A água que não deveria estar lá, o telescópio voador e as coleções de borboletas (V.7, N.7, P.4, 2024)
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Na terceira semana de fevereiro de 2024, foi publicado um artigo na The Planetary Sciend Journal confirmando a presença de água em dois asteroides do Sistema Solar [1]. Essa empolgante descoberta vem acompanhada de uma intrigante curiosidade: os asteroides alvo da pesquisa estão classificados como anidros, ou seja, secos, sem água.
A equipe da pesquisadora Alicia Arredondo, do Southwest Research Institute em San Antonio, EUA, investigou quatro asteroides, denominados Iris (nomeado em homenagem à deusa grega do arco-íris), Melpomene (a musa da tragédia), Parthenope (uma sereia citada na Odisseia) e Massalia (o primeiro asteroide com um nome não mitológico), todos do cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter. A Tabela 1 apresenta alguns dados destes corpos celestes e a Figura 1 uma “foto” de Iris.
Tabela 1. Dados dos asteroides pesquisados.
Identificação | distância ao Sol (UA) | período (anos) | diâmetro (km) |
18 Melpomene | 2,296 | 3,48 | 37 |
7 Iris | 2,387 | 3,69 | 200 |
11 Parthenope | 2,452 | 3,84 | 149 |
20 Massalia | 2,409 | 3,74 | 145 |
OBS – 1 UA equivale aproximadamente a 150 milhões de quilômetros.
Esta descoberta de água em Iris e Massalia é surpreendente, porque a nossa compreensão atual da formação do sistema solar sugere que os asteróides tipo S são anidros devido à sua localização de formação no interior do sistema solar.
Outro detalhe inusitado: para realizar a descoberta, a equipe científica utilizou um sofisticadíssimo instrumento: o telescópio Sofia [2]. A sigla significa Stratospheric Observatory For Infrared Astronomy (Observatorio Estratosférico para Astronomia no Infravermelho), e trata-se de um telescópio de 2,5 metros de diâmetro instalado em uma aeronave Boeing 747 (Figura 2).
E porquê infravermelho? A molécula de água tem uma vibração característica no comprimento de onda de 6 μm (1 μm equivale a 1 milionésimo de metro, ou 1 milésimo de milímetro), e está situada na região do infravermelho do espectro eletromagnético. Este comprimento de onda tem a vantagem de identificar a presença de água sem sombra de dúvida, pois é uma emissão bem específica das moléculas de H2O. As observações devem ser feitas na estratosfera, pois o ar abaixo desta absorve as ondas de 6 μm. Felizmente o Sofia estava à disposição.
Outra façanha desta missão é o ineditismo: esta foi a primeira vez que a emissão de 6 μm foi observada em um asteroide do tipo S.
Atualmente, utilizamos uma classificação para os asteroides que procura identificá-los por sua composição e, eventualmente, sua história no Sistema Solar. Os asteroides do tipo S (como os observados por Arredondo e seus colegas) são objetos silicáceos, ou “pedregosos”, nos quais a presença de água era considerada improvável. Os asteroides tipo C, os “carbonáceos” são ricos em compostos de carbono e podem conter água. Existem vários outros tipos e mais de uma linha de classificação [3]. Entretanto, depois desta descoberta, algumas classificações antigas deverão ser revistas.
Os seres humanos têm o hábito de classificar os objetos como uma maneira de estruturar e organizar informações para torná-las mais acessíveis e compreensíveis. São criadas categorias, subcategorias, classes e subclasses, e depois tentamos fazer diagramas hierárquicos com estas classificações e submetê-las a modelos teóricos.
Aparentemente, os asteroides foram vítimas desta prática, tal e qual as borboletas. Geralmente, as coleções de borboletas (Figura 3) organizadas segundo a coloração das asas, ou segundo seus tamanhos, ou segundo sua origem geográfica. Evidentemente, se borboletas são organizadas por sua cor, seus tamanhos e origem estarão misturados. Se são organizadas por origem, várias cores e tamanhos estarão presentes.
Portanto, é impossível encontrar a classificação ideal, perfeita. Sempre haverá uma característica que não se encaixa no modelo imposto pelos pesquisadores. Se por acaso tentarmos repensar a classificação, mais tarde descobriremos uma nova característica de um subgrupo que não se encaixa, o que nos leva a reconstruir os modelos e corrigir as teorias.
Essa é uma das maneiras da ciência se autoquestionar e evoluir. A constante busca de novas observações e novos detalhes é o que faz progredir o conhecimento científico.
Enquanto isso, ao contrário de nós, humanos, apesar das classificações, grupos e subgrupos, os objetos e seres observados não se preocupam como são etiquetados. A natureza não se importa com isso.
Para os asteroides, assim como para as borboletas, basta apenas existir.
Referências
[1] Arredondo, A. et al., 2024, “Detection of Molecular H2O on Nominally Anhydrous Asteroids”, The Planetary Science Journal, 5:37 (13pp).
[2] Krabbe, Alfred (March 2007). “SOFIA telescope”. Proceedings of SPIE: Astronomical Telescopes and Instrumentation. Munich, Germany: SPIE — The International Society for Optical Engineering. pp. 276–281. arXiv:astro-ph/0004253. Bibcode:2000SPIE.4014..276K. doi:10.1117/12.389103.
[3] Cellino, A.; Bus, S. J.; Doressoundiram, A.; Lazzaro, D. (March 2002). “Spectroscopic Properties of Asteroid Families” (PDF). Asteroids III: 633–643. Bibcode:2002aste.book..633C. doi:10.2307/j.ctv1v7zdn4.48. Retrieved 27 October 2017.