A descoberta da kriptonita cinza e sua relação com os telefones celulares e o Big-Bang (V.3, N.8, P.6, 2020)

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Divulgador da Ciência:

Annibal Hetem Junior possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado em Astronomia pela Universidade de São Paulo (1992) e doutorado em Astronomia pela Universidade de São Paulo (1996). Atualmente é docente da Universidade Federal do ABC.[Lattes]

 

Em 2004, pesquisadores do grupo de mineração Rio Tinto descobriram um mineral incomum durante a avaliação de um local na Sérvia. Os cientistas tiveram certa dificuldade para classificar a nova pedra, que era de aparência cinza claro e demonstrava humildemente ser um silicato. Mais tarde, foi declarada a existência de um novo mineral: a jadarita, nome escolhido em homenagem ao local onde foi descoberta, o vale de Jadar, 10 km a sudoeste da montanha Cer[1].

 

A fórmula química da jadarita é LiNaSiB3O7(OH). Em uma incrível e curiosa coincidência, uma formulação parecida havia já sido publicada, mas não em uma revista científica. A menos de um pequeno detalhe, a combinação química indicava que o novo mineral não era nada menos do que a kriptonita – a única substância capaz de afetar os poderes do Super-Homem (veja, por exemplo, a fórmula química escrita na caixa contendo a kriptonita roubada por Lex Luther de um museu no filme “Superman Returns”).

Amostra de jadarita do Centro de Historia Natura da Sérvia. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Natural_History_Center_Svilajnac_16.JPG

 

Segundo a mineradora[2], o minério está bem longe de apresentar os poderes da kriptonita tão temida por Clark Kent. As pedras sérvias não brilham no escuro nem emitem radiação (eu, entretanto, duvido que tenham sido testadas em um autêntico nativo do planeta Kripton).

 

Os verdadeiros poderes da jadarita são outros. Veja bem, caro leitor, que na fórmula apresentam-se “Li” e “B3” – lítio e boro, elementos relativamente raros de elevada importância industrial. O boro é usado em ligas, cerâmica, vidros e outras aplicações[3], e o lítio é fundamental para a construção de baterias. Em maio de 2017, a Rio Tinto anunciou que a área de Jadar possui um dos maiores depósitos de lítio do mundo, estimando os depósitos do Baixo Jadar em 136 milhões de toneladas.

 

Logo, da mesma forma que Lex Luthor obteve um poder extraordinário, a possessão desta “kriptonita” dará a seus controladores a capacidade de influenciar o mercado de dispositivos móveis, entre eles os telefones celulares, laptpos e os carros elétricos do futuro. 

 

Estima-se que o consumo de lítio em 2020 seja de 300 mil toneladas em todo o planeta[4], sendo que o retorno financeiro (apenas em baterias recarregáveis) deve ultrapassar 20 bilhões de dólares[5]. Isso representa apenas 42% do mercado deste metal alcalino, pois sua presença é insubstituível nas tecnologias de cerâmica, vidro, lubrificantes, polímeros, operações em metalurgia, etc. As demandas estão acima da capacidade de extração atual – o que explica porque o valor do lítio no mercado mundial tem subido constantemente.

Tecnologias dependentes do lítio. (dados de https://www.nemaskalithium.com/en/lithium-market/)

 

Infelizmente, apesar dos esforços de alguns poucos iluminados, a poluição por lítio tem aumentado na mesma proporção do seu consumo. Este metal é extremamente reativo, e seus óxidos muito venenosos. Reciclar nossas baterias é tão importante quanto cuidar da nossa saúde pessoal.

 

Apesar de toda essa potencialidade como insumo, o lítio é bem modesto. Um núcleo de átomo de lítio tem apenas três prótons e sua densidade (0,535 gramas por centímetro cúbico) é tão baixa que lhe permite flutuar sobre a água. Na Tabela Periódica, o lítio mora no apartamento exatamente abaixo do hidrogênio, perto de seus primos alcalinos. Leve, de fraca resistência mecânica, e com um único elétron de valência, poucos acreditariam que este humilde elemento teria tamanha relevância nesta época histórica em que vivemos.

Lítio boiando em óleo, que por sua vez está flutuando sobre água. https://www.deboecksuperieur.com/system/files/ressources/fichier/2012/35/9782804171278-mcquarrie-inter-d.pdf

 

Em contraponto às suas qualidades despojadas, as origens do lítio – os seus átomos – não são nada modestas. Na grande explosão primordial, o Big-Bang, foram gerados os átomos de hidrogênio, hélio e lítio (e seus isótopos). A proporção de átomos de lítio para seus irmãos cogerados era de um para cada bilhão dos outros. E este número tem diminuído a cada dia. 

 

O núcleo das estrelas é um verdadeiro gerador de novos átomos. Núcleos de hidrogênio colidem para formar hélio, hélio e hidrogênio são comprimidos para formar carbono, e assim por diante. Praticamente, dependendo apenas da massa da estrela, todos os elementos mais leves que o ferro (de número atômico 26) são formados durante a vida das estrelas. Os elementos mais pesados, além do ferro, são gerados durante uma supernova, a morte explosiva de uma estrela[6]Existem reações termonucleares que geram o lítio. Contudo, a taxa (velocidade) com que estas reações ocorrem é menor do que a taxa com o lítio é consumido para produzir outros átomos[7].

 

Logo, o total de lítio no universo está diminuindo a cada dia. O lítio presente na Terra é todo aquele que estava aqui desde a origem do planeta. Com a exceção de alguns quilogramas que foram enviados ao espaço (como baterias e componentes de sondas e satélites), esta quantidade não mudou. Nem há esperança de que mude. Fique tranquilo, caro leitor, não existem asteroides de lítio em rota de colisão conosco.

 

Assim, eis porque os mineradores do vale do Jadar ficaram tão felizes com a descoberta da jadarita. Esta nova fonte de lítio ajudará a equilibrar, pelo menos temporariamente, a crescente demanda pelo metal.

 

Como lição de casa, sugiro que cada um verifique se têm reciclado adequadamente suas baterias. A natureza agradece e o mercado futuro também. Lembre-se: o Super-Homem perdeu seu planeta em uma explosão cataclísmica, mas salvou-se por ter saído de lá no momento exato. Mas nós estamos poluindo perigosamente o nosso planeta, sem ter para onde ir.

 

Referências

[1] Stanley, C.J. et al, 2007, “Jadarite, LiNaSiB3O7(OH), a new mineral species from the Jadar Basin,Serbia”, Eur. J. Mineral.2007, 19, 575–580Published online August 2007, DOI: 10.1127/0935-1221/2007/0019-1741

[2] https://www.riotinto.com/

[3] S.Trifunović, 2009, “Jadarit još čeka”. Politika. http://www.politika.rs/sr/clanak/91878/Ekonomija/Jadarit-jos-ceka

[4] Riseborough, Jesse. “IPad Boom Strains Lithium Supplies After Prices Triple”. Bloomberg BusinessWeek. Publicado na web em 22/junho/2012.

[5] https://www.greenoptimistic.com/lithium-market-growth-ev-20171118/

[6] http://www.hqastrorock.iag.usp.br/rockstar.html

[7] Basri, G. (1998). Rafael Rebolo; Eduardo L. Martin; Maria Rosa Zapatero Osorio (eds.). The Lithium Test for Young Brown Dwarfs (invited review)Proceedings of a Workshop held in Puerto de la Cruz, Tenerife, Spain, 17–21 March 1997, ASP Conference Series #134. p. 394. Bibcode:1998ASPC..134..394B.

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