto em atividades relacionadas ao álcool, forte desejo de consumir álcool, falha em cumprir responsabilidades devido ao consumo, persistência no uso apesar de problemas sociais ou interpessoais, abandono de atividades importantes devido ao álcool, consumo em situações de perigo, continuação do uso apesar de problemas físicos ou psicológicos, desenvolvimento de tolerância (necessidade de quantidades progressivamente maiores de álcool para alcançar o efeito desejado) e sintomas de abstinência [4].
O etanol, mesmo em doses mínimas, é considerado tóxico ao organismo, e seu consumo excessivo pode causar diversos problemas de saúde, como cirrose hepática, doenças cardíacas e câncer, além de contribuir para a ocorrência de acidentes e casos de violência. O consumo desenfreado causa morte e incapacidade prematuramente, especialmente entre jovens de 20 a 39 anos, onde 13,5% das mortes são atribuíveis ao seu consumo. O uso nocivo do álcool também está diretamente relacionado a diversos transtornos mentais e comportamentais, sendo importante destacar que as consequências não se limitam à saúde individual, mas também geram perdas sociais e econômicas significativas para os indivíduos e para a sociedade em geral [1, 2].
O álcool é considerado uma droga bifásica devido aos seus efeitos variados ao longo do tempo e em diferentes doses. No início da ingestão, em doses moderadas, o álcool pode causar efeitos estimulantes, como euforia e aumento da sociabilidade, devido à liberação de dopamina no cérebro. Isso caracteriza a primeira fase, conhecida como fase estimulante. Entretanto, à medida que a ingestão continua e as concentrações de álcool no sangue aumentam, ele começa a exercer efeitos depressores no sistema nervoso central. Nessa segunda fase, o álcool causa sedação, relaxamento e pode até mesmo levar à sonolência ou perda de consciência, dependendo da quantidade ingerida. Essa fase é chamada de fase depressora. Isso acontece pois o álcool influencia o funcionamento dos neurotransmissores no cérebro, como GABA, glutamato e dopamina, resultando em efeitos psicoativos. O GABA é potencializado, causando sedação; o glutamato é inibido, contribuindo para a depressão do sistema nervoso central; e a dopamina é aumentada, gerando sensações de recompensa. Além disso, fatores como composição corporal, volume do fígado e idade afetam sua distribuição e metabolismo, impactando seus efeitos cerebrais [3].
A neuroeconomia é um campo de estudo interdisciplinar que reúne conceitos e métodos da psicologia, economia e neurociência para compreender como o cérebro influencia as escolhas que fazemos. O livro Neuroeconomia e Processo Decisório [5] discute sobre a maneira como nosso cérebro toma decisões. O processo de tomada de decisão por uma determinada ação a fim de satisfazer determinada necessidade é complexo, uma vez que envolve a avaliação do benefício, do risco e do custo envolvidos na ação. Além disso, nosso cérebro também é responsável por realizar a gestão dos recursos necessários para a nossa sobrevivência e bem-estar emocional. No entanto, as pessoas possuem tolerâncias distintas quanto aos riscos e benefícios, pois ela depende da neuroquímica dos processos cerebrais, que varia quanto aos indivíduos, por isso algumas pessoas podem ser naturalmente mais propensas a assumir riscos, enquanto outras não [5]. Assim, o uso abusivo de substâncias psicoativas, como o álcool, pode alterar temporariamente ou permanentemente a forma como o cérebro processa informações de risco e benefício, tornando a pessoa mais propensa a assumir riscos que normalmente evitaria ou a subestimar os possíveis danos de certas ações. Assim, compreender a neuroeconomia dos processos decisórios é fundamental para entender o que motiva o abuso de álcool. Estudos nessa área sugerem que indivíduos com AUD apresentam alterações nos circuitos cerebrais relacionados à recompensa e à tomada de decisão [6].
Enquanto as teorias de aprendizagem operante explicam que o comportamento de consumo de álcool é mantido pelas propriedades reforçadoras da substância, ou seja, as sensações de prazer imediatas proporcionadas pela substância; a avaliação comportamental e neurobiológica do consumo de álcool revela padrões complexos associados aos transtornos relacionados ao uso dessa substância. Os estudos de economia comportamental tendem a avaliar como os indivíduos tomam decisões com base em três medidas principais. A primeira delas é o Desconto de Atraso, utilizada por neurocientistas para avaliar a preferência do indivíduo por recompensas menores e imediatas em detrimento de recompensas maiores e adiadas, de modo que seja possível compreender como as pessoas avaliam recompensas ao longo do tempo. Indivíduos com AUD tendem a apresentar desconto de atraso mais acentuado, de modo que valorizam mais recompensas imediatas do álcool em relação às consequências negativas futuras, prejudicando metas de longo prazo, como saúde e carreira. A segunda delas é a Demanda por Álcool, que demonstra que pessoas com AUD têm uma maior disposição para consumir bebidas alcoólicas mesmo diante de preços mais altos, refletindo a compulsão pela bebida e o maior valor que a pessoa atribui aos efeitos reforçadores da substância. Por fim, a última medida é conhecida como Reforço Proporcional Relacionado ao Uso de Álcool, que é utilizada para avaliar o quanto uma pessoa dedica tempo e prazer ao consumo de álcool em comparação com comportamentos livres de álcool. Assim, indivíduos com AUD apresentam alto índice dessa medida, evidenciando que eles apresentam dependência desproporcional ao álcool em relação às outras fontes de prazer na vida [6].
Por outro lado, métodos como a ressonância magnética funcional (fMRI) são úteis nos estudos acerca de alterações na atividade cerebral de indivíduos com AUD. A fMRI é uma técnica que detecta variações no fluxo sanguíneo para inferir a atividade neuronal em regiões específicas do cérebro, ou seja, quando uma determinada área é mais ativada, há um aumento no fluxo sanguíneo e na oxigenação, que são detectados pelo aparelho de ressonância. Com base nisto, um estudo de revisão demonstrou que indivíduos com AUD apresentam alterações nos três estágios de tomada de decisão: 1) antecipação de resultados, estágio no qual avaliamos os resultados potenciais antes de tomarmos uma decisão; 2) experiência de resultados, que fornece informações necessárias para que possamos comparar o resultado real de nossas escolhas com nossas expectativas; e 3) avaliação de resultados, estágio no qual avaliamos as consequências reais de nossas escolhas. Foi observada uma atividade anormal na conectividade entre duas regiões conhecidas como corpo estriado ventral e córtex pré-frontal dorsolateral, que podem explicar o consumo compulsivo de álcool e episódios recorrentes, apesar das consequências negativas acarretadas pelo uso da substância [7].
O conhecimento adquirido pela neuroeconomia contribui para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas para o abuso de álcool. Uma delas é a Abordagem de Reforço Comunitário (ARC), que visa aumentar o valor de comportamentos alternativos ao consumo, tornando a abstinência mais atraente do que a bebida [6,8]. Técnicas como a terapia cognitivo-comportamental, que visa modificar os padrões de pensamentos e comportamentos relacionados ao vício, podem ser combinadas com neuromodulação cerebral, que por sua vez pode reduzir a atividade do sistema límbico, responsável pelo prazer e pela recompensa, diminuindo a compulsão pelo álcool, auxiliando no processo de recuperação [7, 8].
As estatísticas alarmantes sobre o consumo de álcool e as consequências que podem ser acarretadas a partir dele, como o desenvolvimento de Transtorno por Uso de Álcool, além dos efeitos adversos na saúde pública global, deixam claro que estamos diante de um desafio. Assim, a neuroeconomia surge como um campo de estudo imprescindível para a compreensão acerca dos processos de tomada de decisão envolvidos com o uso de substâncias como o álcool, assim como determinados circuitos cerebrais relacionados à reforço e recompensa são impactados. Estes estudos nos aproximam de um futuro com intervenções mais personalizadas e eficazes àqueles que sofrem com a dependência em álcool, assim como auxiliando na superação da compulsão e na reconstrução de uma vida mais saudável.
Referências:
[1] Organização Pan-americana da Saúde. Álcool (2023). Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/alcool#:~:text=O%20uso%20nocivo%20de%20álcool%20é %20um%20fator%20causal%20para,DALY%2C%20sigla%20em%20inglês).
[2] Ministério da Saúde. Atendimento a pessoas com transtornos mentais por uso de álcool e drogas aumenta 12% no SUS (2022). Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/fevereiro/atendimento-a-pessoas-com transtornos-mentais-por-uso-de-alcool-e-drogas-aumenta-11-no-sus
[3] Palmer E, Tyacke R, Sastre M, Lingford-Hughes A, Nutt D, Ward RJ. Alcohol Hangover: Underlying Biochemical, Inflammatory and Neurochemical Mechanisms. Alcohol Alcohol. 2019 May 1;54(3):196-203. doi: 10.1093/alcalc/agz016. PMID: 30916313.
[4] National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA). Alcohol Use Disorder: A Comparison Between DSM–IV and DSM–5 (2021). Disponível em: https://www.niaaa.nih.gov/publications/brochures-and-fact-sheets/alcohol-use-disorder-comp arison-between-dsm
[5] Rocha, Armando & Rocha, Fábio. (2011). Neuroeconomia e o Processo Decisório.
[6] MacKillop J. The Behavioral Economics and Neuroeconomics of Alcohol Use Disorders. Alcohol Clin Exp Res. 2016 Apr;40(4):672-85. doi: 10.1111/acer.13004. Epub 2016 Mar 19. PMID: 26993151; PMCID: PMC4846981
[7] Galandra C, Basso G, Cappa S, Canessa N. The alcoholic brain: neural bases of impaired reward-based decision-making in alcohol use disorders. Neurol Sci. 2018 Mar;39(3):423-435. doi: 10.1007/s10072-017-3205-1. Epub 2017 Nov 29. PMID: 29188399.
[8] Sweis BM, Thomas MJ, Redish AD. Beyond simple tests of value: measuring addiction as a heterogeneous disease of computation-specific valuation processes. Learn Mem. 2018 Aug 16;25(9):501-512. doi: 10.1101/lm.047795.118. PMID: 30115772; PMCID: PMC6097760.
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