Os Olhos do Gato e a cegueira do Homem Invisível(V.7. N.1. P.4, 2024)
Tempo estimado de leitura: 5 minute(s)
Em 1978, a dupla de autores Alejandro Jodorowsky (cineasta chileno-ucraniano) e Moebius (nome artístico de Jean Giraud, cartunista e escritor francês) publicaram a obra “Les yeux du chat” (“Os Olhos do Gato”, em português) [1]. Esta pequena obra estabeleceu um marco histórico, tanto em sua forma quanto na narrativa.
A história mantém um clima tenso e misterioso, que permanece nos sentimentos do leitor mesmo depois do final. Três personagens (um menino, uma águia e um gato) são apresentados em ambientes distintos, em um contexto dúbio e incompleto. A atmosfera de dúvida é quebrada dando lugar ao choque e espanto, quando uma ação violenta e inesperada impõe um novo ritmo à narrativa. Finalmente, a última das poucas frases escritas abre ao leitor um universo de motivações, interesses, necessidades e crueldades. É impossível passar pelos “Olhos do Gato” sem que nos seja imposta uma revisão da visão que temos do mundo atual e nossa postura diante do passar da história.
A expressão gráfica do desenho de Jean Giraud dá vida à história de Jodorowsky de uma maneira simultaneamente minimalista e gótica. Como em outras obras, Moebius apresenta um cenário surreal, que vai além do místico. Suas outras histórias famosas, como a série “Incal” e a “Garagem Hermética”, trazem este cenário amplo e simples, com ângulos de visão e detalhamentos inesperados. Aconselho ao leitor as aventuras de Arzach [2], personagem criado por Moebius como contraponto aos super-heróis das comics estadunidenses, para uma melhor compreensão de como Moebius se relaciona com os espaços.
O tema central da primeira camada dos “Olhos do Gato” (pois é uma narrativa de várias camadas…) são os olhos. Estes órgãos, que compartilhamos com uma infinidade de outras espécies do planeta, têm uma característica que parece mágica: nos permitem ver, enxergar.
Nós, seres humanos, somos criaturas essencialmente visuais. O olho humano funciona como uma câmera fotográfica biológica e complexa. A luz entra pela córnea, passa pelo cristalino, que ajusta o foco, e chega à retina na parte de trás do olho. A retina contém células sensíveis à luz, chamadas fotorreceptores, que convertem a luz em sinais elétricos. Esses sinais são transmitidos ao cérebro pelo nervo óptico, onde são processados e interpretados para formar uma imagem visual [3].
Resumindo: a retina é o sensor principal dos nossos olhos. As células fotorreceptoras absorvem os fótons que atravessam os tecidos transparentes, passando ao nervo óptico.
O que aconteceria se a luz, os fótons, atravessassem a retina, sem deixar vestígio de sua passagem? Simplesmente não veríamos. É o que acontece com os Raios-X, uma radiação eletromagnética como a luz, que atravessam nosso corpo, mas não deixam informação que nossos olhos possam ver.
E agora chegamos ao título desta conversa. O homem invisível, um ser mitológico da ficção científica, tem o incrível poder de não ser visto. Deixando de lado as implicações filosóficas e morais que este poder permite, do ponto de vista puramente da física, o que acontece de fato é que a luz passa através de seu corpo (caro leitor, permita-me esclarecer que a frase “o que acontece de fato” é pura retórica, pois, como sabemos, o homem invisível não existe).
Assim, se a luz atravessa o seu corpo, deve também atravessar as suas retinas. Caso contrário, seria possível ver as suas retinas. Isso é obvio, pois, ao absorver a luz as retinas deixam de ser transparentes e ficariam bem nítidas, passeando pelo ar à medida que o homem invisível caminhasse.
Portanto, para que a sua invisibilidade seja perfeita e completa, o homem invisível não pode enxergar. Ele até pode ser invisível, mas como consequência, é cego.
Referências
[1] Jodorowsky, A. & Moebius, 1978, “Os Olhos do Gato”, ed. Nemo; (edição 2015), ISBN-13 978-8582861738.
[2] Moebius, 1996, “Arzach”, ed. Dark Horse Comics. ISBN-13 : 978-1569711323
[3] Land, M.F.; Fernald, R.D. (1992). “The evolution of eyes”. Annual Review of Neuroscience. 15: 1–29. DOI:10.1146/annurev.ne.15.030192.000245
Figuras