Unindo Medicina e Engenharia: Conheça a CFD (V.4, N.5, P.11, 2021)

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Divulgador da Ciência:

João Lameu da Silva Júnior, Professor da Engenharia Biomédica, UFABC [Lattes]

 

A modelagem e a simulação de fenômenos naturais é cada vez mais rotineira na vida de engenheiras, engenheiros e cientistas. A Dinâmica dos Fluidos Computacional ou Computação Fluidodinâmica (CFD, do inglês Computational Fluid Dynamics) é uma ferramenta poderosa para a simulação e estudo do escoamento de fluidos, fornecendo um grande detalhamento. Aplicações de sucesso da CFD podem ser vistas em diversas áreas, como nas engenharias aeronáutica e aeroespacial, mecânica, química, de alimentos, ambiental, de energia e biomédica, entre outras.

 

O que é CFD?

 

Podemos entender melhor a CFD definindo os termos “Computacional”, “Fluido” e “Dinâmica”.

  • Computacional vem da utilização de computadores para realização dos cálculos.
  • Fluido é uma substância que se deforma continuamente, isto é, se move, quando está submetida a uma força de cisalhamento, que pode ser entendida como uma força que causa o deslocamento de camadas do fluido. Gases e líquidos são fluidos. O grau de facilidade de escoamento de um fluido está relacionado a viscosidade dinâmica, propriedade físico-química da substância.
  • Dinâmica está relacionada à força. Em física mecânica, dinâmica é o ramo que estuda o movimento de um corpo, bem como, as causas do movimento.

Portanto, de forma geral, podemos entender a CFD como uma técnica computacional aplicada ao estudo do escoamento de fluidos e outros fenômenos associados.

 

Como funciona a CFD?

 

Primeiramente deve-se escolher a região a ser estudada, chamada de domínio computacional. Por exemplo, considere um trecho do sistema arterial humano, neste caso, a bifurcação da artéria carótida (Figura 1):

 

Figura 1. Exemplo de domínio computacional definido pela bifurcação da artéria carótida (Fonte: Adaptado de GrabCad [1]).

Definido o domínio computacional, prosseguimos para a etapa de geração da malha numérica (Figura 2), que consiste na divisão da região em centenas de milhares até mesmo dezenas de milhões de pequenos volumes, dependendo da complexidade do caso estudado. Estes pequenos volumes são conhecidos por volumes de controle ou elementos, e é neles que serão realizados os cálculos computacionais.

 

Figura 2. Exemplo de malhas numérica: (a) malha híbrida, com elementos tetraédricos e camadas de prismas próximos a parede; (b) malha com predominância de elementos hexaédricos (Fonte: próprio autor).

 

Daí seguimos para a definição do modelo matemático, que inclui as equações que descrevem o escoamento, no nosso exemplo o fluxo sanguíneo, e as condições de contorno. Estas últimas limitam a região de estudo, incluindo entradas, saídas e paredes (Figura 3.b). Estas são fundamentais para o sucesso da simulação. Pelas condições de contorno que os engenheiros e cientistas “dizem” ao computador o que ocorre naquele local. Por exemplo, sabemos que o coração humano trabalha de forma pulsada para fornecer o volume de sangue necessário a todo o corpo durante um ciclo (Figura 3.a), então podemos admitir que uma condição de contorno coerente aqui seria a informação do comportamento da vazão de sangue na entrada da artéria estudada. Outra informação adequada seria, por exemplo, a definição da pressão sanguínea nas saídas do domínio e levar em conta o comportamento viscoso do sangue pela interação entre o fluido e as paredes do vaso arterial.

 

Figura 3. (a) Perfil de fluxo sanguíneo da artéria carótida, em mililitros por segundo, em função do ciclo cardíaco com duração de 0,8 s (Adaptado de Urquiza et al. [2]); (b) ilustração das condições de contorno de entrada, saídas e parede (Fonte: próprio autor).

Para finalizar esta etapa, parâmetros relacionados à solução computacional são definidos e então a simulação é resolvida.

Os resultados da simulação, por exemplo, velocidade e pressão, estão disponíveis em todos os pequenos elementos da malha numérica. Estes resultados são conhecidos também como campos do escoamento. Para facilitar a análise e a compreensão, programas específicos denominados pós-processadores são usados. Estes permitem a visualização dos padrões do fluxo sanguíneo, por exemplo por meio de gráficos de contorno (Figura 4) ou campos vetoriais da velocidade (Figura 5). Campos vetoriais são funções úteis que relacionam um vetor, grandeza física que possui direção, sentido e magnitude, como a velocidade, a cada ponto no espaço, aqui definido pela malha numérica. Isto permite uma interpretação mais aprofundada do fluxo sanguíneo.

 

Figura 4. (a) Campo de pressão na parede da artéria carótida; (b) campos de velocidade do sangue ao longo da bifurcação da carótida. As cores quentes representam maiores valores. Os resultados são apenas ilustrativos e foram obtidos pelo software opensource OpenFOAM v2012 [3] (Fonte: próprio autor).

Figura 5. (a) Campo vetorial da velocidade em todo o domínio de estudo; (b) combinação de um plano com gráfico de contorno e campo vetorial plotado em uma seção transversal na região de bifurcação para ilustrar a recirculação local do fluxo sanguíneo; (c) detalhe do campo vetorial com a recirculação que ocorre na bifurcação. Os resultados são apenas ilustrativos e foram obtidos pelo software opensource OpenFOAM v2012 [3] (Fonte: próprio autor).

Além disso, como a solução computacional é obtida para toda a região de interesse, outras propriedades derivadas e de grande relevância no estudo do fluxo sanguíneo podem ser obtidas, como por exemplo a tensão de cisalhamento na parede, a qual está diretamente relacionada ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares quando atinge certos valores.

O sucesso de aplicação da CFD na área cardiovascular, bem como outras áreas da Medicina e Engenharia Biomédica, já é tão notável que foram reportados estudos do uso desta ferramenta como método auxiliar à escolha de procedimentos cirúrgicos [4,5], a chamada “cirurgia virtual”, uma vez que a equipe multidisciplinar, incluindo médicos, engenheiros e demais profissionais, podem simular alterações na região de interesse e usar os resultados computacionais como uma previsão do comportamento do fluxo sanguíneo em novos cenários, podendo assim ajudar na escolha do procedimento cirúrgico. Outros estudos usando CFD na área médica incluem o desenvolvimento de medicamentos aerossóis [6], desenvolvimento e otimização de bombas e válvulas cardíacas [7-9], entre outros.

Vale ressaltar que para se alcançar tal nível de confiança nestas simulações computacionais, são necessários conhecimentos aprofundados dos fenômenos físicos e fisiológicos associados ao fluxo sanguíneo na região de interesse. Além disso, modelos computacionais devem sempre se fundamentar em procedimentos rigorosos de validação, que consiste na comprovação dos resultados do modelo em representar de forma coerente o fenômeno estudado. Na validação é fundamental o uso de dados experimentais, que podem ser obtidos, por exemplo, de exames médicos do próprio paciente. Desta forma, pode-se destacar que a CFD é uma ferramenta de grande potencial para estudos de relevância na área de Medicina e Engenharia Biomédica.

 

Referências

[1] GRABCAD, Carotid bifurcation, 3D model by user aaron. Disponível em: https://grabcad.com/library/carotid-bifurcation. Acessado em: 31 de março de 2021.

[2] URQUIZA, S.A., BLANCO, P.J., VÉNERE, M.J., FEIJÓO, R.A., Multidimensional modelling for the carotid artery blood flow. Comput. Methods Appl. Mech. Engrg., v. 195, p. 4002-4017, 2006. https://doi.org/10.1016/j.cma.2005.07.014

[3] OpenFOAM (Open Source Field Operation and Manipulation), v. 2012. Disponível em: https://www.openfoam.com. Acessado em: 31 de março de 2021.

[4] DE ZÉLICOURT, D. A., MARSDEN, A., FOGEL, M. A., YOGANATHAN, A. P., Imaging and patient-specific simulations for the Fontan surgery: current methodologies and clinical applications. Progress in pediatric cardiology, v. 30(1-2), p. 31-44, 2010. https://doi.org/10.1016/j.ppedcard.2010.09.005

[5] SUNDARESWARAN KS, DE ZÉLICOURT D, SHARMA S, et al. Correction of pulmonary arteriovenous malformation using image-based surgical planning. JACC Cardiovasc Imaging, v. 2(8), p. 1024-1030, 2009. https://doi.org/10.1016/j.jcmg.2009.03.019

[6] TIAN, G., HINDLE, M., LEE, S., LONGEST, P.W., Validating CFD Predictions of Pharmaceutical Aerosol Deposition with In Vivo Data. Pharm. Res., v. 32, p. 3170-3187, 2015. https://doi.org/10.1007/s11095-015-1695-1

[7] KANNOJIYA, V., DAS, A.K., DAR, P.K., Proposal of hemodynamically improved design of an axial flow blood pump for LVAD. Medical & Biological Engineering & Computing, v. 58, p. 401-418, 2020. https://doi.org/10.1007/s11517-019-02097-5

[8] FRASER, K.H. ERTAN, M.T., BARTLEY, P.G., ZHONGJUN, J.W., The Use of Computational Fluid Dynamics in the Development of Ventricular Assist Devices, Med Eng Phys., v. 33(3), p. 263-280, 2011. https://doi.org/10.1016/j.medengphy.2010.10.014

[9] BORAZJANI, I., Fluid-structure interaction, immersed boundary-finite element method simulations of bio-prosthetic heart valves. Comput. Methods Appl. Mech. Engrg., v. 257, p. 103-116, 2013. http://dx.doi.org/10.1016/j.cma.2013.01.010

 

 

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JÚNIOR, João Lameu da Silva. Unindo Medicina e Engenharia: Conheça a CFD. Blog UFABC Divulga Ciência, ISSN 2596-0695. Disponível em: https://ufabcdivulgaciencia.proec.ufabc.edu.br/2021/05/28/simulacoes-computacionais-aplicadas-ao-estudo-do-fluxo-sanguineo-v-4-n-4-p-5-2021/

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