Paulo Freire para Educar em época de (des)educação! (V.2, N.6, P.8, 2019)

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Paulo Reglus Neves Freire, brasileiro, pernambucano, nasceu em 1921 e faleceu em 1997. Educador e filósofo. É considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado pedagogia crítica.

Divulgadora da Ciência

Giselle Watanabe, professora da UFABC, licenciada em Física, mestre e doutora em Ensino de Ciências. Pós-doutora pela Universidade de Sevilha. Atualmente pós-doutoranda pela Universidade de São Paulo.

Pesquisadora dos temas ensino-aprendizagem e formação de professores com foco nos temas: aspectos da complexidade, educação para o risco, criticidade, decrescimento e meio ambiente, e modelos metodológicos pessoais.

Por que ele incomoda?

Escrever sobre as contribuições de Paulo Freire para a educação e ensino no Brasil e no mundo é um imenso desafio. Topei falar sobre ele por dois motivos, primeiro, porque as suas reflexões dialogam muito com a minha história de vida (e creio que com a de muitas/os brasileiras/os) e, segundo, porque estudá-lo requer tratar suas ideias a partir de uma clareza científica que muitos ignoram (é isso mesmo, não é possível criticar e mesmo compreender as ideias de Freire se elas forem lidas fora de contexto político e com pouca clareza sobre a realidade social da época).

Nos últimos eventos que envolveram a imagem de Freire fiquei me perguntando, por um lado, porque ele incomoda alguns setores da sociedade, por outro, porque muitas pessoas que tentavam defendê-lo tinham um discurso frágil. Para ambos os casos, minha hipótese é de que a história de vida desses sujeitos é muito diferente da maioria dos brasileiros e das brasileiras que tanto preocupava o educador. E, portanto, os discursos tanto de um lado quanto do outro, não convenceram. Parece estarmos no meio de uma guerra ideológica que não nos pertence! E, no entanto, ela se refere a cada um de nós.

Resgatar as ideias de Freire é resgatar a própria história de vida dos oprimidos, daqueles sujeitos que pouco tiveram oportunidade para prosperar nos estudos e na profissão. Freire vai defender que o processo de ensino e aprendizagem deve partir da realidade do sujeito que, por sua vez, pode fazer emergir problemas da comunidade na qual a escola se insere. Ou seja, é necessário conhecer os sujeitos envolvidos (Quem são? O que esperam da escola? O que os preocupa? Como aprendem? Como podem vir a ter prazer na aprendizagem?) para identificar aspectos que os mobilizam para a aprendizagem. Responder às questões dessa natureza levam os/as educadores/as (a equipe escolar) ao que o autor denomina Tema Gerador, ou seja, aquele tema de natureza social que pode propiciar o desdobramento de outros assuntos (científicos escolares, culturais, econômicos, políticos etc.) que, por sua vez, vão gerar novas tarefas e desafios.

Para Paulo Freire, quem são os sujeitos e suas realidades?

Poderíamos dizer que são muitos, mas vou tentar focar naquele que posso efetivamente defender, por tê-lo vivenciado. Para mim é a/o típica/o cidadã/ão que tenta sobreviver ao cotidiano, que é repleto de desafios: tem que levantar cedo (e é muito cedo mesmo) para tomar o trem e/ou ônibus lotados (pode ser que esteja ‘mais’ vazio se você fizer isso às 4h da manhã, mas tenha clareza que irá encontrar muita gente bêbada e desanimada ali), trabalhar o dia todo para servir uma classe muito distante da sua (pelo menos do ponto de vista econômico) e, se tudo certo, chegar à escola (que mais parece uma cadeia por inúmeras grades, mas ainda assim valiosa por ser o último espaço público, tal como dizia meu professor Júlio Aquino). Esse sujeito, que conhece muito bem o poder da palavra meritocracia (sistema de premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo), encontra na escola um ambiente com tarefas que pouco o faz pensar: que repete fórmulas, que resolve contas fora de contexto, que propõe copiar textos sobre algumas histórias desconectadas etc. Enfim, pensando em situações desse tipo (que, infelizmente, não são exceção no Brasil) é que uma educação freireana faz sentido.

São inúmeras as realidades, mas começaremos com a própria experiência de Freire na Educação de Jovens e Adultos, quando seu método foi implementado pelo governo de João Goulart, em 1963, na cidade de Angicos (Rio Grande do Norte, a cerca de 170 km da cidade de Natal). Essa ação foi denominada “Quarenta horas de Angicos” e contou com a participação de 380 trabalhadores, dos quais 300 foram alfabetizados nesse período curto. Para Freire, uma pessoa deveria aprender primeiro a leitura de mundo e só depois a formação das palavras. Sendo assim, ele tratou de estudar com os(as) alunos(as) as palavras advindas de sua realidade (como ‘tijolo’, no caso dos trabalhadores da construção civil) e, com isso, construir um repertório que os ajudaria a pensar e expressar no e com o mundo. Outras ações nesse sentido podem ser tomadas como exemplos, tais como os trabalhos realizados em Guiné Bissau, na África, e as experiências frente à Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo, nos anos de 1989 a 1991.

Você ainda poderia questionar: como propor uma educação com esse viés nas escolas públicas brasileiras de hoje? Ou, mais especificamente, em como fazer isso considerando o ensino das Ciências Naturais, a exemplo da Física e Química. Pois bem, há diversos trabalhos sobre esse assunto, dentre eles o livro recém-publicado “Educação Científica Freireana na Escola” que relata uma série de experiências inspiradas nessa perspectiva. Nele, os/as autores/as, pesquisadores/as na área de Ensino de Ciências, apresentam resultados de seus estudos seguindo uma estrutura científica que esse tipo de trabalho demanda. É um trabalho em parceria com pesquisadores de universidades no Brasil e Portugal, que mostram que o legado de Freire supera ataques midiáticos atuais.

Educação Freireana, reconhecimento mundial

Trata-se, portanto, de uma educação problematizadora ou dialógica, na qual o/a professor/a promove relações mais horizontais com os/as estudantes, ou seja, estabelece um diálogo com o sujeito de forma que ambos aprendem. Esse diálogo é parte fundamental no processo educativo; a/o estudante é um indivíduo com muitas experiências e histórias de vidas que devem ser consideradas. Reconhece-se que o/a professor/a tem a responsabilidade de formar cidadãos críticos, capazes de lidar com as suas realidades. Trata-se de respeitar a própria natureza do ser humano: um ser político. A educação é então um ato político! Nesse sentido, ela é vista como uma forma de desocultar a ideologia dominante. E quem faz essa desocultação? Somente esse sujeito crítico, aquele que foi oprimido e terá a oportunidade de desvelar sua realidade.

O método de Freire baseia no processo de Investigação temática, composta por cinco etapas: (1) levantamento preliminar da realidade discente, visando obter parâmetros que subsidiarão o trabalho escolar; (2) escolha do tema, realizada a partir do levantamento anterior, pautada nas contradições de interesse dos/as alunos/as e professores/as; (3) círculo de investigação temática que consiste nas reflexões e ações que vão confirmar se os temas escolhidos na etapa anterior realmente fazem parte do rol das preocupações dos alunos e comunidade (dinâmica codificação – problematização – decodificação); (4) redução temática que consiste na elaboração e planejamento da proposta temática; e, por fim, (5) efetivação da proposta em sala de aula.

Como uma forma de sistematização da Investigação Temática, especificamente tratando-se da efetivação da proposta em sala de aula, Delizoicov sugere os Três Momentos Pedagógicos, que se caracterizam pela problematização inicial, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento. Na problematização inicial, o/a professor/a organiza situações conhecidas pelos/as alunos/as para que possam interpretá-las, pautando-se nos conhecimentos científicos escolares. A proposta aqui é que o/a docente problematize as ideias dos/as estudantes. Na organização do conhecimento, os/as alunos/as estudam sistematicamente os conceitos científicos escolares que caracterizam o problema identificado no momento anterior. É aqui que eles resolvem os problemas e exercícios, mas sem que esses se tornem o foco do processo. Na aplicação do conhecimento, os/as estudantes analisam e interpretam tanto as situações estudadas inicialmente como extrapolam para novas problematizações.

Penso que poderíamos olhar as obras desse brasileiro com orgulho; e analisá-las de forma crítica a fim de identificar as possibilidades efetivas de avanço no campo educacional brasileiro. E isso, eu sei que muitos países já o fazem, seja por experiência própria ao vê-lo sendo estudado na universidade das regiões de Catalunha e Andaluzia, na Espanha, ou por relatos que vão desde uma homenagem na Suécia (estátua de Freire com as demais figuras mundiais relevantes do período) até os quarenta títulos de doutor honoris causa concedidos por universidades como Harvard, Cambridge e Oxford.

Por fim, pensando que a educação pode desocultar a ideologia dominante, acho desnecessário justificar os ataques que Freire vem sofrendo. A resposta vem do próprio ato de compreender para quem e com quem o autor dialogava. Nesse caso, creio ser enriquecedor ler as palavras de Freire por ele mesmo,

O ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática, da conscientização, deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos como existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a condição básica para a conscientização e seu agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscientização, como a educação, é um processo específico e exclusivamente humano. É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que implica “tomar distância” do mundo, objetivando-o que homens e mulheres se fazem seres com o mundo. Sem essa objetivação, mediante a qual igualmente se objetivam, estariam reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmo nem do mundo (Freire, 1976, p. 107).

Referências

http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/04/1-turma-do-metodo-paulo-freire-se-emociona-ao-lembrar-das-aulas.html

http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/vol05a19.pdf

Freire, P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. rev. atual. São Paulo: Paz e Terra, 2011 [1968]

Delizoicov, D. La Educacíon em Ciencias y La Perspectiva de Paulo Freire. In: Alexandria Revista de Educação em Ciências e Tecnologia, v.1, n.2, p.37-62, jul.2008.

Para saber mais

Livro:
Educação Científica Freireana Na Escola

Instituto Paulo Freire
(https://www.paulofreire.org/)
aqui tem material disponivel para baixar

No youtube (entrevista/Palestra realizada no auditório do CDCC em 22 de 
novembro de 1994).
https://www.youtube.com/watch?v=2C518zxDAo0

 

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