|Podcast| – O que devemos comemorar em 13 de maio? (V.2, N.5, P.3, 2019)

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Há exatos 131 anos, estava sendo publicada a lei nº 3353, de 13 de maio de 1888, responsável por oficializar o fim da escravidão no Brasil. Mas quais fatores motivaram este acontecimento histórico e, ainda, o que aconteceu após este e como a escravidão influenciou em nossa realidade científica? Para responder a estas e outras perguntas, convidamos o Prof. Dr. Ramatis Jacino para uma entrevista.

 


Transcrição do episódio

Introdução

INÍCIO

 

Marcos – eu sou o Marcos, bolsista atuante no Blog UFABC Divulga Ciência e hoje estamos com professor Ramatis Jacino. Professor, é uma honra estar recebendo o senhor aqui. Gostaria, primeiramente, de perguntar… que o senhor contasse um pouco sobre a sua experiência e sobre a sua pesquisa, seus focos de estudo si.

 

Professor Ramatis – Bom, primeiramente, eu queria agradecer pelo convite. Eu acho que é muito importante esse Blog Divulga Ciência para a gente poder tá dando… dando mais… democratizando aquilo que a gente tem pesquisado na Universidade. O meu foco de pesquisa, inclusive uma disciplina que eu ministro no Bacharelado em Ciências Econômicas é a Desigualdade de Raça, Gênero e Renda e isso por quê? Porque o meu… as minhas pesquisas em nível de Mestrado e Doutorado foram… eu trabalhei o período de transição do trabalho escravo, pesquisei o período de transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado no Brasil e a maneira pela qual os ex-escravizados foram excluídos do mercado de trabalho, os mecanismos que foram criados pelo Estado brasileiro, e essa é a minha tese, para a exclusão dos negros no mercado de trabalho. Então acabo focando depois, posteriormente, na Universidade, como docente, as minhas pesquisas para compreender, analisar essa desigualdade racial que nós temos no Brasil hoje.

 

Marcos – Professor, “raça” pertence àquela classe de conceitos que muitos gostariam que fosse definitivamente abandonada, devido a sua generalidade, mas que, não com pouca frequência, retorna ao centro das discussões. Gostaria de perguntar sobre a importância em termos em mente o acontecimento do passado e como estes moldam tanto o nosso presente quanto nosso futuro.

 

Professor Ramatis – É… eu sou suspeito para falar, porque eu sou historiador, então eu tô sempre acreditando que o passado está moldando presente e moldando o futuro. Nós tivemos um passado tenebroso no nosso país, né? Nós vivemos 350 anos de escravidão, onde milhões de pessoas foram sequestradas do continente Africano e trazidas para cá. Além disso, houve uma invasão desse território que hoje chama-se Brasil que tinha… habitado pelos indígenas… e esse território foi invadido pelos europeus e os indígenas sofreram massacres absurdos. Então, é nesse sentido que a nossa sociedade atual, ela é resultado dessa construção histórica e essa construção histórica ela tem uma dimensão econômica, que nós podemos perceber a grande maioria dos pobres no Brasil é descendente de indígenas, descendentes de negros, ela tem uma dimensão social, por que era uma sociedade bipartida, uma sociedade estamental durante a escravidão e hoje os herdeiros dessa sociedade, os herdeiros dos escravistas continuam no poder econômico e político e os herdeiros dos escravizados continuam à margem da sociedade. Ela tem uma dimensão política, porque a direção política, a administração política do Brasil, historicamente, esteve nas mãos dessas oligarquias, dos descentes dessas oligarquias, com algumas exceções ao longo da nossa história. E ela tem uma dimensão cultural que é… que se manifesta, além de outras formas, se manifesta no racismo, né… que é uma ideologia construída, pensada e elaborada para justificar a escravidão que houve e a exclusão, a marginalização que se manteve depois da escravidão, depois do fim legal da escravidão, por que a escravidão muitas vezes acontece. Até hoje, a escravidão, muitas vezes, se mantém de forma ilegal.

 

Marcos – Exatamente. Até, o que o senhor falou agora… vem a próxima pergunta, que é: antes da Lei Áurea ser oficialmente publicada, a escravidão vinha perdendo força. Poderia citar alguns desses fatores como eles influenciaram na abolição?

 

Professor Ramatis – Olha, eu tenho a concepção que… e outros pesquisadores, que o final da escravidão se deu três razões combinadas. A primeira foi a luta dos escravizados. Desde que o primeiro homem, primeira mulher, pisou em solo brasileiro na condição de escravizado, houve luta. Existiam as lutas individuais daqueles que assassinavam os senhores e fugiam pro mato. As lutas mais coletivas com a criação de comunidades rurais, que nós chamamos de quilombos. Existiam as lutas mais organizadas, insurreições como, por exemplo, aconteceu em 1835 na Bahia. A insurreição dos Haussás, que ficou conhecida como a Revolta dos Malês, que os negros quase tomaram o poder na Bahia. Existe, inclusive, um país dentro do Brasil que durou mais de 90 anos, que existe… que abrigou em torno de 20.000 pessoas entre negros, brancos…. e indígenas, e até mesmo brancos fugidos do Poder Colonial e que as forças de repressão chamaram de Palmares, mas que o nome que os negros usavam era Angola Janga. Então, a luta dos escravizados, a luta perene dos escravizados contra a escravidão é uma das razões do final da escravidão. A segunda razão é a pressão do Império Britânico. Não porque os ingleses fossem contra a escravidão ou se fossem bonzinhos, é porque naquele período, nós estamos falando já no século XIX, meados do século XIX, a  Inglaterra despontava como maior potência no âmbito do capitalismo industrial e era do interesse da Inglaterra acabar com a escravidão, de maneira que os escravizados se tornassem trabalhadores assalariados e pudessem adquirir os seus produtos. Além disso existia uma disputa pelas rotas internacionais, enfim, que a Inglaterra, portanto, começa a pressionar para acabar com a escravidão no Brasil. A terceira razão para o final da escravidão é a lógica do capitalismo, porque, na escravidão, se compra o indivíduo. Esse indivíduo pode ser pouco produtivo, adoecer, morrer ou fugir, o que acontecia muito. No capitalismo, não se compra o indivíduo, se compra a força de trabalho. Se esse indivíduo for pouco produtivo ou adoecer, basta demiti-lo e colocar outro no lugar. Se ele fugir, se ele morrer, também é fácil ser substituído. Então, essas três razões combinadas é que levaram ao final da escravidão. Ocorre que a História, normalmente, é contada a partir de um olhar e a História no Brasil sempre foi contada a partir do olhar das elites, das oligarquias, dos escravizadores. Então, essas mesmas elites buscando apagar, ou não reconhecer, ou invisibilizar o protagonismo dos negros no final da escravidão, cria a figura mítica duma princesa boazinha, branca, cristão, que ficou com dó dos coitadinhos e foi lá, assinou uma lei e libertou todo mundo. Então essa figura caricata, na verdade, da Princesa Isabel, ela tem esse objetivo ideológico. Então, quando é assinado o Decreto 3.353, Decreto Imperial que ficou conhecido como a Lei Áurea, uma parte… a maioria dos escravizados já tinha, inclusive, se libertado… né, através de fugas, de compra de carta de alforria, de algumas leis limitadoras etc…

 

Marcos – Após a abolição, os negros foram, finalmente, reconhecidos como cidadãos comuns, mas não foram reintegrados à sociedade. Quais foram os passos para esse reinício dos negros nas atividades consideradas normais?

 

Professor Ramatis – Olha, a população negra, durante a escravidão… os trabalhadores e trabalhadoras negras exerciam as mais diversas ocupações, até porque o trabalho braçal, o trabalho artesanal era algo considerado indigno de pessoas livres. Então, quem trabalhava era o escravizado. Qualquer pessoa que fosse livre, ele tinha que ter um escravizado para trabalhar para ele… então, esses trabalhadores escravizados, eles tinham uma… diversas ocupações. À medida em que a escravidão vai se exaurindo ao longo do século XIX, essas pessoas… eles vão ocupando os trabalhos no mercado de trabalho… exercendo aquelas ocupações que exerciam antes na condição de escravizados. Com tudo… e isso é minha tese… evidentemente, na academia existem outras visões… existiu uma ação, no meu entendimento, deliberada do Estado brasileiro para impedir que os ex-escravizados se inserissem no mercado de trabalho. Essa ação se deu através da legislação, por exemplo, existiu uma lei em São Paulo em 1886, uma postura municipal, que proibia os escravizados de ocupar uma série de profissões. Então, se proibia de trabalhar. Existiram leis que proibiram de estudar… em 1854 e 1878, existiram Decretos Imperiais que  proibiam os escravizados de estudar. Aí, expulsão da terra, com a Lei de Terras de 1850… Existiu a desagregação da família dos ex-escravizados com a Lei Rio Branco, ficou conhecido como a Lei do Ventre Livre… Existiu a marginalização e uma ação de atirar na mendicância o escravizador idoso que já não mais produzia riqueza, que foi com a Lei Saraiva-Cotegipe, que ficou conhecido como a Lei do Sexagenário. Então, existiu todo um processo de marginalização e de expulsão do mercado de trabalho, inclusive com o apoio do estado brasileiro para os imigrantes, permitindo ou dando uma série de vantagem para que os imigrantes viessem para cá… imigrantes europeus viessem para cá… para ocupar espaços no mercado de trabalho que antes eram ocupados pelos negros.

 

Marcos – A história do Brasil e do mundo é marcado pela concentração de riquezas e consequentemente pela desigualdade socioespacial sendo a raça um fator que aparece muito atrelado a isso. Esses fatores de segregação são exemplos para tamanha desigualdade?

 

Professor Ramatis – Com certeza. Esses fatores de segregação… Porque a segregação, ela continua… ela é contínua… se nós formos ver as pesquisas hoje do  DIEESE, do Instituto Ethos, que é um instituto patronal, do IBGE… demonstra, por exemplo, que no mercado de trabalho existe uma enorme discriminação, onde o mercado de trabalho paga as pessoas segundo a cor da pele e segundo gênero. Existe pesquisas que dão conta… inclusive uma pesquisa do Ministério da Saúde de 2014, que dão conta de que as mulheres negras recebem tratamento diferenciado na hora do parto se comparada as mulheres brancas. Isso que faz com que a mortalidade materna e a mortalidade das crianças seja quase o dobro de mulheres negras. Existe a discriminação que a gente vê acontecendo essa tragédia que a gente vê diária da polícia exterminando a juventude negra. Então, existe todo um racismo estrutural que mantém essa segregação, que mantém as pessoas nessa condição, né… Nós vimos recentemente no Rio de Janeiro uma família negra é metralhada com 80 tiros e agora… hoje… eu vi a notícia que o promotor de justiça do Tribunal de Justiça do Exército considera que os… aqueles militares cumpriram os protocolos e, portanto, não fizeram nenhum crime. Se fosse uma família branca de classe média na zona sul não seria metralhada, mas era uma família negra, foi metralhada e, agora, as próprias autoridades referendam que o exército tem o direito de metralhar famílias negras do que estão dentro de um carro… por alguma razão eles acharam suspeito.

 

Marcos – A cultura oligárquica continua dominando, né?

 

Professor Ramatis – Continua dominando. Continua dominando muito forte.

 

Marcos – E, como esses acontecimentos, infelizmente, unidos, contribuíram também para segregação científica no Brasil e no mundo, a princípio.

 

Professor Ramatis – Pois é… no campo científico, aí nós temos duas questões que eu acho que precisam ser colocadas. A primeira, foi a invisibilização da produção científica e da contribuição que os negros deram para a ciência no Brasil e em nível mundial. É… no continente africano, antes da chegada dos europeus, existiam vários impérios, várias civilizações e várias… é… uma variada produção científica e tecnológica. Então, nós temos impérios que foram invisibilizados, como o Império Axânti, como a Abssínia, como o Reino de Mali, o Reino do Gao, o Reino de Monomotapa… enfim… o Reino Iorubá, os Reinos Iorubás… então, uma série de povos e organizações políticas… portanto, estados… que deram uma contribuição muito grande para a organização social e, esses povos, eles desenvolveram vários estudos, eles desenvolveram a Ciência, a Tecnologia, e eles desenvolveram a Filosofias e as Artes. Pra você ter uma ideia, existia na cidade de Tombuktu, no Reino do Mali, uma universidade chamada Sankoré, muito antes da chegada dos europeus, mais de 200 anos da chegada… antes da chegada dos europeus, que tinha… numa cidade que tinha em torno de 100.000 habitantes, em torno 25.000 estavam na universidade. A título de comparação, seria como se a USP hoje, né… na cidade de São Paulo, tem em torno de 12 mi, de 12 milhões de habitantes, se tivesse quatro milhões… três milhões de pessoas. Então, isso dá a medida do nível do desenvolvimento cultural e desenvolvimento lá da Filosofia, das Artes, da Ciência. Então, essa é a primeira questão do negro na ciência que é essa invisibilização da contribuição extraordinária em vários campos, que os africanos e seus descendentes deram na Ciência. A outra dimensão que a gente pode colocar… aqui no Brasil os negros sempre foram objeto de estudo, durante muito tempo foram objetos de estudo. Se estudou muito os negros no Brasil. Desde Gilberto Freire, Nina Rodrigues, Silvio Romero… vários intelectuais brasileiros estudaram os negros a partir do seu olhar, evidentemente, de classe e de etnia, e de classe dominante e de oligarquia. Então, isso… o nego foi estudado. O negro se tornar cientista dentro da realidade racial no Brasil, com quantas excessões que existiram no passado, mas de forma mais sistemática, isso se dá a partir da década de 30, 40 e com um crescimento muito grande agora a partir do ano 2000, 2000 e pouco, que uma quantidade grande de negros entra nas universidades se torna cientistas. Mas é necessário que se diga que existiram vários cientistas nas mais diversas áreas no Brasil e que foram invisibilizados, também, por conta do racismo. Vamos pegar um exemplo na área da psiquiatria… Juliano Moreira foi o precursor da psiquiatria no Brasil. Na área do Urbanismo e da Arquitetura, nós temos os irmãos Rebouças… André Rebouças e José Pereira Rebouças. Nós temos, também na área do Urbanismo e Arquitetura, nós temos Teodoro Sampaio. Nós temos o criador da Ordem dos Advogados do Brasil, que não é, necessariamente, um espaço de Ciência, mas é um espaço importante saber… chamado Visconde de Jequitinhonha. O maior escritor do Brasil, fundador da Academia Brasileira, Machado de Assis. Todos esses, ou invisibilizados ou branqueados pelo racismo, né… que normalmente, tentam se branquear aqueles que não dá para invisibilizar, tenta-se branquear. Então esses são exemplos do passado mais antigo. Mas, atualmente, nós temos, felizmente, uma quantidade de muitos homens e mulheres negras nas Ciências. A grande maioria, ou, pelo menos, que aparece mais são nas Humanas, mas, nas exatas, nós temos também. Inclusive, na nossa Universidade Federal do ABC, nós temos vários pesquisadores, pesquisadores e pesquisadoras, na área de Humanas e na área de Humanas e de Exatas.

 

Marcos – Com certeza, é um histórico, até ,que o senhor comentou sobre o próprio racismo científico, desde o século 18 ao século 20, que vem passando, né, como uma tentativa até de explicar, né, e justificar a não aceitação do negro na sociedade. Muitos cientistas passaram por toda essa época tentando explicar, fazendo experimentos e comprovações absurdas para comparar sem colocar as minhas qualidades e colocar a mesma quantidade e as mesmas possibilidades para cada um, passando por todo esse período, né?

 

Professor Ramatis –  Exato. O racismo, é muito importante que se diga, o racismo é resultado não só da maldade dos homens, ele é, também, resultado da maldade dos homens, mas o racismo é resultado de uma construção ideológica. E, aí, o racismo, ele se constrói no mundo e, particularmente, no Brasil, a partir de dois pilares, que eu acho que é muito importante… que eu gostaria de falar aqui. O primeiro… a primeira questão que leva ao primeiro pilar é que os europeus, eles eram cristãos e se é que seguem a Bíblia. E, na Bíblia, está escrito que todo homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Então, como eles iriam justificar que eles estavam submetendo alguém foi criado à imagem e semelhança de Deus a uma condição de animal é à condição de uma mercadoria, que é isso que é condição que é levado o escravizado. Então, era necessário criar uma explicação para isso… então, eles criam uma explicação a partir de uma leitura da Bíblia que eles pegam uma passagem da Bíblia, que é a passagem coloca que Noé teria recebido uma mensagem de Deus e que Deus mandaria o dilúvio. Então Noé obedece, cria… constrói a arca, coloca um casal de cada espécie de animal e vai… a arca fica flutuando até que depois de 40 dias e 40 anos do dilúvio ela aporta no Monte Ararat. No Monte Ararat, Noé desce e a sua família sai, vai repovoar a Terra junto com os animais e Noé planta a vinha, colhe a vinha, bebe se embriaga. Ao ficar embriagado, Noé… ele fica deitado na sua tenda com as suas vergonhas amostra… isso está na Bíblia… o seu filho, Cam, [ao] ver o pai naquela situação, ele não cobre o rosto e, portanto, ofendeu a nudez do pai. Seus outros dois filhos, Sem e Jafé cobrem o rosto, vão de costa e colocam um pano para cobrir a nudez do pai. Quando Noé acorda, Sem e Jafé denunciam Cam e Noé, furioso, amaldiçoa Cam e toda a sua descendência. A maldição que ele lança sobre Cam é que ele se tornará escravo dos seus irmãos e asua descendência escrava da descendência dos seus irmãos. Essa passagem bíblica é utilizada pelos cristãos europeus escravizadores para justificar a escravidão. E qual é a argumentação? Os africanos nasceram à imagem e semelhança de Deus, contudo, eles são objetos de uma maldição bíblica. Então tá justificado. Então, o primeiro pilar da construção da ideologia racista se dá pela religião. Ocorre, com o passar do tempo e, especialmente, com o advento do Iluminismo, as explicações teocêntrica já são insuficientes. Então, é necessário lançar mão daquilo que, no momento, a inteligência mundial se norteavam que é o antropocentrismo… as explicações antropocêntricas. Então, é necessário, portanto, uma explicação mais científica. Aí, o que que eles fazem…. da mesma forma que foi utilizada a Bíblia, eles utilizam um importante biólogo chamado Charles Darwin, biólogo inglês, que escreveu “A Origem das Espécies” e, entre outras coisas, ele hierarquizada na natureza os animais, da mesma forma que o leão devora o coelho e assim por diante. Então eles adaptam essa… essa leitura de Charles Darwin  da biologia para antropologia, para a sociologia e passam a argumentar que, se na natureza existe essa hierarquia, entre seres humanos também existe. Então, na concepção deles, no topo da hierarquia da humanidade estava o branco caucasiano europeu, depois estavam os asiáticos, depois os indígenas e os negros eram aqueles que estavam abaixo. Isso recebeu o nome de Darwinismo Social, que é aquilo que ficou conhecido como ciência. E, aí, tem um subproduto do Darwinismo Social que foi criado por um francês chamado Francis Galton, que é a ideia de que, se existe uma raça superior e uma raça inferior, para humanidade evoluir, é necessário, então, acabar com a raça inferior e privilegiar a raça superior, melhorar a qualidade da raça. Então, ele cria aquela ideia que ficou conhecida como eugenia, que foi trazida para o Brasil por outro francês chamado Arthur de Gobineau e foi incorporado pelos centros de saber do Brasil. Então, portanto, fiz uma… uma fala um pouco longa, mas é para dizer que essa… o racismo no Brasil é uma ideologia construída. Construída a partir de uma concepção religiosa, uma concepção científica, e que vai se reformulando enquanto um pensamento acadêmico e que depois é apropriado pelo senso comum. Mas a academia foi que produziu esse racismo que nós conhecemos.

 

Marcos – E nos dias de hoje, professor, o que devemos comemorar em 13 de maio?

 

Professor Ramatis – Absolutamente nada. 13 de maio não tem significado nenhum para nós negros, nem para o movimento negro e não deveria ter significado nenhum para a sociedade brasileira. O 13 de maio, como eu me referi foi uma… uma das razões… tentativas de roubar o protagonismo para o final da escravidão. Segundo Emília Viotti, que foi uma pesquisadora da USP, falecida recentemente, quando foi assinada a Lei Áurea, apenas 5% dos negros eram escravizados. A maioria já tinha se libertado por fugas, por compra de carta de alforria, por essas leis relativas… por… mesmo grandes fazendeiros que, por conta daquela razão a que eu me referi anteriormente, que a escravidão já não era mais tão lucrativa, começam a ir substituindo os escravizadospor trabalhadores assalariados ou meeiros etc. Então, a escravidão já estava praticamente exaurida. Então, a Lei Áurea, ela tem… ela acaba só referendando aquilo que já existia. Como eu também me referi que a História é muito dinâmica e ela é contada a partir de um olhar… tem uma narrativa da História que eu acho que é importante resgatar aqui. Durante muito tempo os próprios negros aceitaram essa ideia do 13 de maio como dia de libertação e o 13 de maio era comemorado. Na década de 70, com o ressurgimento do movimento negro que tinha sido… né… atacado, como muitos movimentos, por conta da ditadura civil-militar, que se inicia em 61, na década de 70, esse movimento negro começa a questionar o 13 de maio. Existiu lá em Porto Alegre, um poeta chamado Oliveira Silveira, que ele… hum… propõe ao movimento negro organizado que não se comemore mais o 13 de maio… que se comemore o 20 de novembro como o dia da morte de Zumbi de Palmares, a grande liderança representativa dos negros brasileiros. O movimento negro assume essa… essa bandeira, começa-se espalhar essa bandeira pelo Brasil inteiro, formaliza o movimento negro essa bandeira, e depois, com algumas conquistas parciais que nós tivemos em espaços do Estado, Câmaras de Vereadores, elege um vereador, um deputado… ou negro ou então não negro, mas comprometido com a causa, o 20 de novembro acaba sendo… se tornando o Dia da Consciência Negra nesses estados e municípios, e se tornou, depois em nível nacional… mas em algumas cidades e estados se tornou feriado. Se eu não me engano, mais de 200 cidades no Brasil, duzentos e cinquenta e poucas, o dia 20 de novembro é feriado. Então, o que que eu quero dizer com isso… o movimento social organizado se apropria da narrativa histórica e constrói uma outra narrativa em contraposição àquela narrativa feita pelas oligarquias, que era o 13 de maio. Então isso foi muito importante… essa nova narrativa a história… histórica. E aí, mais recentemente, também o movimento negro se apropria do 13 de maio e rebatiza o 13 de maio como Dia Nacional de Denúncia da discriminação racial. Então, hoje até se… se promove eventos no 13 de maio, mas não com aquela… com aquela visão que as oligarquias escravistas tinham colocado em relação a 13 de maio.

 

Marcos – Por fim, professor, deixaria alguma dica livro, citação ou filme sobre o tema para os nossos ouvintes?

 

Professor Ramatis – Olha, nós temos muitos filmes, muitas dicas, muitas… muitas sugestões. Então… mas eu quero me permitir, aqui, fazer um pouco de propaganda pessoal… eu lancei, recentemente, um livro… né… agora, mês passado que… que tem, como título, “Desigualdade Racial no Brasil: Causas e Consequências”. Esse livro reúne cinco artigos e dois ensaios sobre a questão racial, a construção da ideologia que eu me referi aqui, os mecanismos que levaram à marginalização dos negros. Enfim, um conjunto de trabalhos… E esse livro vai pra… nas próximas semanas vai tá nas livrarias, mas eu queria deixar aqui o e-mail da editora se alguém tiver interesse que é imoeditora.contato@gmail.com. Imó é “i”, “m”, “o”. “m” de Maria. Então, repetindo imoeditora.contato@gmail.com. E se as pessoas tiverem interesse, eu acho que pode… eu acho que é interessante… eu acho que… esse livro, inclusive, quem quiser está disponibilizado também na nossa biblioteca aqui na UFABC, aqui.

 

Marcos – Com certeza, até é a possibilidade de uma série, aqui para o nosso canal.

 

Professor Ramatis – Espero… vamos. Podemos fazer, sim. Seria interessante, podemos conversar… e tem diversos outros autores, eu tô até cometendo algumas injustiças… tem outros… diversos outros autores muito importante aqui na nossa Universidade. Nós temos professores que têm uma produção muito importante. Tem o professor Acácio, que hoje é o nosso pró-reitor, nós temos a professora Regimeire, de Políticas Públicas,  o professor Flávio que é de Relações Internacionais, o Muryatan, que é de  Relações Internacionais, professora Luciana,  que é do Planejamento Territorial, professora Lígia, que é da Matemática, professor Thiago, que é da Engenharia Biomédica, enfim. Nós temos uma quantidade grande de professores e pesquisadores negros na nossa Universidade, que eu acho que merece também o devido destaque, a devida atenção.

 

Thiene – É…  eu assisti uma entrevista sua na TV Cultura que… aí você termina sua entrevista falando que talvez um próximo passo pra sua pesquisa seria estudar o papel da mulher negra em todo esse processo. Recentemente, também, eu ando fazendo algumas aulas de… de feminismo e tal… e aí eu me incomodo muito quando as pessoas falam da entrada da mulher no mercado de trabalho como um marcador feminista, sendo que não é a entrada da mulher no mercado de trabalho, porque as mulheres negras sempre trabalharam, né?

 

Professor Ramatis – Exato.

 

Thiene – E eu queria saber se você conseguiu ir mais afundo nessa pesquisa e falar um pouco sobre a mulher negra.

 

Professor Ramatis – Na verdade, não consegui e acabei me desviando do caminho. Eu acabei indo mais… é… procurar essa questão das desigualdade e tal. Por outro lado, também, talvez seja um excesso de zelo meu… eu acho que tem uma discussão hoje muito presente, que eu acho que é importante, que é a questão do lugar de fala. E eu tenho mais procurado incentivar minhas alunas orientandas a pesquisar sobre isso. Por que eu acho que é mais… elas tem mais legitimidade de pesquisar sobre a História da mulher negra do que um homem negro, né? Então acho que… não é que é proibido, né, um homem, mesmo que fosse branco, pesquisar isso. Mas eu acho assim… eu tenho incentivado muito. Algumas têm pesquisado questões específicas. Tenho orientandas que estão pesquisando a mulher negra no empreendedorismo… tem algumas pesquisas nesse sentido, mas eu acabei não conseguindo aprofundar. Mas tem um negócio que eu sempre… eu acho que citei lá, que me encanta na História, que eram as mulheres negras que, no processo de transição da escravidão para o trabalho assalariado, trabalhavam como, principalmente, as quitandeiras e as lavadeiras. Porque, assim, imagina no século XIX, não existia Sabesp… e nem tanquinho, rs, nem máquina de lavar. Então, quem lavava a roupa, era na mão e lavava no rio, né? Não tinha tanque, nem tanque, não tinha água encanada. E quem lavava a roupa eram mulheres e a maioria mulheres negras. E essas mulheres, como a maioria delas não eram escravizadas, sobreviviam ali como… eram alforriadas e tal, sobreviviam ali, elas… e elas eram… tinham autonomia financeira, a maioria eram sozinhas, não tinham… hum… maridos, até porque os homens negros tinham que ir pros lugares longínquos para conseguir  trabalho, pra marinha, pro… rede ferroviária e tal… Então, elas desenvolveram um padrão de comportamento que conflitava com aquela sociedade. Então, eram mulheres muito aguerridas, que saíam na porrada com a polícia, umas mulher terrível e tal… e que, inclusive,  vocês talvez… a geração de vocês não… não tenha pego isso, mas na minha geração era muito comum dizer “fulana parece uma lavadeira”. Que que era a lavadeira? Aquela mulher desbocada, mulher que ia pro enfrentamento, aquela mulher insubmissa. Então esse padrão cultural das lavadeiras ficou muito forte na nossa sociedade, né? Então eu acho isso interessante. Lavadeira e quitandeira… assim… os centros urbanos tinham todos. No século XIX tinham muitas mulheres… e aí, é isso que você fala… eu acho que, para mim, eram as primeira feministas tanto porque iam… tavam no mercado de trabalho de fato como também faziam o enfrentamento da sociedade machista que… ia pro pau, assim… os relatos da polícia que tem, que falavam assim, que eram mulheres desbocadas e que brigavam como homens, né? A polícia…. rs

 

Thiene – Ou seja, sensacionais.

 

Professor Ramatis – Elas metiam porrada, não queriam saber… É muito legal. Muito bacana isso aí. Mas eu acho que vale a pena pesquisar… não só mulheres negras, outras também, acho que deveriam aprofundar as pesquisas.

 

Vanessa – Ah, eu queria perguntar uma coisa, já que pode. É… eu só tenho a agradecer o Marcos, ele que trouxe esse assunto para gente poder conversar. A gente queria fazer algo bem… E quanto eu li o Lattes do professor, eu já fiquei até emocionada, a gente conversando.

 

Professor Ramatis – Ah, legal.

 

Vanessa – Mas é porque é um resgate mesmo da nossa História, né, do Brasil essa… enfim. Mas, aí, professor, você como historiador, é… talvez eu faça uma pergunta…. Bom, como historiador, tudo que a gente viveu… a gente viveu uma viagem, né, tudo que a gente falou. Mas, assim, em relação às perspectivas, né? A gente sabe que a gente tá vivendo um cenário muito complicado. Assim, na sua opinião, como você visualiza, assim, o futuro… de tudo que a gente… tá acontecendo?

 

Professor Ramatis – Olha, o futuro eu acho branco, né, rs. Assim, eu acho que a coisa… a situação tá muito complicada hoje, que nós tamos vivendo. Nós estamos… se nós vivíamos uma sociedade racista durante todo esse período, agora isso se acirrou e isso aflorou. Quer dizer, eu to sendo muito objetivo, assim, né? A eleição do Bolsonaro aflorou, assim, colocou todos os demônios na rua, né? Tudo aquilo que as pessoas eram e escondiam, agora a pessoa fala. Ontem eu tava vendo uma reportagem, aumentou 70% o feminicídio em São Paulo. Um negócio louco, né? Racismo, feminicídio, homofobia, tudo um negócio pavoroso. Agora, por outro lado, eu também sou otimista, até porque, se eu não for otimista, eu desisto, vou me matar e tal… Eu acredito que o movimento social… e aí o movimento social como um todo e os negros em particular… estão reagindo e essa reação vai aumentar mais ainda. Até porque, não tem para onde correr, né? Quer dizer, o desemprego… nós estamos aí com 13 milhões de desempregados, e 19 milhões se contar os desempregados por desalento. Sem contar o pessoal que tá trabalhando em Uber, terceirizado, home Office, McDonald’s, intermitente… quer dizer… e 27% são jovens desempregados. Então, esse povo eu acho que vai para rua, né? Eu acho que… acho que nós temos uma coisa que eu acho que é extremamente positiva, 1º de maio, amanhã, pela primeira vez na História do Brasil, consegue unir todas as centrais. Então, vai ter um 1º de maio com… nós temos nove centrais no Brasil… todas… algumas mais à esquerda, como a CUT, a Intersindical, CGTB, outras até como a Força Sindical, do Paulinho Pereira, que é… ele apoiou o golpe e tal… Então, mas, ainda assim, por conta dessa situação, todas as centrais estão se unindo. Então, eu acho que são alguns indicativos que vai dar para fazer com que esse povão vá para rua, né. Vamos ter que ir para rua, porque não tem como não resistir a uma coisa dessa né? E o ataque à universidade, vocês viram, recentemente, o Weintraub lá disse que já escolheu três universidades para cortar verba, quais são, logo, logo vem para UFABC, certamente. Você sabe que a direita chama a UFABC de UniLula, né? Quer dizer, “só tem petista e tal”, o que não é verdade. Tá cheio de gente das mais diversas posições, né? Mas é isto.

 

Vanessa – Obrigada professor, obrigada gente. Foi ótimo.

 

Marcos – Com certeza. Professor Ramatis, muito obrigado pela presença. É uma honra para todos nós.

 

Professor Ramatis –  Eu que agradeço… uma honra e sempre uma alegria participar aqui. Muito obrigado. 

 

Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzes avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais …
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

 “Navio Negreiro” de Castro Alves.

 

FICHA TÉCNICA

Roteiro: Marcos Vinicius, Vanessa Carmo, Thiene Pelosi, Pedro Henrique Oliveira da Silva

Entrevistador: Marcos Vinicius

Edição: Bruna Sousa

 

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