O atraso do Brasil na inclusão política das mulheres (V.3, N.5, P.9, 2020)
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Em 1998, o Brasil adotou cotas de gênero nas eleições para a Câmara dos Deputados pela primeira vez. A medida teve importância simbólica, mas o resultado inicial foi desanimador. Naquela eleição, menos mulheres foram eleitas e a bancada feminina caiu de 6,43% para 5,65%. Nos anos seguintes, deficiências da lei foram corrigidas, como a adoção de um critério mais rígido para a aplicação da cota e a destinação de mais recursos de campanha para mulheres.
Apesar destes avanços, há hoje no Brasil apenas 75 deputadas em atividade, menos de 15% da Câmara. Isso nos coloca na pior posição da América Latina e em 141º lugar em uma lista de 192 países compilada pela União Interparlamentar em maio deste ano. Temos menos mulheres no poder legislativo do que muitas ditaduras e países com forte desigualdade de gênero, como a Arábia Saudita e as duas Coreias. A ineficácia da lei brasileira para aumentar a representação feminina foi um dos fatores que nos motivou a iniciar pesquisa sobre o tema no programa de pós-graduação em políticas públicas da UFABC.
Primeiramente, investigamos a realidade latino-americana. Há países em que a lei de cotas é muito eficaz, como Bolívia, Costa Rica, México e Nicarágua. Estes países possuem câmaras legislativas com mais de 40% de mulheres e figuram entre os dez com maior representação feminina do mundo. Há também outros em que a cota parece não ter produzido qualquer efeito. Com 19% de mulheres no Congresso, a Guatemala, único país sem cotas, possui representação feminina superior à do Brasil, Colômbia e Paraguai, todos com leis de cotas em vigor há algum tempo.
Um primeiro fator que explica a eficácia da lei de cotas é a cota propriamente dita. No Brasil, ela se manteve em 30% desde a primeira eleição, enquanto em mais da metade dos países latino-americanos já se adota o princípio da paridade, que fixa uma proporção de 50% para candidaturas de homens e mulheres. Nossa pesquisa também revelou que a alternância de gênero nas listas partidárias de candidaturas, os chamados mandatos de posição, tem um efeito muito forte. Isto é, quanto mais mulheres ocuparem as primeiras posições destas listas, maior será o número de eleitas. Para nós brasileiros, isto pode não ser muito intuitivo, porque votamos numa urna eletrônica e não visualizamos a ordem de candidatas e candidatos. Em todo os outros países latino-americanos, ainda se utiliza cédulas em papel, onde os nomes, números e/ou fotos dos candidatos costumam ser impressos. Os países com os maiores percentuais de mulheres eleitas são aqueles que adotam a paridade combinada com a alternância de gênero dos candidatos nas cédulas.
Para entender a importância dos mandatos de posição, é preciso, em primeiro lugar, considerar que em alguns países os eleitores votam em partidos, com listas de candidaturas ordenadas antes da eleição. Dizemos que a lista é fechada, pois os eleitores não escolhem o candidato preferido da lista. Após a eleição, as cadeiras são alocadas para cada partido de acordo com a votação recebida. São eleitas as candidatas e candidatos que ocupam as primeiras posições das listas partidárias até que todas as vagas tenham sido preenchidas. A relevância da alternância de gênero neste tipo de lista é muito fácil de perceber. Se a lei obriga os partidos a alternar homens e mulheres em suas listas, impedindo a concentração de homens no topo, o acesso de mulheres à câmara legislativa é automático.
Nossa pesquisa também revelou que a alternância de gênero funciona quando a lista é aberta, isto é, quando os eleitores podem votar em indivíduos ao invés de partidos. Se a cédula eleitoral apresenta os nomes e fotos de todos os candidatos, por exemplo, a alternância de gênero nas listas induz os eleitores a escolher mais mulheres. Este é um efeito psicológico que decorre da nossa tendência de votar nos primeiros nomes, principalmente quando não estamos bem informados sobre as candidaturas. Além disto, a distribuição equitativa de homens e mulheres nas cédulas valoriza as candidaturas femininas de maneira geral.
Infelizmente, mandatos de posição são de difícil aplicação no Brasil. A urna eletrônica impede a identificação dos primeiros nomes e a visualização da ordem de gênero das listas partidárias. Por isto, reformas mais radicais têm sido debatidas, como, por exemplo, a adoção da lista fechada e a reserva de uma porcentagem de cadeiras exclusivas para mulheres. Esta última proposta foi adotada por alguns países da Ásia, África e Oriente Médio, com excelentes resultados. Por serem reformas mais estruturais, tendem a gerar bastante resistência quando estão em pauta.
Nosso estudo aponta caminhos para a valorização de candidaturas femininas no Brasil, sem a necessidade de mudar radicalmente o processo de votação. Mandatos de posição importam, porque a estrutura das opções apresentadas ao eleitor o induz a determinados padrões de comportamento. Isto é, a forma como votamos nunca é neutra: ela pode valorizar ou desvalorizar candidaturas femininas. Com alguma criatividade e experimentação, talvez fosse possível reproduzir aqui os efeitos que encontramos em outros países que adotam a lista aberta.
Esta agenda de pesquisa é ampla e destaca outras barreiras ao progresso das carreiras políticas de mulheres que não discutimos em nosso trabalho. Para nos restringirmos somente àquelas da arena partidário-eleitoral, é comum haver constrangimentos dentro do próprio partido. É possível ampliar o acesso de mulheres a recursos financeiros e técnicos para promover suas candidaturas e adotar cotas para os cargos de direção partidária. Finalmente, a política pública precisa se atentar ao fato de que as mulheres não formam um grupo homogêneo e que algumas enfrentam dificuldades estruturais ainda maiores em função da raça, classe e sexualidade. Por isto, deveríamos também pensar estratégias interseccionais que promovam a carreira de grupos marginalizados e eliminem vieses de representação no poder legislativo.
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Um pouco mais sobre nossos divulgadores da ciência:
Prof. Dr. Diego Sanches Corrêa é professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e membro do programa de pós-graduação em Políticas Pública da UFABC. Tem experiência na área de política comparada e brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: instituições políticas, eleições, comportamento político e políticas sociais.
Vanilda Souza Chaves é doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Mestra em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. É pesquisadora do projeto “Democracia e Representação nas eleições de 2018” da Fundação Getúlio Vargas. Possui interesse nas áreas de estudos feministas, eleições e representação política.
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