Celulossomas – sofisticadas nanomáquinas biológicas com potencial para aplicações industriais (V.4, N.6, P.7, 2021)
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Biomassa é toda matéria orgânica de origem vegetal ou animal com inúmeras aplicações biotecnológicas e industriais. A biomassa vegetal é a fonte renovável de carbono mais abundante na Terra e composta majoritariamente por polissacarídeos como a celulose e a hemicelulose [1]. No Brasil a biomassa da cana-de-açúcar é utilizada como fonte para a produção do bioetanol. O bioetanol é produzido a partir do caldo rico em sacarose (dissacarídeo) resultante da moagem da planta (conhecido como bioetanol de primeira geração) ou através da celulose presente no bagaço da cana-de-açúcar (conhecido como bioetanol de segunda geração). A celulose é um polímero rígido, difícil de ser quebrado e constituído por unidades do monossacarídeo glicose. A tecnologia atual mais promissora para a conversão da celulose em bioetanol é baseada na hidrólise (quebra) do polímero por celulases (enzimas que realizam a quebra da celulose) em moléculas de glicose, seguida pela fermentação da glicose em etanol por fungos como o Saccharomyces cerevisiae.
A hidrólise enzimática da celulose em glicose requer a atuação coordenada de pelo menos três tipos de celulases conhecidas como endoglucanases, celobiohidrolases e β-glicosidases. As endoglucanases quebram aleatoriamente as cadeias do polímero de celulose em fragmentos menores de vários comprimentos. As celobiohidrolases quebram (clivam) unidades de celobiose (dissacarídeo de glicose) a partir das extremidades dos polímeros de celulose. Por último, as β-glicosidases clivam a celobiose em duas moléculas de glicose as quais são então utilizadas no processo de fermentação para a produção do bioetanol.
Bactérias e fungos liberam no meio extracelular diferentes celulases livres que quebram a celulose em moléculas de glicose como discutido acima. Porém, bactérias e fungos anaeróbios (microrganismos que podem crescer na ausência de oxigênio) são capazes de produzir essas celulases organizadas em grandes complexos que funcionam como nanomáquinas biológicas. Essas nanomáquinas biológicas, conhecidas como celulossomas, são altamente organizadas o que confere a essas estruturas uma alta eficiêcia na quebra da celulose quando comparada com celulases livres em solução. No início da década de 80 os pesquisadores Bayer e Lamed observaram pela primeira vez os celulossomas localizados na superfície da parede celular da bactéria Clostridium thermocellum [2], um microrganismo anaeróbio com elevada eficiência na quebra da celulose [3]. A figura 1A apresenta uma micrografia onde se podem observar os celulossomas como pequenas protuberâncias escuras na superfície da parede celular da bactéria C. thermocellum.
O celulossoma é uma estrutura formada de proteínas catalíticas (celulases) e proteínas não catalíticas (módulos coesinas e doquerinas) que funcionam como blocos que se associam como em um brinquedo Lego formando então uma nanomáquina biológica com alta eficiência na quebra da celulose. A figura 1B apresenta uma ilustração da composição e arquitetura do celulossoma de C. thermocellum. O celulossoma possui uma componente principal de alta massa molecular denominada de CipA (sigla em inglês para “Cellulosome Integrating Protein”) responsável pela organização do celulossoma, interação com a celulose e pela ancoragem da nanomáquina à parede celular bacteriana através de um módulo não catalítico denominado doquerina tipo II (figura 1B) [3]. A CipA é formada pela doquerina tipo II e mais nove módulos não catalíticos denominados de coesina tipo I além de um módulo de ligação a celulose CBM3a (figura 1B). Associados as celulases estão módulos não catalíticos denominados de doquerina tipo I (figura 1B). Assim, as celulases ligam-se as coesinas tipo I da CipA através dos módulos doquerinas tipo I (figura 1B) [3]. Esta interação entre os módulos coesina tipo I e doquerina tipo I confere alta estabilidade e organização estrutural ao celulossoma [3].
A CipA é ancorada à parede celular da bactéria C. thermocellum através da interação entre a doqueria tipo II (localizada na extremidade da CipA) e a coesina tipo II presente na proteína de ancoragem SdbA (sigla em inglês para “Scaffoldin dockerin binding protein A”) localizada na parede celular (figura 1B). A SdbA contém um apenas um módulo coesina tipo II permitindo assim a ligação de uma CipA [3]. Os módulos coesinas interagem apenas com os módulos doquerinas. As ligações entre coesinas (tipo I ou II) e doquerinas (tipo I ou II) são essenciais para a montagem e organização do celulossoma, uma vez que essas interações são específicas, ou seja, coesinas tipo I ou II somente reconhecem doquerinas do mesmo tipo e vice-versa. Além disso, estas ligações ocorrem apenas entre módulos coesinas e doquerinas da mesma espécie.
Os fungos anaeróbios são microrganismos presentes no trato gastrointestinal de animais herbívoros e que quebram com grande eficiência uma ampla variedade de polissacarídeos como a celulose. Similarmente a muitas bactérias anaeróbias como a C. thermocellum, as celulases de fungos anaeróbios, por exemplo o fungo do gênero Piromyces, são também organizadas em celulossomas. Em contraste com os celulossomas de bactérias, os celulossomas de fungos são ainda muito pouco estudados e caracterizados. Esta grande capacidade em quebrar a celulose faz com que os celulossomas apresentem grande potencial para diversas aplicações biotecnológicas e industriais. Contudo, apesar de toda a pesquisa desenvolvida e conhecimento adquirido sobre a composição e organização estrutural dessas nanomáquinas, atualmente um processo industrial efetivo empregando celulossomas ainda não é comercialmente viável. Portanto, mais estudos fazem-se necessários para compreender em detalhes o mecanismo de ação dos celulossomas como também para desenvolver metodologias que permitam aplicações dessas nanomáquinas biológicas em processos indústrias que apresentem eficiência e boa relação custo-benefício.
Referências
[1] Rezende C.A., Lima M.A., Maziero P., Deazevedo E.R., Garcia W., Polikarpov I., Chemical and morphological characterization of sugarcane bagasse submitted to a delignification process for enhanced enzymatic digestibility. Biotechnol. Biofuels. 2011, 4: 54.
[2] Bayer E. and Lamed R., Ultrastructure of the cell-surface cellulosome of Clostridium thermocellum and its interaction with cellulose,” J. Bacteriol., vol. 167, no. 3, pp. 828–836, 1986.
[3] Fontes C.M.G. and Gilbert H.J., Cellulosomes: highly efficient nanomachines designed to deconstruct plant cell wall complex carbohydrates, Annu. Rev. Biochem., vol. 79, pp. 655–681, 2010.
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SILVA, Wanius José Garcia da. Celulossomas – sofisticadas nanomáquinas biológicas com potencial para aplicações industriais (V.4, N.6, P.7, 2021). Blog UFABC Divulga Ciência, ISSN 2596-0695. Disponível em: https://ufabcdivulgaciencia.proec.ufabc.edu.br/2021/06/11/celulossomas-sofisticadas-nanomaquinas-biologicas-com-potencial-para-aplicacoes-industriais-v-4-n-6-p-7-2021/